8 | Lojas de outros tempos em Lisboa 🕰️
Um convite para conhecer as cidades por meio de seu comércio tradicional e histórico, tão importante para a preservação da identidade dos territórios.
“As cidades são sempre caracterizadas pelo seu comércio. Não exclusivamente dentro do binómio compra e venda, mas naquilo que se vê, que se ouve, que se cheira, que se partilha", Joana Bértholo, escritora portuguesa para Lojas com História.
Nunca gostei de shopping center. Para mim, tem status de não-lugar assim como um aeroporto ou um hipermercado. Evito ao máximo, sobretudo em dezembro, quando o loop de músicas natalinas tenta sem sucesso abafar a pressa que paira no ar.
Bem diferente é o comércio de rua, nomeadamente o comércio histórico. Identitários e relacionais, vejo como lugares convidativos para entrar, ouvir, perguntar, sentir cheiros e sabores, admirar o interior e fazer compras com significado — uma viagem completa a uma outra época. Destacam-se pelo produto ou serviço que oferecem, pelo ofício por vezes único ou em extinção e pela atenção comumente dispensada à clientela fiel ou aos visitantes curiosos.
Por isso, quando visito uma cidade, faço questão de caminhar por suas artérias comerciais, quase sempre com circulação exclusiva para pedestres. É que a lógica mais acelerada do carro não comporta o olhar demorado demandado pelas lojas históricas geralmente ali presentes. Para identificá-las, basta procurar por uma fachada esteticamente de outro tempo, não raro com um relógio no interior ou com o ano de abertura orgulhosamente em destaque.
Tentei observar cada um desses detalhes nos últimos dias em visita a Lisboa, capital de um país historicamente marcado pelas relações comerciais estabelecidas com boa parte do mundo. Quando ainda se viajava mais pelo mar, era justamente a Praça do Comércio a porta da cidade — residindo em um de seus arcos, inclusive, um dos cafés mais antigos e frequentados pelo ícone nacional da poesia Fernando Pessoa: o Martinho da Arcada, que segue aberto.
Atualmente prédio governamental, é nos arredores dessa que é uma das maiores praças da Europa onde estão as Lojas com História. Trata-se de um programa da prefeitura com a universidade que distingue comércios de todos os gêneros, atribuindo um selo, mapeando, classificando e contando suas trajetórias em texto, foto, livro e até curta-metragem. Mais do que isso, convidando a conhecer a cidade a partir dali.
Se você já esteve em Lisboa, é provável que tenha visitado uma das Lojas com História: os Pastéis de Belém que, apesar de não serem os meus pastéis de nata preferidos em Portugal, valem mesmo o deslocamento. Com um Pessoa em bronze a dar as boas-vindas, o Café A Brasileira é outro ponto histórico largamente conhecido pelos turistas, além de sede afetiva do jornal digital A mensagem de Lisboa.
Mas é no comércio menos afamado que residem os segredos mais bem guardados, a exemplo da Caza das Vellas Loreto, “aquela que há mais tempo se mantém no mesmo local, na mesma família, e a produzir e vender o mesmo produto”. Até a grafia ainda é a mesma. Entrar nesta loja é imaginar a sua importância em uma cidade que, há 234 anos, era iluminada graças à chama que flameja pelo pavio e derrete a cera.
É também observar como foi possível manter-se relevante ao longo dos séculos, misturando tradição e novidade no saber-fazer. O mobiliário em madeira e em formato de vela é o que atrai inicial e visualmente, mas são os cheiros, as cores e a calmaria em pleno Chiado que dão vontade de demorar-se na loja.
Visitar esse tipo de comércio é especial durante todo o ano, mais ainda no Natal, quando a sensibilidade dos lojistas na criação das vitrines é ainda maior. Assim como o esmero na hora de embrulhar para presente. Além da exposição de uma vela em formato de romã na Loreto, outra montra que captou o meu olhar não muito longe dali foi o da Companhia Portugueza do Chá.
Apesar de não possuir o selo Lojas com História, é um comércio tradicional da baixa lisboeta, quer por existir desde 1880, quer por ocupar uma antiga loja de sapatos. É um deleite olfativo e visual em função das latas recheadas com as folhas secas que armazenam chás e infusões de todos os tipos e origens. A minha escolha para presentear um casal de amigos foi o clássico Earl Grey Portugal, chá preto feito com bergamotas cultivadas no Algarve.
