4 | Turismo nos tempos do cólera 💀
Conhecer para entender e evitar, não para espetacularizar tragédias, é o ponto central do dark tourism, que instiga certo tipo de curiosidade que existe em todos nós.
Por não gostar de filmes de terror, passei o Halloween assistindo à série Dark Tourist (2018). Ao longo de oito episódios de uma única temporada, viajei o mundo com o jornalista neozelandês David Farrier para investigar o fenômeno global do turismo macabro, termo que não conhecia, mas que está ligado à busca por experiências únicas.
Não se trata de algo novo: os irmãos Michelin publicaram um guia do campo de batalha na França em 1917, antes mesmo de acabar a Primeira Guerra Mundial, com fotos de antes e depois para os visitantes. Ouvido pelo Washington Post, o professor de turismo que classificou o dark tourism há quase 30 anos garante que o fenômeno começou ainda com os enforcamentos públicos na Londres do século 16. Acrescenta que há evidências de pessoas que assistiram à Batalha de Waterloo a partir de carruagens.
Pesquisas indicam um número cada vez maior de pessoas que tiram férias para visitar lugares associados à morte ou destruição na atualidade. Cemitérios, catacumbas, prisões e memoriais que remetem a genocídios, pragas e até desastres nucleares são exemplos de dark places. Há quem diga que as redes sociais tornaram mais visível, e talvez mais voyeurístico e até sensacionalista esse estilo de viagem.
"É como uma viagem estranha. Uma fuga antes de voltar à sua vida chata e normal", define o repórter no trailer do programa de TV ao redor da motivação em persegui-los.
Minha primeira impressão foi ruim. Exceto pela parte dedicada a Pablo Escobar, não gostei do episódio latino-americano que inaugura a série. Achei questionável pagar para ter a falsa experiência de cruzar a arriscada fronteira entre México e Estados Unidos.
Ainda que contrariada, decidi continuar assistindo para ver onde aquilo iria dar. Por também ser jornalista, para mim não é novidade o fascínio que boa parte das pessoas têm pelo bizarro. Não à toa as notícias mais mórbidas costumam ser as mais lidas e tal pulsão de morte frequentemente motiva debates em torno da ética na comunicação.
Mas tenho a impressão de que viajar em busca de diferentes tipos de tragédia vai além. Afinal, já não basta dar conta da transmissão em tempo real pelas redes sociais de duas guerras atualmente em curso, feita inclusive por blogueiros de viagem? Pola Salem, por exemplo, escolheu mostrar momentos comoventes de humanidade durante o horror.
Arrisco dizer que os resquícios do que acontece agora na Faixa de Gaza e na Ucrânia serão visitados por turistas macabros no futuro. Na verdade, o muro que impede a passagem de palestinos já é uma atração turística antes mesmo de outubro de 2023.
Voltando à série, à medida que os episódios eram finalizados, os meus preconceitos em torno do assunto caíam por terra. Ao me ver obcecada por uma ilha abandonada no Japão visitada por Farrier, me dei conta de que também busco experiências sombrias de vez em quando. Talvez não me desloque especificamente para conhecê-los, mas tampouco desvio de lugares macabros quando faço um roteiro de viagem.
No entanto, é o que muita gente faz no Chipre, por exemplo, que aparece no episódio europeu de Dark Tourist. A ilha mediterrânea é palco de um conflito entre turcos e gregos que está em aberto há 40 anos. A disputa literalmente divide a região em duas, inclusive com uma zona desmilitarizada criada pela ONU que resultou em uma cidade-fantasma.
Ao tentar adentrá-la, o jornalista da Nova Zelândia quase foi preso. Então, de certa forma, é compreensível que a maioria dos turistas que decide conhecer a cultura cipriota passe longe de regiões mais tensas. Mas uma vez lá é no mínimo instigante entender o que se passa, pelo menos para mim.
Outro episódio excelente da série foi o terceiro, no qual David Farrier visita países terminados em "stão": um lago formado por explosão nuclear no Cazaquistão, onde ainda existe um drama humano 30 anos depois do fim dos testes bélicos feitos pela União Soviética, e o super fechado e corrupto Turcomenistão – definido como uma mistura entre Coreia do Norte e Las Vegas.
As passagens pelo Sudeste Asiático e pela África também se mostram interessantíssimas, principalmente em comparação aos Estados Unidos. Enquanto no Camboja o jornalista demonstra os limites que o turismo macabro deve ter, no Benim ele participa de um festival vudu, que certamente preparou-o espiritualmente para conhecer um grupo de brancos separatistas sul-africanos logo na sequência.
À meio da série comecei a listar os dark places que já visitei e, para minha surpresa, foram vários. A verdade é que resultaram em experiências que me marcaram, fizeram refletir e geraram conversas. Não seria esse um propósito para viajar? Indo além, salvei vários lugares citados na série para um dia visitar. Continue a leitura para acessar as duas listas.
