Portal do Mundo: A Longa Estrada de Areia, de Pier Paolo Pasolini
#8 — Retratada inicialmente em revista e agora em livro, viagem do cineasta pela costa da Itália no verão de 1959 mostra a formação de um estilo de vida como se conhece hoje 🚗
Rodeada de mar: assim é a Itália, um país que também é uma península. Lígure e Tirreno a Oeste, Jônico a Sul e Adriático a Leste — todos os mares compõem o Mediterrâneo. Tanto litoral fez com que passasse a ser mundialmente famosa pelo seu verão dolce vita, mas nem sempre foi assim.
É provável que tudo tenha começado na década de 50, quando os italianos experimentaram um crescimento econômico sem precedentes, acompanhado de um alívio pós-guerra. Foi neste clima não só estival, mas de autorização coletiva ao hedonismo que a revista Successo enviou um escritor e um fotógrafo para documentar os meses de junho, julho e agosto de 1959 ao longo de 4 mil quilômetros de costa.
Sem conhecerem-se e ainda desprovidos da fama de hoje, Pier Paolo Pasolini e Paolo di Paolo fizeram-se, então, à estrada aos 37 e 35 anos, respectivamente. Partiram em um Fiat Millecento da fronteira com a França, desceram em direção à Sicília — até à “mais pobre e distante praia de Itália” — e subiram rumo a Trieste, já quase na divisa com a atual Eslovênia — onde “termina a Itália, termina o Verão”.
“O meu coração bate de alegria, de impaciência, de orgasmo. Sozinho, com o meu Millecento e todo o Sul diante de mim. A aventura começa.”
De praia em praia, La Lunga Strada di Sabbia é o relato desta viagem mítica recentemente publicado em língua portuguesa. A Longa Estrada de Areia (Edições do Saguão, 2023, 132 páginas, tradução de João Coles) chegou às minhas mãos no Dia de São Valentim, um presente de alguém com quem divido a paixão por essa paisagem, mas só foi lido no início da melhor estação do ano. Capa e contracapa têm uma textura arenosa.
Logo nas primeiras linhas, é possível identificar o tom lírico do escritor que, à época, apenas sonhava em ser diretor de cinema. Contudo, a primeira de três partes não me empolgou tanto quanto a segunda, na qual Pasolini percorre as praias do Sul do país. Nelas, há pessoas menos obcecadas com celebridades hollywoodianas, mais à vontade para serem elas mesmas, apesar de toda o desamparo sócio-econômico. Concordamos sobre estarem ali as localidades mais interessantes.
“Apesar das belas vistas e dos desfiles de ruas de um barroco que parece de carne, das catedrais, de uma riqueza inaudita e quase indigesta, estas cidades não são bonitas: parecem sempre reconstruídas há pouco por força de um terramoto, um maremoto, tudo é provisório, cadente, miserável, incompleto. E por isso não sei dizer em que consiste o encanto: deveria viver aqui durante anos. Em todo caso, é evidente que aquilo que se diz sobre o Sul está aqui.”
De San Remo a Viareggio, de Forte dei Marmi a Ischia, de Maratea a Taranto, de Brindisi a Riccione. Como a viagem, a leitura segue fluida feito embarcação em mar manso e sem vento. Embora extenso, o itinerário da dupla é composto de breves paragens, nas quais Pasolini descreve o que vê e o que lhe acontece em uma espécie de diário de viagem que não deixa de abarcar o que sente. Gosto, em especial, de quando menciona uma “alegria infantil” de ir dormir ansioso para a chegada do dia seguinte, quando continuaria a viagem.
Cada um a sua maneira, Pasoli e Di Paolo compõem um retrato de uma Itália despida junto ao mar, além da transformação sem precedentes por que passaram os seus lugares e suas gentes à época. Talvez a mudança mais interessante esteja relacionada às mulheres, que por anos a fio de propaganda fascista estiveram limitadas ao ambiente doméstico. A presença feminina nas imagens captadas pelo fotógrafo dá conta de uma mudança de valores: na praia, em traje de banho — o biquíni só havia sido introduzido 12 anos antes, em um evento fashion em Paris, mas banido na Itália por indecência —, inclusive com o icônico pareô amarrado no pescoço, quase sempre acompanhadas do olhar masculino.
