“A parte mais bela do teu corpo é para onde ele vai”, Ocean Vuong, poeta, ensaísta e romancista vietnamita-americano.

Rolo o feed e vejo que há previsão de ondas gigantes para a próxima segunda-feira. A Nazaré tem as maiores ondas surfáveis do mundo, que são ampliadas por um desfiladeiro submarino com cinco quilômetros de profundidade. Gerador de vagas gigantescas, o “canhão” termina no ponto em que o Atlântico Norte encontra-se com a costa, perto da antiga vila piscatória.
Não é sempre: por excelência, a época de ondas grandes na praia do litoral português acontece entre outubro e março. O auge do Nazare Big Wave Challenge, o campeonato da liga mundial de surfe, é no mar de inverno. De novembro a março, acumulam-se turistas que, do Forte de São Miguel Arcanjo, veem os paredões de água serem enfrentados por surfistas, quase sempre sob chuva e baixas temperaturas.
É que a estação mais fria do ano é mesmo uma onda a ser furada, mergulhada e superada. Tem algo de hostil, adverso talvez, nesta estação, se reparar bem. Que o diga Maya Gabeira, big rider que fez da Nazaré a sua casa mesmo após o acidente que quase a matou em 2013. Treina o ano todo para ultrapassar o próprio recorde obtido após a reabilitação do seu corpo e da sua mente: 22,4 metros de onda surfada.
Também no mar, mas dentro do próprio barco, foi onde esteve Tamara Klink ao longo de um inverno de oito meses de duração. A navegadora brasileira cruzou o Círculo Polar Ártico em uma experiência que, não à toa, chama-se “invernagem”. As temperaturas chegaram aos 40 graus negativos, mas o pior foi ter caído na água congelante. Sobreviveu para contar, até mesmo no mítico Roda Viva. É que o inverno também tem disso: deixar algumas coisas morrerem, para outras renascerem.
Um desfiladeiro comparável ao Canhão da Nazaré, mas situado acima da linha d’água que envolve o Arquipélago das Canárias, soltou-se e provocou um tsunami que afetou todos que vivem à margem do Oceano Atlântico. Pelo menos na série ficcional Inferno em La Palma, uma das tantas listadas para o meu inverno — mais caseiro do que o das aventureiras citadas anteriormente. Nestes tempos, sinto que é preciso recolher-se tal qual uma concha, adentrar a escuridão.
Na produção nórdica que desbancou Senna na lista das mais assistidas, vê-se uma família norueguesa escapar do frio glacial durante a pausa de Natal e Ano Novo por mais um ano nas ilhas espanholas. O descanso é interrompido por uma erupção vulcânica que desencadeia tremores e o deslizamento de uma montanha do tamanho de Manhattan que provoca uma onda capaz de engolir tudo ao redor. Por vezes, não há para onde fugir, principalmente em uma ilha. A população local que depende do turismo, por óbvio, não gostou nada da série televisiva. Talvez continuem temendo a série de ondas.
Mar e montanha também são os dois elementos retratados no drama oceânico de Hokusai. O estável Monte Fuji contrasta com a onda turbulenta enfrentada por pescadores, minúsculos diante da natureza. Diferentemente do que muita gente pensa, não se trata de um tsunami. É apenas uma onda gigante, também chamada de monstro ou piramidal, gerada por sobreposição: a soma de muitas ondas existentes. Cristas sobre cristas, estação após estação.

UMA ÚLTIMA VISTA D'OLHOS 👀
[Inspiração para espreitar antes de ir embora]
— Temporada de hurracanes, livro da escritora mexicana Fernanda Melchor que foi uma das minhas melhores leituras em 2024 e que inspirou o título desta edição;
— Maya And The Wave, trailer do filme sobre a surfista brasileira que encara as ondas gigantes da Nazaré;
— Esta tirinha deliciosa da New Yorker, que lista coisas para fazer no aeroporto quando o seu voo de fim de ano está atrasado;
— Desenhos feitos por uma gringa maravilhada pelo Brasil, após uma viagem ao país;
— Uma inspiração para quem gosta de caminhar, diretamente da terceira idade.
Muito obrigada pela leitura, viu? Por aqui, o inverno está começando ensolarado e com frio ameno, ou seja, uma marolinha!
Bom proveito, um feliz Natal e solstício, seja de inverno ou verão. A té a próxima edição!
Um abraço afetuoso,
“Cada momento acontece duas vezes: por dentro e por fora. E são duas histórias diferentes”, Zadie Smith, escritora inglesa jamaicana.
tenho tanta aflição só de olhar o tamanho das ondas gigantes que não consigo conceber que alguém se aventure a surfá-las.
A Rádio Novelo lançou esse ano um podcast de entrevistas chamado Fio da Meada e tem um episódio com a Maya Gabeira. Caso não conheça, fica de recomendação, já que dialoga com esta edição.