18 | Marrakech abriu-me os olhos à cor 🎨
Relato de uma viagem de fim de semana à cidade mais visitada do Marrocos, este país mosaico onde a luz inspira a criatividade expressa a partir das cores, feito um caleidoscópio a formar padrões.
“Marrakech foi um grande choque para mim. Esta cidade ensinou-me cor, e eu abracei a sua luz, as suas misturas insolentes e as suas invenções ardentes”, Yves Saint Laurent, um dos criadores da marca francesa de alta costura.
A frase que abre esta edição é do famoso estilista, mas antes dele quem também se impressionou com a luz de Marrakech foi o pintor francês Jacques Majorelle. Em 1919, durante o Protetorado Francês, o artista instalou-se na cidade para tratar problemas do coração. Cinco anos mais tarde, começou a construir o trabalho de sua vida: o Jardin Majorelle, inspirado nos jardins islâmicos, com cerca de 3 mil espécies botânicas trazidas de suas viagens e, claro, uma vivenda de estilo mourisco e art déco com ecos de Le Corbusier pintada no seu próprio Majorelle Blue.
O tom de azul intenso, fresco e profundo contrasta com outras cores, principalmente o amarelo, o verde e o ocre presentes em vasos, janelas e fontes espalhados ao longo de um hectare que é uma obra de arte viva, em constante movimento. Foi aberto ao público em 1947, mas abandonado pouco depois quando Jacques Majorelle sofreu um acidente de carro e se mudou para Paris, onde desapareceu em 1962.
Nessa mesma época, Yves Saint Laurent e Pierre Bergé viajaram pela primeira vez a Marrakech e sentiram-se atraídos pelo jardim criado por seu compatriota. “Fomos seduzidos por aquele oásis onde as cores de [Henri] Matisse se misturam com as da natureza”, dizem em entrevistas. A paixão foi tanta que decidiram comprá-lo para evitar que um grupo hoteleiro destruísse o local.
Lá viveram por um tempo e coordenaram os restauros fundamentais, mantendo a proposta de Jacques Majorelle, para que o espaço atraísse os atuais cerca de 800 mil visitantes por ano. E, principalmente, passaram a enxergar as cores, reverenciadas hoje no Musée Pierre Bergé des Arts Berbères, expressas em coleções icônicas da grife que podem ser vistas no Musée Yves Saint Laurent e na série de cartões postais Love que enviavam anualmente a amigos, familiares e clientes da grife.
O complexo é um oásis bem próximo à Medina, o coração de Marrakech, a cidade mais visitada do Marrocos, no Norte da África. O azul cobalto do jardim contrasta com os tons avermelhados que justificam o apelido Red City, tornando ainda mais únicos e até complementares os dois lugares. Neste país magrebino, a cor é protagonista e até é associada às cidades: branco para Casablanca, azul para Chefchaouen e assim por diante. Sem contar a própria bandeira marroquina: em vermelho encarnado com um pentagrama verde ao centro, representando respectivamente a realeza do profeta Maomé e o islamismo.
Tanta relevância dada à cor, resultado da interação da luz com a escuridão, só é possível graças à uma incidência solar peculiar. Não à toa o Marrocos autodenomina-se o Reino da Luz. Agora some a isso a presença do deserto do Saara no território.
“O brilho do sol marroquino, em conjunto com a gama do jogo de sombras — do nítido ao espectral — afeta dramaticamente a forma como lemos a cor e a massa. Fabricados com o mesmo material, os planos que se cruzam de um edifício tornam-se veículos para infinitas mudanças tonais, enquanto a forma escultural de uma folha é constantemente redesenhada pela luz. Neste ambiente, o olho olha para as linhas literais de cores e padrões tecidos em tapetes espalhados pelo chão e vê apenas continuidade e convergência”, define o arquiteto John Pawson.