Em dado momento, David Farrier resume o que talvez seja o ponto central desse tipo de viagem, ainda que escancare o privilégio que por si só é viajar:
"Fui forçado para fora da minha zona de conforto. E de algum modo, fez eu me sentir mais feliz por estar vivo".
Não se trata de contribuir com a espetacularização de tragédias (infelizmente algo que alguns turistas macabros reforçam, como mostra a série), mas de conhecê-las em maior profundidade e, sobretudo, de entendê-las.
Pode ser romantismo demais esperar que esse tipo de turismo faça parte da solução dos problemas explorados, como apontou este artigo do The Guardian, mas não é má ideia ao menos evitar que aconteçam novamente. Ou pelo menos contribuir para o desenvolvimento socioeconômico de um lugar arrasado. Especialmente se pessoas sérias e comprometidas estiverem por trás das experiências turísticas sombrias.
Também conta saber quando visitar tais lugares, porque tenho a impressão de que o tempo é um fator fundamental para esta categoria de viagem — quanto menos recente a tragédia, mais ético será visitá-la. Assim como a postura de viajantes: não fazer selfies sorridentes em locais que já presenciaram catástrofes é o mínimo que se espera de um dark tourist, como já teve que solicitar o memorial de Auschwitz.
(Not so) fun fact: A série de TV não teve continuidade por conta de uma tragédia da qual em maior ou menor medida todos nós ainda nos recuperamos, a pandemia de Covid-19.
FLÂNEUSERIE 💃🏻
[Recomendações de lugares por onde andei, testei e aprovei]
— Pompéia, o famoso sítio arqueológico no Sul da Itália cujas ruínas resultaram da erupção do vulcão Vesúvio, em 79 d.C. Foi certamente um dos lugares mais fascinantes que já visitei e faço planos de voltar;
— Pueblo Garzón, uma vila abandonada no Uruguai depois da desativação de uma linha de trem. Recentemente tem voltado à vida – não só pelo restaurante do argentino Francis Mallmann, mas também como um destino de arte;
— Auschwitz-Birkenau, o maior e mais famoso campo de concentração do extermínio judeu cometido pelos nazistas, na Polônia. Experiência intensa da qual é difícil não sair devastada;
— Capela dos Ossos, uma igreja no Alentejo, em Portugal, com 5 mil caveiras. Foi construída a mando de frades franciscanos a fim de passar a mensagem da impermanência da vida. Logo na entrada, lê-se: “Nós ossos que aqui estamos, pelos vossos esperamos”;
— Cemitérios do Père-Lachaise, em Paris, da Recoleta, em Buenos Aires, e Prado do Repouso, no Porto, que atrai visitantes por abrigar túmulos de pessoas famosas ou por serem monumentais. Nesse último, inclusive, já fiz um tour interessantíssimo.
SALVO EM ONDE QUERO IR 💾
[Onde ainda não fui, mas salvei na lista para ir]
— Experiências mais interessantes citadas na série Dark Tourist: culto à Santa Muerte, no México, ilha abandonada de Hashima, no Japão, Gates of Hell, no Turcomenistão, cidade fantasma de Famagusta, no Chipre, rito funerário de Ma'Mene, na Indonésia, cultura voodoo no Benin e o township de Alexandra, na África do Sul;
— Chernobyl: tenho vontade de conhecer desde que assisti à série de mesmo nome, que dramatiza os acontecimentos decorrentes do acidente nuclear de 1986. Recentemente, o produtor da série pediu respeito aos turistas macabros que visitam a região entre a Ucrânia e a Bielorrússia;
— Salém: a história do enforcamento público nesta cidade dos Estados Unidos apareceu de duas formas este ano para mim. Primeiro no teatro com a encenação do texto original de Arthur Miller. Depois, lendo Eu, Tituba: Bruxa Negra de Salém com o clube
em outubro.Na discussão, a colega leitora e tradutora Juliana Lopes recomendou visitar a cidade próxima a Boston, nos Estados Unidos, onde os julgamentos aconteceram em 1692. As atrações são várias: museus, memoriais e walking tours específicos.
“Acho que Salém equilibra bem a homenagem e a memória das vítimas com o turismo baseado no fato da cidade ser chamada de ‘cidade das bruxas'", conta Juliana, que sugere a visita exatamente no Halloween.
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UMA ÚLTIMA VISTA D'OLHOS 👀
[Inspiração para espreitar antes de ir embora]
— Yellow Jackets, uma dupla de fotógrafos, Ivy e Athon, que documenta lugares abandonados na Europa sem revelar a localização, mas entregando belíssimas imagens;
— Livro Detalhe menor, da palestina Adania Shibli, que foi finalista do International Booker Prize e aborda a experiência de expropriação, além da violência sofrida há décadas pela população;
— Filme Wajib, da também palestina Annemarie Jacir, uma comédia dramática bastante comovente que demonstra diferentes (e dolorosas) formas de encarar um conflito tão complexo;
— Edição de coluna da Fabiane Secches sobre os sentimentos diante de uma guerra.
“Travel, in the younger sort, is a part of education; in the elder, a part of experience”, Francis Bacon.