42 | Estrangeira em todos os lugares 🏳️
A Bienal de Veneza das primeiras vezes, inclusive a minha.
“O primeiro passo para ver é ver que há coisas que você não vê”, Akwaeke Emezi, escritore de ficção e videoartiste nigeriane.

Os venezianos, que conquistaram o mundo e foram potência colonial do Mediterrâneo da Idade Média, já foram refugiados. Foi no século V, quando forjaram uma cidade improvável, em meio a uma laguna, para fugir de invasões. À luz dos dias de hoje, não se tratavam de bárbaros ou sequer de estrangeiros: eram os romanos.
Para não serem abocanhados pelo o que veio a ser um dos maiores impérios da História, os habitantes do Vêneto instalaram-se em um terreno alagado, argiloso, movediço. Tinham a vantagem de saber navegar. Só os locais sabiam mover-se pelos canais que recortam o que atualmente é Veneza, um peixe vista de cima.
Na tentativa de criar casas que não afundassem, tiveram primeiro que estabelecer raízes. Estabilizaram o terreno com estacas de madeira até a argila. É que migrar assemelha-se mesmo à dificuldade de construir uma casa em alto mar.
Só na praça San Marco, são 100 mil estacas fincadas para sustentar o que veio a ser um dos locais mais visitados em todo o mundo. Quase como uma floresta invertida que ninguém vê. São mesmo raízes: não apodrecem, porque não têm contato com oxigênio, tanto que estão lá até hoje, ainda que com o reforço do ferro. Mas o movimento permaneceu de alguma forma: das pessoas, da maré e das marolas dos barcos e até das casas, que são flexíveis com quem emigra tem de ser.
Nos últimos meses, o brasileiro Adriano Pedrosa, que é diretor artístico do Museu de Arte de São Paulo (MASP), levou outras florestas à Veneza para além daquela submersa. Foi a sua atuação como curador da 60ª edição da Esposizione internazionale d'arte di Venezia, a tradicional Bienal de Arte de Veneza, que me fez querer visitar a Sereníssima pela segunda vez na vida. Quando li que o tema desta edição seria Stranieri Ovunque — Foreigners Everywhere, não tive dúvidas de que precisava ir. É assim que me sinto desde que saí de casa, inclusive em casa, qualquer que seja o seu significado.
Para quem tampouco é deste universo, a Bienal de Veneza é uma exposição realizada de dois em dois anos desde 1895 e que fica em cartaz por sete meses, geralmente entre abril e novembro. Barômetro da arte global, assemelha-se a uma Olimpíada. Isso porque, além de haver uma premiação que acontece no dia da abertura, dá a chance de ver o mundo todo ao caminhar pelos pavilhões comissionados por diferentes países, somados àqueles centrais que organizam e dão sentido à mostra.
Tanta arte assim e de todos os tipos fica exposta por toda a cidade flutuante, mas concentrada em duas áreas mais afastadas das hordas de turistas. Comecei pelo Arsenale, um antigo complexo de estaleiros, e depois fui ao Giardini della Biennale, onde tudo começou e estão os pavilhões nacionais — alguns deles construídos por arquitetos conhecidos mundialmente, o que acaba sendo uma atração por si só. E, como se está em Veneza, há a laguna para olhar ao redor entre uma exposição e outra, sem contar a comida boa.
Enquanto admirava a quantidade de cores e a riqueza de detalhes do mural pintado pelo coletivo Movimento dos Artistas Huni Kuin (Mahku) na principal fachada da exposição, um homem se aproxima, disse que me ouviu conversar e me pergunta se sou brasileira. Embora um pouco desconfiada, digo que sim e reparo que tem um crachá da Biennale escondido entre o casaco e o cachecol. Antes que conseguisse lê-lo, apresenta-se e me dá a mão: sou o curador desta edição e faço questão de cumprimentar todas as pessoas do Brasil que vejo por aqui.