Com tantas lojas de souvenir produzido a quilômetros de distância e por pessoas sem qualquer envolvimento com as cidades em questão, as lojas históricas não só resistem, como reafirmam o comércio como um elemento diferenciador urbano. São determinantes na vida econômica, social e cultural, além de patrimônio. Contribuem para a identidade da cidade em épocas diferentes mesmo quando não se alteram significativamente ao longo do tempo.
E, mesmo quando mudam, é bonito observar a história sendo reescrita com respeito por quem veio antes. Pastelaria, venda de vinhos, leitaria, loja de colchões e móveis sob medida. Tudo isso já funcionou onde hoje é a Casa das Conchas, uma loja de antiguidades e velharia que soube conservar a memória dos negócios antecessores.
O restaurante e bar de vinhos Magnólia, por sua vez, optou por manter o afresco no teto que pertencia anteriormente à Padaria Renascente, na Praça das Flores. Caminho parecido seguiu o EmbaiXada, um centro comercial em um palácio neoárabe do século 19 cheio de concept stores e galerias de arte também no Príncipe Real. Por outro lado, ninguém soube me dizer o que existiu previamente à Lupita Pizzaria, onde é impossível não olhar para cima e imaginar tanta vida que já passou por ali.
FLÂNEUSERIE 💃🏻
[Recomendações de lugares por onde andei, testei e aprovei]
— Pastelaria Versailles, um café importante para a cidade, onde é possível comer um dos melhores bolos de chocolate de sempre;
— Benamôr, uma loja de cosméticos naturais de 1925;
— A Ginjinha Sem Rival, um dos locais históricos para tomar o tradicional licor de cereja no copinho de chocolate;
— Restaurante Laurentina, onde há o melhor bacalhau, segundo o meu pai, um especialista no assunto;
— A Casa Piriquita, confeitaria tradicional em Sintra onde comem-se os famosos travesseiros.
→ Qual é a tua loja histórica preferida ou aquela que mais deseja visitar? Deixa um comentário com a dica:
SALVO EM ONDE QUERO IR 💾
[Onde ainda não fui, mas salvei na lista para ir]
— A. Molder, uma das últimas lojas ligadas à filatelia, que é o hábito de colecionar selos postais;
— Pavilhão Chinês, um bar que remete à cultura do Wunderkammer alemão, os “gabinetes de curiosidades” dos séculos 16 e 17;
— Luvaria Ulisses, uma loja pequenina de luvas para todos os tamanhos de mãos;
— Franco Gravador, um lugar que faz placas sob medida e preserva as inscrições peculiares de outras épocas;
— Confeitaria Nacional, a confeitaria mais antiga e talvez mais bonita da cidade.
UMA ÚLTIMA VISTA D'OLHOS 👀
[Inspiração para espreitar antes de ir embora]
— Letreiro Galeria, um projeto que coleta e salvaguarda a sinalética comercial abandonada como parte da memória e da identidade de Lisboa. Uma ótima pedida para quem gosta de design e tipografia;
— Uma visita natalícia por cinco lojas icônicas, organizada pela Casa da Arquitectura e pelo Porto Paralelo, projeto equivalente ao Lojas com História e ao Negozi Storici na Itália;
— Outras 11 lojas históricas para visitar ao redor do mundo;
— Livros: o novo Cartas de amor, de Fernando Pessoa, História de Roma, o finalista do Oceanos 2023 de Joana Bértholo e Não-Lugares, Introdução a uma Antropologia da Sobremodernidade, de Marc Augé, reeditado pela Letra Livre, uma ótima livraria para visitar em Lisboa;
— As marcas e o tempo, edição da newsletter Bits to Brands, da
. Para dar um gostinho:“É no tempo que as marcas acontecem. É ali que elas ganham vida, conquistam preferência, provam o seu valor, tornam-se um hábito (ou até um ritual). As marcas são responsáveis por nos apresentar o futuro, da mesma forma que nos conectam com o passado.”
Obrigada por ter lido mais esta edição! Neste fim de ano, é uma verdadeira honra ter a tua atenção.
Se não for pedir muito, me diz o que achou? Você pode fazer isso me escrevendo de volta, reagindo pelos botões ou comentando.
Bom proveito e até a próxima edição – toda sexta-feira na tua caixa de entrada ou no aplicativo do Substack!
Com carinho,
“Viajar? Para viajar basta existir. Vou de dia para dia, como de estação para estação, no comboio do meu corpo, ou do meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os gestos e os rostos, sempre iguais e sempre diferentes, como, afinal, as paisagens são” — Fernando Pessoa.
Salvando para quando eu for para Lisboa (espero que logo)
Achei mais uma escritora amante das cidades e as histórias que elas tem pra contar, que demais! prazer, Gabriela! <3