3 | Uma cidade que é um mundo 🗺️
Seguindo os passos de Virginia Woolf para flanar em Londres, onde há sempre tanto por descobrir graças à imigração.
“Londres por si também atrai, estimula, me fornece uma peça & um conto & um poema, sem dar trabalho nenhum, a não ser o de bater perna pelas ruas”. Virginia Woolf, Diário, 31 de maio de 1928.

Em poucos dias viajo a Londres. Será a terceira vez por lá em uma década, seguindo as estações do ano: primeiro na primavera, depois num verão escaldante que coincidiu com os últimos dias do reinado de Elizabeth II e, agora, espero que mais sob a luz do que a chuva de outono.
Meu debut foi demasiado turístico: Trafalgar Square, Piccadilly Circus e até o museu Madame Tussauds. Não me orgulho, mas acho que aos 22 anos não teria como ser muito diferente – o filme das Spice Girls que alugava todo fim de semana quando criança ainda estava muito presente no meu imaginário. Ainda assim, lembro que adorei sentar nos gramados verdíssimos e observar as pessoas tentando absorver cada raio de sol enquanto comiam algum prato pronto do Pret A Manger.
A segunda visita já foi mais interessante, profunda e contemplativa. Enxerguei a cidade com os olhos de quem lá vive: os do meu amigo querido Giovanni Bello, que me levou para visitar os seus lugares preferidos e até a BBC, onde trabalha como vídeo-jornalista.
Fiquei mais tempo, conheci bairros que mais parecem cidades autônomas, descobri e caminhei à beira do extenso Regent's Canal, fiz turismo de arranha-céu, frequentei vários mercadinhos e fui a dois dos vários museus gratuitos.
Novamente hospedada na trendy East London, desta vez tenho um objetivo específico para os próximos dias: conhecer restaurantes de diferentes partes do mundo que compõem a colcha de retalhos que é Londres. Nada contra fish and chips – inclusive, saudades de comer as fritas com vinagre –, mas é que peixe e batata tenho de sobra em Portugal.
Os clássicos sunday roast e english breakfast tampouco me fisgaram em outras oportunidades, apesar de gostar de chuchar tudo no molho gravy. Mas não vou abrir mão de scones e shortbreads acompanhados de chá com leite. Deal!
Se tudo der certo, também vou abocanhar a gastronomia da Geórgia, do Afeganistão, da Índia, do Vietnã, da Turquia e da Malásia feitas na capital inglesa. Caribe e África também serão adicionados ao roteiro, caso o o tempo permita. Fome há de sobra.
Entre uma refeição e outra, pretendo visitar algumas livrarias salvas no Google Maps e ir a algumas exposições, como a da Marina Abramović. Leia até o fim para ver minha lista completa.
“I only do something if I’m afraid of it, because that’s the whole point”, Marina Abramović em entrevista à Royal Academy of Arts.
Alimentar corpo e alma para o inverno que aí vem. Comer o mundo em Londres, uma cidade tão inesgotável que dá a sensação de nunca conseguir abraçá-la por inteiro. Brinco que provavelmente teria FOMO (fear of missing out) se lá vivesse, tamanha a quantidade de atrações que a capital inglesa é capaz de oferecer por metro quadrado.
Mas a verdade é que tenho alegria em deixar sempre algo por conhecer para ter a desculpa (e o privilégio) de voltar. Me fascina o tanto que Londres expande o campo de visão, como se precisasse ir de tempos em tempos para ver melhor. Para mim, isso só é possível graças à diversidade cultural proveniente de imigração – os britânicos são minoria na cidade desde 2012 e o Brexit não afetou a chegada de novos moradores.
É mesmo uma cidade estimulante, como escreveu a flâneuse que foi de Kensington a Bloomsbury: Virginia Woolf. Dela, li este ano com o clube Leia Mulheres Porto o clássico Mrs. Dalloway. Não posso dizer que foi uma leitura fácil, mas foi incrível percorrer a cidade a partir de Clarissa e com as badaladas do Big Ben de fundo.
Lauren Elkin sugere, inclusive, que Mrs. Dalloway é a maior flâneuse da literatura do século 20 em seu livro de mesmo nome:
“Woolf refletiu profundamente sobre a relação entre as mulheres e a cidade. Em 1927, escreveu seu grande ensaio sobre o flâneuse-ar, o qual intitulou "Batendo pernas nas ruas". Em inglês, "Street Haunting". Duas palavras, sem hífen. À procura de um lápis, a narradora atravessa Londres a pé, prestando atenção. Sua observadora urbana é "uma ostra de percepção"; não uma mineira, nem mergulhadora, nem nada que sequer tenha cérebro – apenas "um enorme olho", levado pela cidade corrente abaixo.”
No último mês e na companhia de outro clube, o Mulheres do Atlântico, conheci a perspectiva mais atual de Natasha Brown, uma mulher negra que escreveu o já aclamado pela crítica Assembly – traduzido em Português do Brasil para Este não é o seu lar.
Impossível não reparar como a cidade, que ainda é a capital do império britânico (com todos os problemas e problemáticas dessa definição), apresenta-se de forma diferente para as duas londrinas em função da cor da pele. Mesmo com a protagonista de Brown — que não tem nome, podendo ser tantas — tendo ascendido socialmente.
A história é reflexo da geração Windrush, nome de um dos primeiros navios a chegar ao Reino Unido após a Segunda Guerra Mundial trazendo imigrantes de ex-colônias caribenhas para trabalhar em várias áreas. O sociólogo Stuart Hall, o piloto de F1 Lewis Hamilton e a escritora Andrea Levy, por exemplo, são descendentes deste grupo.
