1 | Olhar o que está além 🪟
Deixar a luz entrar, ventilar ideias e dar a conhecer tesouros – esta é uma newsletter sobre viajar (e viver) de forma interessada e interessante. As boas-vindas!
Quando cruzei o Atlântico para atracar no Porto, em 2019, costumava contar os guindastes no horizonte da nova cidade em constante transformação. Era como se eu também me visse mudando muito e rapidamente, tentando acomodar a nova identidade de imigrante.
Depois, passei a contabilizar as longas chaminés das antigas fábricas de cerâmica, que quase sempre abrigavam um ninho de cegonha no topo (escrevi brevemente sobre isso aqui). Gostava e ainda gosto de olhar para esses símbolos do passado e do futuro, tentando manter-me no presente.
Minha obsessão mais recente são as claraboias: elemento iconográfico do casario histórico portuense. São tantas e de tantos estilos embelezando os telhados terracota que me pergunto como não estampam os cartões postais em vez da Ponte D. Luis I ou das caves do vinho fortificado que leva o nome da cidade — ambos patrimônios tombados.
Talvez porque as claraboias não sejam tão óbvias: eu mesma precisei de algum tempo para identificá-las como um símbolo da cidade onde escolhi viver.
A claraboia não é uma exclusividade daqui. Talvez em termos de estilo e concentração, sim, mas infelizmente não há estudos suficientes sobre esse símbolo do desenvolvimento urbano do século XIX.
Sabe-se que naquela época a burguesia mandou erguer claraboias com a intenção de destacar-se — quanto mais ornamentos, mais rica era a família detentora desta espécie de janela para o teto por onde passa luz e ar. Uma espécie de competição que empregou pessoas que manuseavam vidro, ferro, gesso e pintura.
Apesar do investimento, passados 200 anos as claraboias não costumam atrair muitos olhares, exceto pelas gaivotas. Não só porque hoje se vive de forma mais apressada, com os olhos presos nos celulares, sem quase nunca olhar para cima.
Também conta o fato de que essas estruturas por vezes escondem-se nos telhados de construções altas em ruas estreitas. Quem já andou pela Baixa, a forma com que portugueses referem-se ao centro histórico do Porto, sabe do que falo.
À noite é mais fácil reparar nas claraboias de fora, porque emanam a luz interior das casas e brilham como estrelas no céu. Honram, assim, a sua etimologia francesa: caminho de luz.
Já a incidência da luz natural através delas muda conforme não só a estação, mas a hora do dia, produzindo diferentes efeitos. São muito úteis no inverno, quando a cidade veste-se de cinza e a entrada de qualquer feixe de luminosidade pode melhorar o humor de seus habitantes.
Se você estiver dentro de alguma residência portuense com uma claraboia, procure pela escada e lá no topo estará ela cumprindo funções muito além de decorativas.
Outro olhar estrangeiro e entusiasmado como o meu apontou a necessidade não só de enxergar, mas também de preservar as claraboias.
Mestra em Conservação e Reparo de Bens Culturais pela Universidade Católica Portuguesa, a brasileira Júlia Vieira identificou em sua pesquisa que muitas das obras de requalificação do casario portuense ignoram as claraboias, seja pelo custo elevado ou pelo tempo necessário para a manutenção, o que leva à descaracterização.
Foi durante um entardecer de fim de verão lá do alto da Torre dos Clérigos que me dei conta de que as claraboias talvez representem um desejo antigo que, assim como o meu olhar, também precisou amadurecer antes de tomar forma: a primeira edição de Bom Proveito, essa forma ibérica de desejar que a vida seja plenamente usufruída e que descobri em bom castellano em 2013.
Por meio desta newsletter-claraboia, pretendo colocar luz nas belezas que persigo incansavelmente, quase como um exercício de fé na vida. Também quero arejar as ideias que pipocam na minha cabeça a cada andança com curiosidade que dou por aí. Com base em uma curadoria afiada, deixarei recomendações de lugares, pessoas, vistas, sabores, sensações etc.
Tendo o Porto como lugar de partida, já que este é um espaço cujo Norte são as viagens físicas e metafóricas que me colocam em movimento — e espero que te coloquem também — em direção a descobertas únicas que me fazem sentir viva, vivíssima. Vamos juntas e juntos?
O fotógrafo português Paulo Gaspar Ferreira, junto da fotógrafa brasileira Luciana Bignardi, mantêm aceso o interesse pelas claraboias do Porto há 30 anos por meio do projeto Anima Luminaria, que também é colaborativo no Facebook. Acho tão bonito quando a lusofonia olha na mesma direção.
