5 | Comendo no food valley da Itália 🍝
O meu itinerário pela Emilia-Romagna, terra que deu ao mundo os produtos mais conhecidos da gastronomia italiana. Paraíso não só para foodies, mas para quem quer fugir do turismo massificado.
“Italian food really reflects the people. It reflects like a prism that fragments into regions", Lidia Bastianich, chef ítalo-americana.
Assim como as comidas de conforto, acredito que também existam as viagens confortáveis. A Itália é um destes lugares que me conferem aconchego. Os motivos são vários, sendo a culinária o mais óbvio, irresistível e histórico-cultural deles.
Até a semana passada, pensava que não havia lugar para comer melhor do que na Campânia, onde a erupção do Vesúvio alterou o solo e possibilitou o cultivo das frutas e dos legumes mais saborosos que alguma vez já provei. Menção honrosa para os tomates que encharcam as pizzas napolitanas e obrigam-nas a serem levadas até a boca com as mãos.
Mas, após alguns dias em Londres, visitei a Emilia-Romagna e comprovei o motivo de a região ser considerada o food valley da Itália. Se você perguntar a algum italiano qual o melhor lugar para comer, provavelmente ouvirá que é na cucina da sua mamma. Depois, é possível que lhe seja recomendada esta parte do Norte da Itália, já que este é um território fértil que fornece os produtos mais consumidos no país e no mundo.
Presunto Parma, queijo Parmigiano-Reggiano, vinagre balsâmico de Módena, mortadela de Bologna e os vinhos Sangiovese e Lambrusco são só algumas das principais iguarias da Emilia-Romagna. A lista de itens com os selos DOP (Denominação de Origem Protegida) e IGP (Indicação Geográfica Protegida), que garantem rigor, autenticidade e qualidade, é infinita.
Normalmente ignorada pelos turistas, a região da Emilia-Romagna abrange desde o rio Pó até as montanhas dos Apeninos. É conectada pela Via Emília, uma estrada romana de 187 a.C. que ligava Rimini à Piacenza. Chamada atualmente de Autostrada del Sole, é rota de passagem para viajantes em deslocamento entre Milão e Nápoles.
Diferentemente dessas partes da Itália, onde impera o turismo de massa, na Emilia-Romagna quem dá a vez é o turismo de pasta. Para ser mais exata, a variedade de macarrão local vai desde os mais populares tagliatelle, tortellini e tortelli; até os pouco conhecidos, como nolini, garganelli, gramigna, passatelli, pisarei, strichetti e strozzapreti.
Não, o spaghetti bolognese não existe. Apenas o Tagliatelle al Ragù Alla Bolognese.
Com muita fome, saí do aeroporto de Bologna em direção a Módena de carro. Ao longo do trajeto, reparei na quantidade e variedade de plantações. Não surpreende, afinal comer é um ato agrícola, como uma vez sentenciou o escritor, fazendeiro e ativista pelo clima Wendell Berry.
Ao chegar, abri o apetite com uma massinha que lembra o nosso pastel, mas sem recheio, chamada gnocco fritto, que mergulhei no cappuccino, visto que eram 10h da manhã. Depois fui em direção ao histórico Mercato Albinelli, que abastece a cidade, inclusive os restaurantes mais estrelados, com o melhor da produção agrícola da Emilia-Romagna. É mesmo “o coração de Módena", como se lê na entrada.
Para mim, não há lugar melhor para começar uma viagem que em mercados públicos. No lotado modenese, camuflei-me entre gente local para sentir os melhores cheiros da vida. Além dos clássicos da região, também vi o outono sendo oferecido em todo o seu esplendor: abóboras, cogumelos, em especial o local porcino, e trufas enfeitavam as bancas e indicavam o que deveria ser pedido nos restaurantes que visitaria durante a viagem.
Na sequência, fui em direção a uma prova de aceto balsamico di Modena, que é obtido a partir das uvas brancas Trebbiano e envelhecido em barris de madeira por anos até se tornar um creme escuro — pelo menos três, idealmente 12, podendo chegar até 25 anos. É um produto que pode ser usado de muitas formas, muito além da salada, sobretudo para realçar o sabor dos alimentos. Ao final da degustação, por exemplo, comi com gelato di panna e foi um delírio.
