Portal do Mundo: Lenços pretos, chapéus de palha e brincos de ouro, de Susana Moreira Marques
#4 — Um relato de viagem guiado pelo livro As mulheres do meu país, que evidencia a vida não vivida, tampouco escrita, das portuguesas que poderiam ter mudado o curso da História 👩🏽🌾
Susana Moreira Marques diz que não escolhemos, somos escolhidos pelas viagens que fazemos. Acredita que o mesmo acontece com livros escritos, filmes realizados e por aí vai. Penso, então, ter sido escolhida para ler o seu Lenços pretos, chapéus de palha e brincos de ouro (Companhia das Letras, 2023, 106 páginas).
Em dezembro, fui à Greta Livraria Feminista, em Lisboa, para comprar o Mulheres Viajantes, da portuguesa Sónia Serrano. Mas foi uma frase de Susana em um marcador de páginas que me capturou para aquele livro pequenino de título enorme:
Talvez todas as viagens — no país ou fora do país — sejam feitas para termos a certeza de onde vimos.
Atenta à minha curiosidade, a livreira puxou assunto sobre o livro. Me contou que é baseado na publicação de outra jornalista portuguesa, Maria Lamas, há muitos anos esgotada, mas reeditada no mesmo formato em fascículos pelo jornal Público: As mulheres do meu país.
Não sabia do que falava, mas uma busca rápida me impressiona: Lamas percorrera o país de Norte a Sul, ilhas incluídas, por vezes viajando até em cima de burro, para entrevistar e fotografar mulheres de todas as classes sociais. Ambicionava, inclusive, conhecer a história feminina nas então colônias portuguesas, o que infelizmente não se concretiza.
O propósito era criar um retrato o mais abrangente possível da situação em que as suas compatriotas viviam em 1940 – a primeira década da ditadura salazarista, quando as mulheres eram “escravas” domésticas e precisavam até de autorização dos maridos para viajar ao estrangeiro. Não que desejassem deslocar-se, o Estado Novo matou até isso nelas. Muitas descobriam a limitação apenas quando decidiam emigrar para seguir o homem que ia na frente em fuga da pobreza em um país que gastava tudo o que tinha para manter o dito império ultramarino.
“Fui ao encontro das minhas irmãs portuguesas, procurei conhecer e sentir as suas vidas humildes ou desafogadas, as suas aspirações ou a sua falta de aspirações, sintoma alarmante de ignorância, desinteresse e derrota”, escreve Maria Lamas no prefácio. Tudo isso sem apoio financeiro, tendo acabado de ser afastada da revista onde trabalhava e vendo o encerramento do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, uma organização feminista que dirigia.
“Minha avó saía de Lisboa com dinheiro para quinze dias, papel, lápis e uma máquina Kodak, em direção aos diferentes pontos do país onde, como jornalista, interrogava, observava, fotografava, não só as mulheres que eram o seu objeto de estudo como as suas famílias, anotando sempre os elementos de geografia física e humana que as enquadravam. Ao fim desses quinze dias, regressava a Lisboa, passava todos os seus apontamentos a limpo, entregava o trabalho na tipografia onde se fazia a primeira impressão e revia as provas desse fascículo”, conta a neta Maria José ao jornal Expresso.
A viagem dura cerca de dois anos e gera um calhamaço de 500 páginas difícil de catalogar. Dizem que está algures entre reportagem, ensaio etnográfico, enciclopédia feminina, álbum ilustrado, tratado sociológico e arma de combate político. Apesar da robustez, é esquecido por décadas. Susana faz questão de relembrá-lo:
É possível que seja por distracção, mas mais provavelmente durante muito tempo não se fala do livro por vergonha do país que ele descreve.
Ao ler a orelha de Lenços pretos, chapéus de palha e brincos de ouro, me dou conta de que já conheço a autora. No ano passado, por indicação de uma colega portuguesa que conheci na Livraria Lello, a querida Diana Fontão, devorei Quanto tempo tem um dia, na qual Susana narra a sua experiência extraordinariamente comum de maternidade. Lembro que à época encontrei muito eco com a obra de Annie Ernaux, sobretudo pela forma elegante de fazer uma etnografia de si mesma, tornando político o pessoal.
Pois bem, decido embarcar na leitura para conhecer a viagem de Susana Moreira Marques guiada pela herança de Maria Lamas cerca de 70 anos depois. Acabo descobrindo muito não só de uma, mas de duas viagens. E das mulheres portuguesas. Assim como de um país, aquele que escolhi viver. Por tudo isso e por ser alguém que também já retratou vidas femininas enquanto repórter, sou imediatamente fisgada. Para além da temática, sinto-me atraída pela interpretação mais subjetiva que Susana oferece à viagem de Maria:
A câmara é uma Kodak e Maria Lamas usa-a intuitivamente. Parece saber o que quer mostrar: as roupas, desde os trajes tradicionais, que tem muito cuidado a descrever no texto, até aos simples fatos de trabalho do dia-a-dia que nunca apareceriam nos postais sancionados pelo regime do Estado Novo; as casas modestas e dignas por fora, mas deixando adivinhar a pobreza caótica por dentro; o cenário, perfeitamente bucólico ou belamente agreste, que ela acha que muda o carácter daquelas mulheres que raramente viajam; os gestos, que cada mulher parecia imitar de outras — e que as filhas imitavam das mães; os movimentos do trabalho fáceis de imobilizar e representar na sua repetição; e, finalmente, as expressões daquelas mulheres a oferecerem a única possibilidade de uma ficção.