FLÂNEUSERIE 💃🏻
[Recomendações de lugares por onde andei, testei e aprovei]
Para não fugir muito do assunto desta cartinha inaugural, ainda queria dizer que há várias claraboias em espaços abertos para visitação no Porto. Eis as minhas sugestões, que acabaram formando um roteirinho bem fora do óbvio pela cidade:
ROSA ET AL Townhouse: este boutique hotel serve um brunch delicioso aos fins de semana aberto a não-hóspedes e que me dá vontade de fazer um staycation toda vez que lá vou. Antes de chegar às mesas ou ao jardim para deliciar-se, pare na escada que divide o empório e o café e olhe para cima;
Centro Comercial de Cedofeita: visite o mercadinho de antiguidades todo sábado de manhã neste espaço alternativo que abriga o trabalho de muita gente criativa da cidade. Não deixe de ir até o fundo do prédio à procura da claraboia, que não vive o seu melhor momento em termos de preservação, mas não deixa de ser bonita e contar uma história;
Centro Português de Fotografia: local inspirador para registrar uma claraboia bem diferente, ainda que o prédio já tenha abrigado uma cadeia. Há sempre exposições interessantíssimas para quem se interessa por luz & sombra;
Palácio da Bolsa: casarão do século XIX que é uma mistura arquitetônica. Destaque para o Salão Árabe e o Pátio das Nações, que abrigam claraboias monumentais;
Museu Atkinson: recém-aberto na cidade, está dentro do complexo World of Wine (WoW) e dispõe de um exemplo de claraboia bem conservada, tendo em vista que o espaço era uma casa pertencente à alta burguesia e que foi restaurada sem economias pelos ingleses que detêm o espaço.
Extra: além da já mencionada Torre dos Clérigos, o Miradouro da Vitória é um excelente local para contar as claraboias existentes no horizonte tripeiro, ou seja, do Porto. A explicação para esse gentílico fica para outra edição. Spoiler: não está relacionado com viagens, mas com tripas mesmo 😊
SALVO EM QUERO VISITAR 💾
[Onde ainda não fui, mas salvei na lista para ir]
Extrapolando o perímetro da minha cidade, outros lugares interessantes e que dispõem de claraboias estão na Galleria Vittorio Emanuele, em Milão, no Mercat Central de Valência, no Victoria and Albert Museum, em Londres, no Theatro Circo, em Braga, e no Palácio de Cibeles, em Madrid (estive nesse último no mês passado com duas amigas que me deram a dose de coragem necessária para Bom Proveito vir ao mundo — obrigada, Nanda e Maria ❤️🔥).
A seguir, mais duas claraboias que ainda não conheço, mas que parecem merecer a visita:
CCBB, no Rio de Janeiro, onde o meu amigo Affonso Cavalheiro esteve recentemente (sigam @affonsoc no Instagram para acompanhar as viagens e o humor peculiaríssimo dele);
Palácio da Música Catalã, em Barcelona, este belo exemplo modernista onde ando louca para assistir a um espetáculo.
→ Já viu alguma claraboia por aí que vale a contemplação ou tem outra dica para me dar? Vou adorar saber mais!
UMA ÚLTIMA VISTA D’OLHOS 👀
[Inspiração para espreitar antes de ir embora]
Além de editora de escritoras mulheres no Brasil, Claraboia também é o nome do décimo sétimo romance de José Saramago, o único escritor de língua portuguesa a ganhar um Nobel de Literatura.
Finalizado em 1953, mas publicado postumamente em 2011, narra a "história de um prédio onde há seis inquilinos, e é como se por cima da escada houvesse uma claraboia por onde o narrador vê o que se passa em baixo". Há algo mais português do que espiar pela janela?
Ainda não li, mas mais do que nunca está na minha lista. Inclusive, a primeira vez que vi esse título foi exatamente há um ano, no Festival Literário Internacional de Óbidos de 2022, que homenageou Saramago (veja as fotos abaixo). Uma época mágica para conhecer essa vila medieval próxima a Lisboa, onde também é possível viajar pelo tempo e pelos livros.
A edição de 2023 termina este fim de semana com a presença ilustre de Ney Matogrosso. A espanhola Elena Medel, cujo livro Las maravillas (As maravilhas, publicado pela Todavia) está na minha cabeceira para começar, e o colombiano Héctor Abad Faciolince dividem uma mesa interessantíssima sob o tema “Inacabado".
Dele, quero muito ler o Livro de receitas para mulheres tristes (Companhia das Letras), apesar do estranhamento que o viés de gênero no título me causa. A
já recomendou na sua newsletter deliciosa, então deve ser bom!“Nunca verei o suficiente enquanto viver”, Martha Gellhorn, repórter e única mulher a desembarcar no Dia D na Normandia.
Gabi, que delícia de texto. Me identifiquei tanto com teu olhar sobre este elemento decorativo e penso nas claraboias como lentes que nos ajudam a ver o céu. Lembrei de algumas que tive oportunidade de registrar: Museu do Vaticano (sem contar com a escadaria!), Palau de la Música Català (uma verdadeira fábula), Galeries Lafayette (Paris), Panteão (Roma). Já embarquei nesta viagem contigo. E peguei janela. Evoé!
Que leitura inspiradora, já quero caçar clarabóias! Foi minha companhia no café deste sábado de manhã! Beijos querida Gabi!