Não disfarcei a surpresa, consegui parabenizá-lo e agradecê-lo, além de contar que estava muitíssimo emocionada com o que estava vendo até então. A vontade era de fazer outras perguntas, mas respeitei o cansaço expresso na sua voz rouca e acatei à despedida. Depois, lamentei não ter pedido uma foto, mas agora me alegro por ter vivido aquele encontro improvável com mais presença. Esta será uma das minhas poucas lembranças desassociadas de registro fotográfico.

Com o batismo sensível de Adriano Pedrosa, adentrei o pavilhão central sentindo-me menos estrangeira, como se pudesse de fato ocupar aquele espaço. E posso. Assim como os outros 300 artistas estrangeiros, expatriados, diaspóricos, émigrés, exilados, refugiados, indígenas, queer ou auto-didatas que tiveram seus trabalhos expostos e, consequentemente, consagrados, a maioria deles pela primeira vez. Não tenho parâmetro porque também foi a minha estreia enquanto público, mas arrisco dizer que esta tenha sido a edição mais vibrante, provocativa e marginal de todas. Teve dedo na ferida colonial, arte fundindo-se a artesanato e vice-versa, diversidade de corpos, saberes outros: ancestrais que se fazem futuristas.
Começando pelo título, um trabalho de Claire Fontaine, coletivo ítalo-britânico criado em Paris e atualmente sediado em Palermo. A partir da lógica ambivalente existente em Estrangeiros em todos os lugares, de quem se sente assim e de quem observa tanta gente supostamente de fora, as participações nacionais tiveram de rebolar para entrar na dança. A Espanha, por exemplo, convidou a artista peruana Sandra Gamarra Heshiki a fim de questionar o seu passado colonial em uma galeria migrante. O estreante Benin, por sua vez, mostrou a que veio com uma exposição coletiva sobre restituição de tesouros reais. Já a Coreia do Sul partiu para o lado sensorial ao tentar expor os cheiros que emigrantes associam a Seul, fazendo do seu pavilhão uma coleção olfativa de memórias.
Mas foi a Austrália quem levou o Leão de Ouro com a melhor participação nacional ao denunciar o encarceramento de seus povos originários, que assim como tantos outros foram feitos estrangeiros na própria terra. Também demonstrou em uma extensa linha genealógica que somos todos — todos mesmo — amigos e familiares. Dali de perto, na Nova Zelândia, saíram as artistas do coletivo feminino maori Mataaho, premiadas por Takapau, um entre os vários trabalhos têxteis apresentados na Bienal.
E o que dizer do pavilhão do Brasil, renomeado Hãhãwpuá, onde a língua usada foi uma das tantas originárias? Para além da rejeição ao português, não contive a emoção ao ver um dos nossos mantos tupinambá tão de perto em toda a sua exuberância. Detentora desde 1699, a Dinamarca foi a primeira nação a devolvê-lo, mas ainda há onze países que foram convocados publicamente a fazerem o mesmo. Não levamos, mas vimos ser reconhecida Anna Maria Maiolino e sua busca por raízes. No Arsenale, a artista de ascendência italiana teve um de seus trabalhos expostos nos cavaletes de Lina Bo Bardi, além de um galpão próprio, que foi vandalizado por um participante e reaberto em sinal de resistência.
A sexagésima edição da Bienal de Veneza ainda foi marcada pelas guerras em curso. Enquanto a Bolívia ocupou o pavilhão da Rússia de cosmovisão Aymara, o espaço dedicado à Israel permaneceu fechado. Colado no vidro, havia um cartaz que dizia que a artista e os curadores do pavilhão israelense abririam a exposição (M)otherland quando um acordo de cessar-fogo e liberação de reféns fosse alcançado. Ao lado, militares italianos faziam a segurança do local, mas não impediram que manifestantes pró-Palestina jogassem tinta no último dia do evento. A Ucrânia esteve presente com a mostra coletiva Net making (Fabricação de redes), uma entre tantas que não consegui ver por falta de tempo. A que mais lamento ter perdido é a do Vaticano, cujo pavilhão foi o presídio feminino de Giudecca, onde as detentas acompanharam os visitantes.
Diferentemente das gôndolas que vão devagar pelos canais para não provocarem ondulações e, assim, preservar a integridade dos palácios de Veneza, arrisco dizer que Adriano provocou um tsunami com a sua Biennale. Foi criticado, mas estranho seria o contrário. Deve ter sido incômodo para o Norte Global ter as suas narrativas, os seus mitos e as suas referências colocadas em xeque.