Enquanto a primeira tentava gritar ao mundo a condição subalterna feminina durante o Estado Novo, a segunda tenta desvendar a própria história a partir das mulheres anônimas que povoam o imaginário de um país. Quer subverter a lógica de um guia de viagem, descobrir não para onde ir, mas de onde veio. Refere-se muito à sua avó, mas também às suas duas filhas ao longo do relato, que é uma narrativa de viagem autobiográfica.
Vai de aldeia em aldeia para constatar que muita coisa mudou ao longo das décadas, mas algumas ainda permanecem iguais. Ao longo das páginas e enquanto escrevo estas linhas, já com a leitura mais assentada, tenho a impressão de que o livro de Susana também é um ensaio sobre a passagem do tempo.
Neste épico não há um herói, nem sequer um protagonista que ora move a narrativa ora é movido por ela. Neste épico, basta que o tempo se desenrole, um dia atrás do outro, sem dar tréguas. E a grande tragédia — inultrapassável — é as personagens se darem conta de a vida ter passado.
As perguntas feitas por Maria são refeitas. Outras são acrescentadas para contribuir com o desenho das mulheres do país do futuro. Nas respostas para esses questionamentos, Susana visualiza as filhas, não sem deixar de encontrar as avós nos olhares das entrevistadas. Diz que todas as gerações femininas são treinadas na arte que é preciso dominar para viajar: ouvir.
A escritora reflete sobre quem poderiam ter sido as mulheres, se escutassem menos o que deveriam fazer. Se ouvissem mais a si mesmas. O que poderiam ter escrito. E documenta como que para compensar o que deixaram de registrar. Quem deixaram de ser. Enxerga a vista ao redor, mas foca-se mesmo é na paisagem humana.
Tiras fotografias bonitas, que ficam tão bem no Instagram e poderão até ficar bem num livro, mas depois perguntas-te que custo tem essa beleza.
E faz isso em conjunto com quem idealizou esta incursão mais recente: a cineasta Marta Pessoa, que convidou Susana para ser a roteirista de Um nome para o que sou. O filme também é uma releitura da viagem de Maria Lamas.
Porque é que teimamos em repetir percursos em vez de criar novos? Porque é que queremos ir aos lugares exactos aonde pessoas que admirámos foram, como se duvidássemos de que o fizeram ou da veracidade do que nos contaram? Se calhar não procuramos aventura, não procuramos inspiração, nem sequer procuramos conhecimento, mas apenas uma genealogia. O tempo é sempre tão pouco mesmo para uma viagem a um só país, mesmo um pequeno país.
As duas agarram-se àquela viagem para inspirar outras, para que finalmente existam mais mulheres viajantes em uma terra onde por muito tempo só houve espaço para a glória masculina. É uma ode à memória para a construção de identidades individuais e coletivas, além de herança para quem busca a própria genealogia.
Cada viagem, mesmo que não seja a primeira, é pioneira. A maior parte de nós vem de mulheres que nunca foram a lado nenhum.
🌊 VIAGENS OUTRAS
[Para onde este portal me levou e também pode te levar]
— Filme Rosinha e outros bichos do mato, também de Marta Pessoa, sobre uma mulher guineense exibida na Exposição Colonial Portuguesa de 1934 [link];
— Entrevista em áudio com Susana Moreira Marques [link];
— Exposição fotográfica As mulheres de Maria Lamas, que mostra pela primeira vez o acervo completo da ativista [link];
— Documentário A fotógrafa do vulcão, que conta a história esquecida de Hilda Rebelo, uma das profissionais que documentou a erupção de um vulcão em uma ilha do Arquipélago dos Açores entre 1957 e 1958. Para quem estiver em Portugal, o filme abrirá o festival Doc.Coimbra no dia 7 de março [link];
— Perfil de Veva de Lima, a viajante que desafiou o ditador Salazar [link];
— Filme Poor Things, da viajante Bella Baxter, que vai a Lisboa para enfardar alguns pasteis de nata [link];
— Um retrato da mulher portuguesa no Estado Novo, pela historiadora Irene Pimentel [link];
— Novíssimas Cartas Portuguesas: o marco do feminismo em Portugal retratado primeiro em livro, mais recentemente em filme [link];
— Exposição da pintora Paula Rego focada em obras que desafiaram a ditadura salazarista [link];
— Reportagem do The Guardian coloca as livrarias feministas na Europa como espaços de reparação histórica, destacando a Greta, em Lisboa [link].
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