11 | Beleza é função e vice-versa 💎
Um roteiro arquitetônico por Portugal, o país com 10 milhões de habitantes e dois "Nobel da Arquitetura", cujo design modernista preserva e vai bem além do casario colorido ou dos murais azulejados.
“Vejo com espanto como alguém pode viajar sem se aperceber de nada do que está fora de si”, Goethe em “Viagem a Itália 1786-1788”.
No fim do último verão, fui fisgada pela exposição Siza e Oscar: Para além do mar. A mostra fotográfica na Casa da Arquitectura propunha um diálogo ressonante entre os dois expoentes do modernismo lusófono: o português Álvaro Siza Vieira e o brasileiro Oscar Niemeyer. Mais especificamente entre as suas únicas obras em solo trocado, com o Atlântico pelo meio: a Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre, e o Pestana Casino Park, na Ilha da Madeira.
Frase tocante do Guimarães Rosa à entrada (O real não está na saída nem na chegada, ele se dispõe para a gente é no meio da travessia), fotos incríveis montadas em um espaço belíssimo, mas foi só na loja do museu que tive quase uma epifania ao ler uma frase do arquiteto português estampada em um caderno: A beleza é o auge da funcionalidade, aspas disponíveis nesta entrevista. Peço desculpas ao pessoal da arquitetura que me lê pela provável obviedade: sempre fui levada a enxergar estética e utilitarismo separadamente, ainda que com um incômodo que nunca soube explicar muito bem.
Gosto de contemplar o que é belo, que por si só serve a um propósito importante, não secundário. Seja um prédio, um quadro ou paisagem. No dia a dia e em viagem. Acredito mesmo que se algo é bonito, também é útil — não que tudo tenha que servir a algo, o ponto não é esse. Mas é incontornável a serventia no design não só que agrada, mas que eleva olhos, mente e alma.
Forma e função são um, como também defendia outro profissional do meio, Frank Lloyd Wright. Ou ainda forma segue função, segundo o arquiteto Louis Sullivan, talvez o primeiro a unificar os conceitos. Reside aí a intersecção da arquitetura com a arte, até porque é impossível olhar para as curvas nas obras de Niemeyer ou para a geometria dos espaços desenhados por Siza e dizer que não se tratam de traços de dois artistas. O fotógrafo José Roberto Bassul conseguiu comprovar que sim.
Tenho o privilégio de morar em uma cidade e em um país onde a arquitetura do mais alto nível está acessível no cotidiano em vez de encastelada para usufruto de poucos. Há harmonia e funcionalidade no transporte público, museus e até habitação social. O próprio Siza Vieira, ganhador em 1992 do equivalente ao Nobel da área, o prêmio Pritzker, assina projetos em espaços assim.
Frequento todo verão as piscinas públicas da Quinta da Conceição e das Marés, além da Fundação Serralves — uma verdadeira coleção de edifícios criados por Siza Vieira, que ganhou recentemente uma ala com seu próprio nome. Sonho em jantar na Casa de Chá da Boa Nova, um fine dining com duas estrelas Michelin cravado nas pedras de frente para o mar. E ando com muita vontade de ir conhecer a Igreja de Santa Maria, bem pouco convencional, em uma aldeia nos arredores do Porto.
Eduardo Souto Moura, aluno de Siza e outro galardoado com a premiação máxima quase 20 anos depois, também tem trabalhos em museus, estádios e memoriais abertos ao público. Para mim, os mais impressionantes são o Silo Espaço Cultural e a restauração do Convento Bernardas. Menção honrosa para o Pavilhão Centro de Portugal construído em parceria com Siza para a Expo 2000 em Hannover, atualmente abrigando a Orquestra Clássica em Coimbra.
Como se não fosse espantoso o suficiente dois Pritzker para uma nação tão pequena, Portugal ainda ocupa o sexto lugar em número de obras nomeadas no último Mies van der Rohe, que aprecia obras de 38 países. Dos 14 trabalhos que concorrem ao prestigiado prêmio, cinco estiveram de portas abertas no Open House Porto, um evento de arquitetura mundial que já se consolidou no calendário de verão da cidade e serve para aproximar ainda mais o público da arquitetura.
São eles, a serem incluídos em roteiros de viagem: as reformas do Mercado do Bolhão, por Nuno Valentim; e do Cinema Batalha, pelo Atelier 15; a Escola Superior Artística do Porto, de Cannatá & Fernandes; o Edifício General Silveira, de ATA Atelier/Entretempos e o Terminal Intermodal de Campanhã, de Nuno Brandão Costa.
