10 | Quero ser uma centenária na Sardegna 🐚
É o meu desejo de ano novo, mas também é um relato da melhor viagem que fiz em 2023: pela segunda maior ilha mediterrânea onde descobri sem espanto ser comum completar um século de vida bem vivido.
“La vita in Sardegna è forse la migliore che un uomo possa augurarsi: ventiquattro mila chilometri di foreste, di campagne, di coste immerse in un mare miracoloso dovrebbero coincidere con quello che io consiglierei al buon Dio di regalarci come Paradiso", Fabrizio de André, compositor italiano que cantava histórias de revolucionários.
Explorar territórios desconhecidos é algo que me move em muitos sentidos, mas recentemente tenho pensado sobre revisitar determinados lugares, dar outras chances, olhar com mais familiaridade e profundidade. Passei a última metade de 2023 suspirando de saudades da Sardegna, a segunda maior ilha do Mar Mediterrâneo onde estive em junho. O sentimento ficou ainda mais forte no fim do ano, quando retrospectivas e projeções intensificaram-se, além do próprio peso da passagem do tempo.
Depois de experimentar a vita lenta insular por uma semana, fiquei com vontade de mais, pensando em como seria viver lá sem estar de férias, e até vislumbrei uma possível mudança no futuro. Pode ser porque aquela é uma terra importante na minha astrocartografia — tudo é sinal para quem é maluca o suficiente —, o que vim a descobrir assim que voltei. Também contam a paisagem exuberante, a comida saborosíssima vincada em tradições, além da autenticidade e gentileza das pessoas, mas há mais.
Algumas semanas depois da viagem, assisti à série documental Live to 100: Secrets of the Blue Zones (disponível na Netflix) e descobri que a Sardegna é a primeira de cinco áreas identificadas por cientistas onde há a maior concentração de pessoas que completam 100 anos de vida. Elas não só assopram uma centena de velinhas, mas seguem vivendo com qualidade, esbanjando saúde. Isso também acontece em Okinawa, no Japão, em Ikaria, na Grécia, na Península de Nicoya, na Costa Rica, e em Loma Linda, Califórnia, segundo o pesquisador e jornalista da National Geographic, Dan Buettner.
O segredo é o chamado Power of 9: mover-se naturalmente, ter um propósito, reduzir o stress, seguir uma dieta baseada em plantas, parar de comer quando se sentir 80% satisfeito, beber apenas ocasionalmente, praticar jardinagem, ter fé e valorizar a família. Guardadas as variações geográficas, isso é praticado pelos centenários das Blue Zones1. Na ilha que pertence à Itália, mas que se afirma sarda antes de tudo, o que fica mais evidente são as caminhadas em terrenos inclinados, a ingestão de bons carboidratos, o controle da tensão e o cuidado com idosos praticado pelas comunidades.
Engana-se quem pensa que a população idosa na Sardegna passa a maior parte do tempo nas famosas praias de água turquesa. Para os sardos, por muito tempo o mar foi visto como um sinal de ameaça em função das constantes invasões praticadas por diferentes povos ao longo dos séculos: fenícios, romanos, genoveses, espanhóis e piemonteses. Por isso, o símbolo da ilha são as 7 mil torres de pedra chamadas Nuraghe, que eram construídas nas praias para proteger o território.
A fim de proteger-se e avistar inimigos, a maioria das cidades desenvolveu-se no alto das montanhas, algumas delas com vistas para a imensidão azul. Com o desenvolvimento do turismo, parte da população mudou-se para o litoral, mas os mais velhos ficaram.
Foi exatamente Ogliastra, a área azul da Sardegna, a primeira região que conheci após aterrisar na maior cidade, Cagliari. De cara já percebi a calmaria: é comum o horário de almoço terminar às 17h, mesmo entre locais, em uma capital e durante a semana. Trata-se do biorritmo mediterrâneo. Caminhei à noite e de manhã, almocei spaghetti alla bottarga, tomei um banho de chuva que me lembrou os trópicos, busquei um docinho para viagem em uma pasticceria tradicional e saí em um Fiat 500 alugado em direção à Costa di Baunei, onde estão as enseadas mais selvagens e cristalinas. Fiquei hospedada no alto de um penhasco com vista para o encontro do campo com o mar.
No caminho azul, passei por vários paesi, como as cidades são chamadas na Itália, e observei a população idosa não só no pastoreio de cabras e ovelhas, colhendo frutas e vegetais da época em seus jardins ou convivendo nas praças, mas retratada em murais belíssimos assinados por diferentes artistas. Tanto pessoas em seus cotidianos quanto vestidas do folclore local para festividades. Antes mesmo de saber da longevidade local, reparei com emoção que a Sardegna é uma ilha que celebra os seus centenários como patrimônio.