Na sexta-feira passada, deixei um Porto frio e cinzento para voar por 1h40 até Marrakech e antecipar a primavera por um fim de semana. Cheguei bem tarde da noite, então a surpresa da luz ficou para o dia seguinte. Acordei com os alto-falantes das mesquitas chamando à primeira oração, cuja repetição ao longo dos dias não deixou de ser menos impressionante para mim. Enquanto ainda bocejava, vi os primeiros raios de sol baterem no vitral verde-alaranjado da porta para pintar um quarto cujo nome já era Jaune, amarelo em francês.
Por ser um fenômeno fisiológico, mas de caráter subjetivo e individual, cada pessoa irá perceber a reemissão da luz vinda de um objeto de determinada forma. Talvez seja aí que reside a força da criatividade marroquina, que atrai artistas do mundo todo em busca de inspiração e que me impressionou tanto logo ao deixar o hotel para o primeiro passeio do dia.
É que dei de cara com um dos vários souks, os mercados com mil anos de existência onde se negocia de tudo: cerâmica, iluminação em metal (sim, como a lâmpada mágica do Aladdin), lenços e turbantes, babouches e outros sapatos e bolsas em couro (tingidos tal qual aquele curtume exibido na novela O clone), cestaria e a lista não termina nunca. O que mais gostei de observar foram os tapetes marroquinos, de técnica ancestral vinda das vilas da cordilheira do Atlas.
Jantando ao anoitecer em um dos vários terraços ornamentados com buganvílias multicoloridas, vi que as cores são igualmente vibrantes nas feiras onde são vendidas as especiarias, que também dão tanto sabor aos pratos que experimentei ao longo da viagem: cuscuz marroquino, tajine de frango, almôndegas de sardinha e churrasco de cordeiro, sempre acompanhados de chá de menta servido nas alturas que garantiu a boa digestão. Nunca vi um açafrão tão amarelado, quase laranja. Para ser honesta, a única coisa que achei um pouco desbotada foram as azeitonas, mas compensavam no gosto.
A explosão para os sentidos atinge o seu ápice na mítica Praça Jemaa El-Fnaa, o centro da vida pública desta cidade marroquina. Há barracas de comida, encantadores de serpentes, mulheres que fazem tatuagem em henna, apresentações musicais e de dança, adestradores de macacos e muita, muita gente sempre. Frente a tantos estímulos, os tradicionais vendedores de água que já tiveram enorme importância no deserto destacam-se, novamente, pela cor das suas vestimentas em vermelho, amarelo e verde. A figura do Gharrib faz parte da cultura nativa e nômade do Norte da África chamada amazigue e quer dizer homem livre — não use o termo berbere, que vem de bárbaro e é pejorativo.
Espaços como a Madraça Ben Youssef, que já foi a escola corânica mais importante do país, e o Palais Bahia, que quer dizer brilho, reforçam a genialidade não só na escolha da coloração, mas no desenho das estruturas que irão emoldurá-la de certa forma. Os desenhos em concreto, madeira e ferro são infinitos. Tamanha a habilidade para criar os mais variados padrões, penso em um caleidoscópio, cuja etimologia deriva das palavras gregas καλός (kalos), “belo, bonito”, είδος (eidos), “imagem, figura”, e σκοπέω (skopeō), “olhar (para), observar”.
Em Marrakech, branco somente no luto estampado na roupa das mulheres por até 40 dias após a morte de seus entes queridos. E no seu belíssimo aeroporto, uma surpresa tanto na chegada, quanto na partida. Como alguém que já viveu na Península Ibérica em dois momentos da vida, me pergunto por que levei tanto tempo para visitar o Marrocos, dada a proximidade geográfica, histórica e até cultural em certos sentidos. É uma pergunta que não sei responder, só tenho pistas, mas me alegro ao constatar ter conhecido com um olhar mais maduro, sensível e atento a tantas belezas oferecidas. Voltarei.