Emocionada, fiz um investimento e trouxe para casa um 12 anos em uma das garrafas criadas pelo designer de automóveis Giorgetto Giugiaro, única embalagem que garante a autenticidade do produto. É uma iguaria realmente cara, porque além do tempo de maturação é preciso cem quilos de uvas para obter cem mililitros de aceto.
Algo parecido acontece com o parmigiano-reggiano, que exige 500 litros de leite para resultar em 35 quilos de queijo maturados por pelo menos um ano. É o mesmo tempo mínimo demandado pelo presunto Parma. Quanto mais envelhecidos, mais especiais serão as degustações desses produtos.
Le cose belle sono lente, ou as coisas belas são lentas, como li por aí na viagem.
Segui, então, para o almoço, cujo local escolhido foi o principal motivo da viagem. Já havia um tempo que eu e meu companheiro queríamos conhecer o Ristorante Cavallino, o restaurante da Ferrari em Maranello aberto em 1950 e revitalizado recentemente pela genial India Mahdavi. A perfeita junção entre food e motor valley, como a região também é conhecida: ele pela Fórmula 1, eu pelo chef Massimo Bottura, que é o personagem do primeiro episódio da série Chef's Table. Foi uma experiência inesquecível sob todos os aspectos (contei mais neste post com fotos).
Escolhemos o menu degustação Benvenuto in Emilia, que reúne em fine dining os ingredientes mais emblemáticos da região: Creme de Parmigiano-Reggiano 36 meses com Aceto Balsamico, Scrigno de Tortellini, Cottechino alla Rossini e Zuppa Inglese. Antes da sobremesa, ainda fizemos uma incursão pela incrível seleção de queijos italianos — escolhemos o Pecorino del Frignano, o Alfio Invernale 2021 e o Castelmagno.
Completamente restaurada, segui em direção à Parma, onde fiz base nesta viagem. Quando ainda planejava o roteiro, imaginava que ficaria hospedada na capital vibrante e estudantil Bologna, mas minhas pesquisas indicaram que a Cidade da Gastronomia pela Unesco atenderia melhor às expectativas. Não deu outra.
Achei Parma mais sofisticada. Deu vontade de ficar mais, até de morar por um tempo. Também é muito rica culturalmente: a casa onde me hospedei homenageava Giuseppe Verdi, compositor de óperas conhecidas como La donna è mobile, que se popularizou na voz do modenese Luciano Pavarotti. Ainda é famosa pelo renascentista Teatro Farnese, todo em madeira, que fica dentro do Complesso Monumentale della Pillotta.
Mas voltando à comida, em Parma comi prosciutto sempre que possível, inclusive num ragù com tagliatelle; provei panini incríveis, até mesmo um tradicional de carne crua de cavalo; sorvi até a última gota do anolini in brodo; experimentei tortelli de abóbora e de ervas com muito parmesão por cima. Bebi um Lambrusco delicioso acompanhado de tagliere, a tábua de frios da Itália, como se precisasse abrir o apetite. Tiramisù e gelato de ricota com mel e fava tonka arremataram as refeições, cujos restaurantes estão listados a seguir.
Antes de encerrar a viagem em Bologna, ainda conheci o Castello di Torrechiara. Uma construção de 1480 com uma série de afrescos belíssimos situada na paisagem rural de Langhirano (veja fotos no meu Instagram). Lá existe o microclima perfeito para o cultivo de oliveiras e de uvas, além da maturação do presunto de Parma. Na mesma área, também passei pelo museu que conta a história deste crudo.
Já na capital da Emilia-Romagna, descobri a comida de rua da região — não à toa, tendo em vista a quantidade de estudantes da universidade mais antiga do mundo, criada em 1088. Adorei o tortellini frito e a piadina de mortadela com stracciatella e pistache. Amei o sorvete de romã. Estava com desejo de bolinho de risoto frito, por isso recorri a um restaurante romano e pedi supplì, tagliolini alla gricia e zabaione. Perdão pelo desvio, La Grassa!