As fotografias também contrastam entre si: ao mesmo tempo em que retratam mulheres flertando com um ator na praia, também vislumbram uma senhora completamente vestida de preto em frente ao mar em um dia de calor. A roupa indicava que vinha de uma aldeia provinciana, onde o conceito de bronzear-se ainda não havia chegado. A ideia do il dolce far niente em frente ao mar demorou alguns anos para sedimentar-se, sobretudo para o sexo feminino.
Ainda que grandioso, Pasolini não é tão conhecido por esse trabalho sobre as férias de verão italianas, até porque o material ficou perdido por muito tempo, mas a experiência forjou a sua filmografia. Sabe-se pelo livro que vai até a casa de Federico Fellini, que em um balneário próximo a Roma rodava La Dolce Vita. Deveria ter ajudado a escrever alguns diálogos para uma personagem escritora, mas acaba indo passear pelas praias do Tirreno. Era verão, afinal, assim como em 2021, quando cheguei à Costa Amalfitana e o mesmo clássico passava na televisão italiana.
“Sempre que parto de algum lugar, mesmo que só tenha lá passado poucas horas — e os meus amigos riem-se disto —, deixo sempre um pedacinho ensanguentado do meu coração.”
A viagem termina melancolicamente em um domingo, com um temporal à espreita. As águas sempre fecham o verão. “Está tudo visto, está tudo no meu coração”, sentencia mirando a fronteira deserta com a antiga Iugoslávia. Pergunta se lá não há ferragosto — o feriado-clímax dentro das férias italianas, celebrado desde os tempos dos imperadores —, se não há verão. Penso que nada se compara à estação estival na Península Itálica.
Perto do fim, A Longa Estrada de Areia ainda inclui uma carta onde Pasolini dirige-se aos calabreses ofendidos por terem sido comparados a bandidos, os números da revista Successo com a reportagem publicada ao longo das semanas e reproduções dos textos originais — tanto datilografados em uma Olivetti Lettera 22, quanto manuscritos em papéis timbrados da hotelaria por onde passou. Parecia escrever nas brechas entre tantas coisas vividas.
“Saio do meu hotel. Chove um pouco, ainda. Estou sozinho. Sozinho, e levo a passear os meus dois olhos, mais ingénuos e contentes do que eu poderia crer. Sozinho: eu e Ischia. Eu e milhares de coisas, milhares de pessoas. Tudo novo.”
Poucos anos mais tarde, Pasolini refaz parte da travessia para o filme-inquérito Comizi d’amore, onde interroga a sociedade italiana a propósito da sexualidade. Prova de que os conflitos de uma sociedade que se recuperava da miséria dos anos de guerra interessaram-lhe profundamente. Somos brindados, então, com a memória dos primórdios de um país como conhecemos hoje: vibrante, contraditório, que cultua a beleza, desigual e que é mais leve à beira-mar.
🌊 VIAGENS OUTRAS
[Para onde este portal me levou e também pode te levar]
— Italo disco, gênero musical que é a cara do verão e faz lembrar Nu Genea. Playlist de uma audição coletiva do gênero a que participei recentemente [link];
— C'è ancora domani, ou Ainda temos o amanhã, filme de Paola Cortellesi em cartaz que mostra a situação da mulher italiana uma década antes da viagem de Pasolini e Di Paolo [link];
— Inventing the beach: unnatural history of a natural place, uma reportagem interessantíssima sobre a mudança da perspectiva em relação aos areais, que foram de lugares inóspitos a espaços de lazer [link];
— O caderno proibido, livro poderoso da italiana Alba de Céspedes que recentemente foi publicado em Portugal e me deu vontade de reler [link];
— Queijos, charcutaria e frutas, um ensaio afetivo delicioso sobre o que italianos comem na praia [link];
— Oito rotas para percorrer de carro na Itália, bem fora do óbvio, segundo o El País [link];
— A vida descalço, livro de ensaios do escritor argentino Alan Pauls em que a praia é protagonista [link].
Coluna mensal com curadoria, resenha e dicas de literatura de viagem para assinantes pagos de Bom Proveito, Portal do Mundo também é a forma com que Patti Smith refere-se aos livros que a acompanham.
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Muito obrigada pela leitura e até a próxima,
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