Resta saber se a ondulação vinda do Sul afundará ou não Veneza — que já perdeu 23 centímetros em 30 anos, correndo o risco de igualar-se à mítica Atlântida — e tudo o que ela ainda representa atualmente. Mas a estabilidade da cidade dos doges é secular: há fissuras e torres tortas, mas nenhum palácio veneziano desmoronou, nem mesmo com o terremoto arrasador da década de 70. De toda forma, somos os imigrantes quem costumamos construir as pontes, reais e imaginárias, para que o movimento continue sendo uma constante. É a chance da Biennale seguir contando as novas histórias deste mundo ao qual pertencemos todos, agora com o cânone mais equilibrado.
FLÂNEUSERIE 💃🏻
[Recomendações de lugares por onde andei, testei e aprovei]
— Adriatico Mar, um bar de vinhos e cicchetti onde tudo gira em torno destas águas;
— Negozio Olivetti, a loja das icônicas máquinas de escrever, desenhada por Carlo Scarpa, o grande nome da arquitetura modernista veneziana;
— Studium, livraria com uma seleção impecável de publicações, ainda que não tão cenográfica quanto a Acqua Alta;
— Ex Teatro Italia, um supermercado em um antigo teatro, com frescos belíssimos;
— Coleção Peggy Guggenheim, o museu da mulher que mudou a história da arte em Veneza, em prédio e localização estonteantes.
SALVO EM ONDE QUERO IR 💾
[Onde ainda não fui, mas salvei na lista para ir]
— Fondaco dei Tedeschi, um centro comercial na beira do Grande Canal, onde é possível subir ao terraço gratuitamente mediante reserva;
— Punta della Dogana, museu membro da Pinault Collection, onde Leïla Slimani dormiu uma noite para escrever O perfume das flores à noite;
— Labirinto de Borges, um jardim dedicado ao escritor argentino, na ilha de San Giorgio;
— Murano, Burano e Lido, outras ilhas da laguna de Veneza, onde vidro, cristais e festival de cinema são os destaques;
— Museo di Palazzo Gramani, se fosse para visitar apenas um palácio veneziano, seria este.
→ Tem alguma recomendação? Deixa pelos comentários!
UMA ÚLTIMA VISTA D'OLHOS 👀
[Inspiração para espreitar antes de ir embora]
— Despedida no porto, fotografia tocante que é um retrato da emigração. No mesmo lugar onde foi tirada, há um monumento bastante parecido;
— Peggy Guggenheim e Veneza, o match perfeito em um vídeo delicioso;
— No novo voo mais longo do mundo, há a possibilidade de ver o amanhecer duas vezes em um mesmo dia;
— O novo MASP, mais um arranha-céu na Paulista;
— Para inspirar viagens em 2025, uma lista de destinos feita pela Condé Nast Traveller citada na
da .Ei, obrigada mais uma vez pela leitura!
Como você deve ter percebido, visitar a Bienal de Veneza foi algo grandioso para mim. Redundante, portanto, dizer que recomendo a experiência e que pretendo repeti-la. No meu Instagram, estou publicando e deixando salvo nos destaques um pouco do que vi.
Se você tiver interesse em saber mais e até planejar a sua ida, não hesite em me escrever de volta, tá bem? Estou à disposição para ajudar com informações práticas.
E por último, mas não menos importante: algumas pessoas me relataram problemas para renovar o apoio a esta newsletter. Estou ciente, infelizmente, e tentando resolver junto ao Substack. Aviso assim que tiver novidades.
Bom proveito e até a próxima edição!
Um abraço carinhoso,
“Nem todo o viandante anda estradas, há mundo submersos, que só o silêncio da poesia penetra”, versos de Conceição Evaristo em “Da calma e do silêncio”, ponto de partida da próxima Bienal de São Paulo.
A experiência parece ter sido incrível!
deve ser incrível visitar uma exposição tão grande assim, com a sensação de que a cidade inteira respira arte.