Se a cor amarela corresponde a Parma, tendo até um tom específico para pintar as casas chamado Giallo Parma, em Bologna além dos inúmeros pórticos tombados pela Unesco é a tonalidade terracota que predomina. Por isso, a cidade também é chamada de La Rossa, A Vermelha, algo que é endossado pelo caráter de esquerda da população. Me chamou a atenção a politização expressa nas paredes.
Voltei do vale da comida italiana para casa de barriga, olhos e mente cheios. E também inspirada por pessoas que respeitam, orgulham-se e fazem questão de transmitir as suas tradições ao longo dos séculos. Identidade, afinal. Grazie e alla prossima, Italia!
FLÂNEUSERIE 💃🏻
[Recomendações de lugares por onde andei, testei e aprovei — além daquelas acima]
— Módena: Bar Tiffany para gnocco fritto e cappuccino, La Consorteria 1966 para aceto balsamico, Gioelia Cremeria para gelato;
— Parma: Da Pèpen para panini, Ristorante La Greppia e Trattoria Corrieri para a culinária parmigiana, Enoteca Tabarro para vinhos e aperitivos, Ciacco para gelato, Gran Caffé Cavour para café e doce;
— Bologna: Mercato delle Erbe, em especial a Formaggeria Barbieri para aprender e comprar queijos com o Alberto, Librerie delle Donne para conhecer a cena feminista local, Caffè Terzi para cafés de especialidade (e gulosos, como de Marzipan e Tiramisù), Murtadela e L’Asporto para comidas de rua.
SALVO EM ONDE QUERO IR 💾
[Onde ainda não fui, mas salvei na lista para ir — o que não deu tempo]
— Ópera: ir a um espetáculo no lindíssimo Teatro Luciano Pavarotti ou no Festival Verdi, que acontece anualmente entre setembro e outubro;
— Mais comida: conhecer de perto a produção em alguma propriedade recomendada pelos consórcios Parma Crown e Parmigiano-Reggiano, além de visitar outras das oito (!) unidades dos Musei del Cibo, dedicados aos produtos típicos;
— Bologna do alto: queria muito ter tido um overview da cidade, mas a Torre degli Asinelli estava fechada para manutenção. A guia do walking tour recomendou o Santuário da Madonna di San Luca, que fica no topo de uma colina, mas não pude ir;
— Ravenna no verão: em uma próxima ida, pretendo molhar os pés no mar Adriático. Segundo esta matéria, há uma cidade litorânea na Emilia-Romagna que precisa de mais visitantes e parece ter muito o que oferecer;
— Às voltas com Borges: há um labirinto inspirado na obra do escritor argentino Jorge Luis Borges que fica próximo à Parma.
UMA ÚLTIMA VISTA D'OLHOS 👀
[Inspiração para espreitar antes de ir embora]
— O conto A viagem, da escritora italiana Elsa Morante, recém traduzido pela Isa Discacciati do Clube Ferrante e do Passeios em Veneza;
— A calmaria poética do perfil Vita lenta no Instagram;
— A receita de tiramisù de pistache da Lena Mattar;
— O filme Ferrari, uma cinebiografia de Enzo Ferrari, que revolucionou o carro esportivo italiano e a Fórmula 1, com Adam Driver e Penélope Cruz a estrear em 14 de dezembro;
— A lista da National Geographic Traveller com os destinos mais legais para conhecer em 2024 e que inclui a Emilia-Romagna.
Obrigada por ler até aqui! Quero saber o que você achou, se ficou com muita fome ou se tem alguma dica para me dar. Me escreve de volta? Se gostou, encaminha para alguém que também pode curtir :)
Veja as fotos da minha viagem no destaque Emília-Romagna disponível aqui — compartilho imagens de Bologna no dia que esta cartinha é publicada.
Bom proveito e até a próxima edição – toda sexta-feira na sua caixa de entrada ou no aplicativo do Substack!
Un bacio,
“It's very important for inspiration to go elsewhere: to move away from the city into pastoral settings, and to make space for meditation.” Isaac Julien, artista britânico.
Fiquei morrendo de vontade de provar tudo! Amo turismo gastronômico!
Essa leitura só aumentou a fome que eu já estava sentindo (13 horas aqui do Brasil!). O perfil Vita Lenta é de uma calmaria, né? Adorei as indicações.