Como há inúmeras vilas isoladas culturalmente, as pessoas mais velhas são vistas como guardiões da sabedoria e das tradições mais enraizadas. E também umas das outras, já que não há asilos. Investigadores em Ogliastra identificaram que “a satisfação dos laços sociais com amigos e familiares, aliada a um estilo de vida ativo e socialmente orientado, parece contribuir para a promoção da saúde mental na vida adulta”.2 Aquela história de corpo são, mente sã parece realmente funcionar para o envelhecimento ativo.
How to live to 100?, ensaio fotográfico e entrevistas por Arianne Clement, especializada em retratar a população idosa, com a gente de Ogliastra, na Sardegna.
Depois de passar um dia todinho mergulhando e fazendo grotto tour, um passeio de caverna em caverna muito praticado pelos italianos, continuei viagem para a mítica Costa Smeralda. A região nordeste da ilha tem vista para outras, como a francesa Córsega e o Arquipélago La Maddalena, e é onde há a maior concentração de iates e jatinhos durante o verão europeu. A ostentação litorânea, que difere em tudo do interior insular, começou há 60 anos, quando Karim Aga Khan desembarcou na baía até então calma, maravilhou-se e passou a desenvolver e promover o destino para a alta sociedade mundial da época.
Para fugir dos preços estratoféricos sem abrir mão de aproveitar as praias de mar calmo e quente, escolhi uma hospedagem rural em Arzachena onde já funcionou um haras e ainda vivem vários burrinhos, além de ter viajado na primavera. Comprovei que os centenários estão mais no interior mesmo, como na bela piazza de San Pantaleo, convivendo entre um aperitivo e outro com a montanha ao fundo.
À mesa, outro espetáculo e, para minha surpresa, mais carne de porco e borrego do que de peixe, mas apenas em ocasiões especiais. O dia a dia é recheado de frutas e vegetais (os cítricos, melões, aspargos e alcachofras da Sardegna são famosíssimos), pães e massas muito diferentes do restante da Itália, além de queijos de ovelha e de cabra.
Sempre com uma ou duas tacinhas do ótimo vinho local, como os das castas Vermentino e Cannonau, que têm até três vezes mais flavonoides que a média global — a substância regula a pressão sanguínea e controla o surgimento de doenças cardíacas. Sem esquecer do licor de mirto, um primo do mirtilo que ajuda na digestão, e ainda fazendo menção honrosa para a ótima Ichnusa, a cerveja local. Se estiver em busca de uma experiência completa, reserve pelo menos uma mesa, idealmente uma pensão completa, em um dos vários Agriturismo espalhados pela ilha.
A Kent’Annos, é a forma de brindar no dialeto sardo e quer dizer "que você viva até os 100".
Minha última parada foi em Sorso, quase na parte noroeste, que é influenciada pelo domínio da Catalunha. Escolhi a cidade pelo hotel: um prédio Art Noveau do século passado que foi completamente restaurado, mantendo os afrescos em todos os quartos mobiliados com design contemporâneo. A pequena vila surpreendeu igualmente, já que pude sentir a partir de todas as gerações com quem conversei o senso de comunidade, segurança e respeito por aquela terra.
De quebra, ainda conheci a praia mais bonita que meus olhos já viram: La Pelosa. O deslumbramento com a cor do mar ficou evidente com o comentário do meu companheiro à chegada: “parece que tem Photoshop, mas não tem, eu tô aqui vendo com meus olhos”. O segredo está no controle diário do número de visitantes que visa à preservação da areia fina e branquíssima: não é permitido estender toalhas e é preciso lavar os pés antes de sair da praia para não levar nenhum grão ou concha consigo. Caso você desrespeite e seja pego no aeroporto, poderá pagar multas altíssimas — o rigor é justificado pela história da Spiaggia Rosa, que não é mais rosada porque muitos visitantes levaram para casa ou para vender a areia criada a partir de fósseis triturados, cristais e coral.
A volta à ilha foi completada em um dia de road trip entre Alghero — onde comi a tradicional fregula, uma pasta de sêmola mais gordinha que o cuscuz, ali usada no lugar do arroz bomba para formar uma paella — e Cagliari. Voltei por uma estrada mais longa, mas panorâmica, avistando o mistral bater forte na costa acidentada. A quantidade de paradas só não acabou sendo maior em função do medo de perder o voo para o Porto, se bem que ficar não teria sido uma má ideia de todo.
No passado, muitos jovens deixaram a Sardegna em busca de condições melhores de vida, mas hoje é possível observar o caminho inverso. Sardos e não só começam a (re)descobrir a vida simples, tranquila e cheia de significado que é possível lá ter, muito por conta da falência do estilo de vida das grandes cidades. Talvez também queiram envelhecer bem.