FLÂNEUSERIE 💃🏻
[Recomendações de lugares por onde andei, testei e aprovei]
— Les Bains de Marrakech, onde fiz o hammam, um tipo de banho tradicional do Marrocos que envolve imersão, sauna e esfoliação profunda;
— Amal Women’s Training Center, uma das melhores, se não a melhor, refeições da viagem foi neste lugar, que acolhe e treina mulheres marroquinas em situação de vulnerabilidade;
— Dar Rbaa Laroub, uma das primeiras guesthouses de Marrakech, mantida por um francês apaixonado há décadas pela cidade, com staff local atencioso, um terraço 360° com vistas para o Atlas, decoração autêntica e lareira nos quartos, portanto ideal para quem viaja nos meses mais frios;
— Chez Lamine, é o local para quem deseja experimentar, junto com locais, o michuim, o típico cordeiro do Norte da África assado em um buraco;
— Moro Marrakech, a concept store mais incrível que alguma vez já visitei, uma verdadeira explosão da criatividade do Marrocos, bem perto do Jardin Majorelle.
SALVO EM ONDE QUERO IR 💾
[Onde ainda não fui, mas salvei na lista para ir]
— Bacha Coffee, um espaço com a vibe Wes Anderson para experimentar o autêntico café arábico;
— Ensemble Artisanal, um shopping popular para ver ou comprar os mais variados objetos com preços melhores, dizem;
— Museu Marroquino de Artes Culinárias, local para fazer um workshop com especialists e comer a comida feita com as próprias mãos;
— Soufiane Zarib, uma loja de tapetes marroquinos que respeita as tradições no feitio manual;
— La Maumonia, um dos hotéis de luxo mais tradicionais da cidade, para ir quando dinheiro não for um problema, ou aproveitar restaurante, spa e jardins quando ainda não der para pagar a diária.
→ Tem alguma recomendação? Deixa pelos comentários!
UMA ÚLTIMA VISTA D'OLHOS 👀
[Inspiração para espreitar antes de ir embora]
— Habibi, a playlist que criei para ouvir mais música árabe;
— Uma meditação a partir das cores, pela artista Dora Kamau, que vi na newsletter da
;— O voo que passa perto da Antártica, do Chile à Austrália, com 15 horas de duração;
— Como é morar no Barbican, espaço cultural brutalista que é um dos lugares mais interessantes de Londres;
— Um restaurante no meio de um fiorde, na Noruega, mas poderia ser no espaço;
— As coisas mais irritantes que viajantes fazem, segundo esta pesquisa.
Shukran, obrigada em árabe, por ter lido até o fim! Vou adorar saber o que você achou ou se tem alguma dica para me dar. Responde este e-mail ou deixa pelos comentários?
Neste fim de semana, vou postar uns stories atrasados (como sempre, porque a prioridade é viver) da viagem a Marrakech no meu Instagram. Então, se houver interesse em uma narrativa mais visual e, claro, colorida, espia em @gabrieleds.
Bom proveito e até a próxima edição – toda sexta-feira na tua caixa de entrada ou no aplicativo do Substack!
Salaam! Com carinho,
“My parents were lovers of books, and they raised us in a manner that viewed freedom and subversion as indispensable.” Leïla Slimani, escritora franco-marroquina que vive em Lisboa. Dela, recomendo “Canção de ninar” e “No jardim do ogro”. Pretendo começar “O país dos outros” nos próximos dias.
ahhhh eu já ia marcar a Helena Vilela, e a vi nas recomendações!!! Aguardo ansiosamente um texto em parceria de vcs duas! <3
Sempre tive muita, muita vontade de conhecer o Marrocos, sempre quis ver o deserto de perto. Amo Casablanca, sou apaixonado pela cultura árabe, aqui no Ceará consigo perceber muitos traços desses povos em nossa cultura.
sobre Marrakesh, lembrei daquela expressão "estou pra lá de Marrakesh", para se dizer que está em um outra dimensão mental. no mundo da lua, no mundo dos sonhos, talvez. Pela sua descrição essa cidade parece um sonho.
Aaaaa, obrigado , nunca mais usarei Berbere.