Apesar de ter feito campanha por esta onda imigratória para restabelecer a força de trabalho em função das perdas humanitárias, o governo britânico não documentou corretamente as famílias, que sofrem as consequências desse descaso até hoje. Também cometeu uma série de outros erros, como deportar pessoas com problemas mentais.
Fico pensando o que Virginia pensaria da Londres de hoje, um século depois, quando o imperialismo que matou o personagem Septimus Warren Smith ainda se faz presente de tantas formas. Arrisco dizer que teria mais estímulos para caminhar e escrever, usando as ruas e as pessoas, especialmente as mulheres, como inspiração. Talvez ficasse mais em paz com a necessidade de descansar no campo para compensar tanta agitação na cidade.
Um tour pela vida de Virginia Woolf em Londres com Street View.
FLÂNEUSERIE 💃🏻
[Recomendações de lugares por onde andei, testei e aprovei]
— Ir a mercados e feiras de rua de todos os tipos, como Broadway Market, Ridley Road Market, The Bricklane Vintage Market e Columbia Road Flower Market;
— Comer nestes lugares: The Beigel Shop, Mare Street Market, Mercato Mayfair (uma igreja transformada em praça de alimentação), Humble Crumble;
— Descansar em algum dos infinitos parques, sendo o London Fields e o Regent's Park dois dos que mais gostei;
— Enxergar a cidade do alto (e bebericar algo) no Sky Garden;
— Visitar os incríveis Barbican, Tate Modern e Victoria and Albert Museum para consumir arte e arquitetura ao mesmo tempo;
— Tomar um pint no The Counting House ou no The Churchill Arms, dois pubs bem tradicionais. Comi um pad thai ótimo no último, rodeada de imagens do ex-primeiro ministro britânico.
“That’s what the market is all about. People meet and talk, and just get on with it, buy your food and whatever. I just come out for a walk, it keeps me going”, da fotógrafa Tamara Stoll em seu livro especialíssimo sobre o Ridley Road Market.
SALVO EM ONDE QUERO IR 💾
[Onde ainda não fui, mas salvei na lista para ir]
— Assistir a um espetáculo no magnífico Royal Albert Hall;
— Fazer um happy hour no The Spurstowe Arms;
— Olhar os livros na Daunt Books, London Review Bookshop, Judd Books e Book for Cooks (com sorte, comer alguma receita feita na cozinha da própria livraria);
— Navegar pelo Tâmisa de Uber Boat;
— Conhecer Kew Gardens, o jardim botânico real que também é nome de um livro da Virginia Woolf;
— Tomar um chá da tarde no restaurante com vista para o rio do belíssimo Globe Theatre, onde as peças de Shakespeare eram encenadas;
— Espiar as Serpentine Galleries, na divisa entre os jardins de Kensington e o Hyde Park;
— Olhar os prédios em Canary Wharf, um complexo de edifícios comerciais;
— Ver as luzes de Natal na famosa loja de departamento Harrods;
— Visitar a exposição Surrealism and Witchcraft (em cartaz até dezembro), que investiga a ressonância da figura da bruxa na história da arte através das obras de 10 artistas femininas inspiradas no Surrealismo, incluindo a incrível Paula Rego e Leonora Carrington, cujo título A corneta foi lançado há pouco tempo no Brasil.
Veja em detalhes o quadro School for Little Witches pintado pela surrealista portuguesa em vingança a uma professora de matemática que dizia que os seus desenhos eram lixo. A peça foi vendida para um museu de Londres por meio milhão de euros em 2022.
UMA ÚLTIMA VISTA D'OLHOS 👀
[Inspiração para espreitar antes de ir embora]
— Ouvir: uma playlist que celebra a geração Windrush, que modificou a cena black cultural no Reino Unido;
— Maratonar: comecei a série pela Victoria, a Posh Spice, mas terminei encantada por toda a família Beckham, disponível na Netflix. Este reels do Caio Braz está imperdível e convence até os mais céticos a assistir;
— Vem aí: a temporada final de The Crown, a novelinha real britânica que amamos odiar, promete entregar tudo a partir de 16 de novembro. Veja o trailer e se emocione com as cenas finais da lady Di;
— Assistir: graças ao cinema da minha cidade, conheci há pouco tempo a cineasta britânica Joanna Hogg e foi amor à primeira vista. Em Eternal Daughter (2022), a gigante em todos os sentidos Tilda Swinton interpreta mãe e filha em um cenário bucólico bem english countryside. Recomendadíssimo, em especial para quem gosta de pensar esse tipo de relação tão complexa.
Obrigada por ter lido até o fim! Me conta se algo do que escrevi fez sentido por aí? Vou adorar saber se você também tiver alguma dica para me dar ou seguir alguma recomendação minha.
Bom proveito e até a próxima edição – toda sexta-feira na tua caixa de entrada ou no aplicativo do Substack!
Com carinho,
“Travel is fatal to prejudice, bigotry, and narrow-mindedness", Mark Twain, escritor e humorista estadunidense crítico ao racismo – como todo o mundo deveria ser.
Eu devo ser um pouco mais velho, pois você falou que alugava Spice World quando criança, mas eu fui muito fanático pelas Spice Girls durante a adolescência. Só pude ir a Londres uma vez, há 10 anos, mas coincidiu com a exibição do musical Viva Forever no West End e pude assistir. Não era essas coisas, mas foi muito divertido cantar as músicas dentro do espetáculo.
Gabi e sua capacidade de despertar nosso interesse de viajar para todo e qualquer destino. Parabéns por mais uma curadoria profunda e cuidadosa. Também fui a Londres durante nosso intercâmbio, acompanhada de nossas queridas Paulete Medeiros e Isa Saci. Quero voltar algum dia, agora com outros olhares! Obs: vou passar a semana impactada com a frase da Marina Abramović que você citou. Abraços.