Enquanto não é possível viver na ilha, tento praticar o que aprendi para viver mais e melhor como os centenários para, com sorte, também ser uma:
Caminhar sempre que possível, em qualquer lugar, por longos períodos;
Seguir a dieta mediterrânea, comprando frutas e legumes da cooperativa de agricultores da minha cidade. Em relação à bebida, beber pouco, mas bem;
Me permitir sentir em vez de reprimir as emoções;
Encontrar a minha “tribo”, nutrir esse tipo de relação e valorizar a família mesmo à distância;
Tomar muitos banhos de mar, mesmo que os gelados do Atlântico Norte.
Intenções reforçadas para 2024 e além.
FLÂNEUSERIE 💃🏻
[Recomendações de lugares por onde andei, testei e aprovei]
— Em Cagliari, pedir tagliere no Comus, almoçar no Impasto e tomar um café com meringhe con panna no Tramer;
— Alugar um barco pequeno sem skipper (na Itália não é preciso licença) ou partir em uma excursão marítima com a Gonone Rental nas praias de difícil acesso do Golfo di Orosei;
— Visitar a vila de Poltu Quatu, na Costa Esmeralda, para comprovar como é bonito ver o rico viver;
— Conhecer a Igreja Stella Maris, em Porto Cervo, mais mediterrânea impossível, e tomar um gelato de limão com manjericão no La Pasqualina;
— Hospedar-se no Agriturismo Ca’ La Somara e aproveitar a piscina de água salgada no entardecer;
— Pedir ostras, lagosta ou paella de fregula no Al Refettorio, em Alghero, preferencialmente em uma mesa exterior;
— Visitar a área arqueológica de Tharros.
SALVO EM ONDE QUERO IR 💾
[Onde ainda não fui, mas salvei na lista para ir]
— Su filindeu ou Threads of God, a pasta mais rara do mundo que é feita na ilha;
— Uma boate e um restaurante em um castelo no meio das pedras da Costa Esmeralda;
— O antigo gelato feito de neve sarda;
— Um jardim sonoro próximo à Cagliari;
— A cidade-fantasma de Gairo Vecchio, na Blue Zone sarda;
— Um retiro de yoga em junho na Sardegna conduzido por Silvia Urgeghe, uma mulher incrível de lá que vive no Porto;
— Nuraghes e Tomba dei Giganti, os redutos da civilização nuráguica na ilha, nativos da Era do Bronze, sendo este aparentemente o mais impressionante;
— Work from Ollolai, um programa que quer atrair nômades digitais para viver um mês por €1 a partir de uma vila azul da Sardegna.
UMA ÚLTIMA VISTA D'OLHOS 👀
[Inspiração para espreitar antes de ir embora]
— Uma jornada visual pela Sardegna entre arte e arquitetura;
— É hora de dar crédito à Sardegna pelo queijo pecorino romano;
— A revista sarda Lollove;
— Irmãs Murgione fazendo culurgiones, um ravioli típico da Sardegna recheado com batata, queijo pecorino e hortelã (vídeo enviado pela minha amiga, chef e mamãe da Julieta, Isabela Cordaro);
— Um jornal sobre o Mediterrâneo editado pela Monocle;
— Ode ao verão italiano em imagens.
Obrigada por ter lido até o fim! Orgulhosamente chegamos à décima edição de Bom Proveito, portanto estamos entre os 11% de todas as newsletters criadas no Substack e no LinkedIn que seguem publicando após o disparo da primeira carta — dados da Reletter.
E isso é só o começo! Mas, para continuar fazendo sentido, preciso que você também me escreva daí. Me diz o que está achando e o que quer ver por aqui neste ano?
Bom proveito e até a próxima edição – toda sexta-feira na tua caixa de entrada ou no aplicativo do Substack!
Com carinho e desejos de um ótimo 2024,
“Como os olhos da coruja, existem pensamentos que não suportam toda a luz. Eles só podem nascer à noite, onde sua função é a mesma da lua, necessária para mover marés de significado em algum lugar invisível da alma.” — Michela Murgia, escritora sarda que faleceu precocemente em 2023 e militava pelo feminismo, direito à imigração e autonomia da Sardegna.
https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/1559827616637066
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5590529/
Mais uma leitura deliciosa. Mais um lugar pra colocar na lista de desejos. Amei saber um pouco mais sobre a Sardenha! Quando achei que estava no fim, fui tocada pela citação da escritora sarda, uau!
Que delícia de texto. Eu morro de vontade de conhecer a Sardenha, mas sempre enrolo, agora derreti por aqui e vou ver se consigo uma mini temporada no meio do ano. Aliás, eu li um artigo no Guardian falando sobre jovens italianas migrando para regiões rurais para trabalhar com agricultura e ter melhor qualidade de vida. Beijos