A própria Casa da Arquitectura — que catalogou os quase 250 edifícios icônicos no país e promove passeios guiados, mas também incentiva visitas autônomas (fiz uma curadoria nas seções a seguir) — está instalada onde já funcionou a Real Vinícola, posteriormente restaurada. Também é lá que está o acervo da produção do brasileiro Paulo Mendes da Rocha.
Esse foi um pedido do próprio arquiteto e urbanista em função da qualidade das instalações além-mar, mesmo com a contestação de parte da ala arquitetônica do Brasil. Uma exposição que deriva desse trabalho de sete décadas foi inaugurada no ano passado: Geografias Construídas segue aberta ao público até 25 de fevereiro de 2024.
Mas o epicentro da prática portuguesa é a Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, que possui uma própria corrente estética. Hoje referência no panorama internacional, a Escola do Porto nasceu opondo-se ao regime salazarista. A Revolução dos Cravos em 25 de abril de 1974, que derrubou a ditadura, possibilitou reabertura do país para o mundo, inclusive para receber a influência do modernismo a partir do Brasil, como me contou um simpático guia pernambucano na Casa da Arquitectura, comprovando mais uma vez o diálogo transatlântico.
O início do fim do ufanismo nacionalista institucional também abriu caminho para Portugal ser casa de trabalhos arquitetônicos de fora. A Gare do Oriente, em Lisboa, de Santiago Calatrava e a Casa do Música, no Porto, de Rem Koolhaas são apenas dois exemplos. A
menciona esse último em uma edição sobre A força do olhar estrangeiro, da sua ótima newsletter Trem das Onze.É exatamente a confluência de correntes estéticas, culturas e até desastres naturais, como o terremoto de Lisboa em 1755, que compõem a arquitetura portuguesa hoje. Um caldo que mistura influência árabe, estilos Manuelino, Pombalino e Art Deco à contemporaneidade, preservando um e projetando outro. O resultado é um chamado irresistível a conhecer o país pelos seus traços, contemplando o que é belo e útil, na contramão das viagens massificadas, aceleradas e autocentradas dos nossos tempos.
FLÂNEUSERIE 💃🏻
[Recomendações de lugares por onde andei, testei e aprovei]
— Museu do Côa, Quinta do Portal e Centro de Alta Performance de Remo, na região do Alto Douro Vinhateiro;
— Casa das Histórias Paula Rego, em Cascais;
— Ponte para pedestres sobre a Ribeira da Carpenteira, na Serra da Estrela;
— Bairro Social da Bouça, no Porto;
— Terminal de Cruzeiros do Porto de Leixões e Oficina de Turismo, em Matosinhos.
SALVO EM ONDE QUERO IR 💾
[Onde ainda não fui, mas salvei na lista para ir]
— Casa da Escrita, em Coimbra;
— Piscinas Atlânticas, na Ilha da Madeira;
— Museu Marítimo de Ílhavo e Aquário de Bacalhau, em Aveiro;
— Centro Interpretativo do Tapete de Arraiolos e Livraria e Arquivo Municipal de Grândola, no Alentejo;
— Vinhos dos Açores, na Ilha do Pico;
— Pousada do Palácio de Estói, no Algarve.
UMA ÚLTIMA VISTA D'OLHOS 👀
[Inspiração para espreitar antes de ir embora]
— Paisagem concreta, o documentário que conecta a obra de Álvaro Siza Vieira no Porto à Fundação Iberê Camargo em Porto Alegre;
— Os destinos de viagem arquitetônicos mais adorados;
— Episódio do podcast No país dos arquitectos sobre o futuro da habitação;
— A beleza salvará o mundo, lições de Dostoiévski a respeito;
— As melhores histórias de viagem em 2023, segundo a BBC.
Obrigada por ter lido até o fim! Me escreve de volta ou usa os botões abaixo para me dizer o que achou e recomendar algo? Isso ajuda muito o meu trabalho!
Bom proveito e até a próxima edição – toda sexta-feira na tua caixa de entrada ou no aplicativo do Substack!
Com carinho,
“Ainda que viajemos o mundo em busca de coisas belas, precisamos carregar a beleza conosco para encontrá-las” — Raplh Waldo Emerson, escritor norte-americano.
Eu trabalhei durante oito anos em um equipe multidisciplinar em que eu era a única pessoa de TI e a maioria era de arquitetos e engenheiros civis. E com a convivência, papos no almoço e no cafezinho, essas coisas, eu aprendi a observar melhor essa dualidade função X estética. É um campo fascinante a arquitetura.
Eu nunca fui a Portugal, preciso resolver essa pendência.
ain gabi que incrível! tenho nem roupa pra essas referências, é tudo maravilhoso. E obrigada pela menção! <3<3