15 | Folia ancestral, mascarada e de inverno 👹
As celebrações pagãs da península ibérica com 2 mil anos de existência foram catolicizadas e levadas pelos colonizadores para formar o Carnaval brasileiro, que por sua vez forjou o Brasil.
Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma. — Clarice Lispector em Felicidade clandestina.
A minha carne não é de Carnaval, mas Deus me livre de achar que sou melhor por isso. Já botei muito o meu bloco na rua. É só que hoje prefiro outro tipo de folia, amanhã pode ser outra história. Por isso e não só, me interesso pelas origens do ritual intrínseco à cultura de onde venho, mas que se alterou bastante pelo caminho até vir a ser o que é.
Aqui do outro lado do Atlântico, o Carnaval finaliza o calendário das Festas de Inverno, que acontecem há dois milênios entre o solstício da estação mais fria do ano e prolongam-se até quase o equinócio em pequenas vilas do interior. São rituais carregados de simbolismos, esotéricos também, para não dizer místicos. Resistem na mesma medida em que honram a passagem do tempo em um ritmo bem mercado pelas estações.
Um dos principais festejos é a brincadeira popular conhecida por entrudo. O festerê acontece sempre às terças-feiras de Carnaval, exatamente 47 dias antes do domingo de Páscoa. A palavra vem do latim introitus, que quer dizer entrada.
Trata-se, portanto, do início do período da Quaresma, quando normalmente católicos abstinham-se da carne. Mais usada hoje em dia, a palavra Carnaval, por sua vez, significa exatamente isso: carnis levale, algo como despedir-se desse tipo de prazer, ainda que temporariamente. E, já que haveria privações, que também houvesse um até logo para o que dá sabor à vida.
No entanto, antes da Igreja Católica, o que se conhece hoje por Carnaval nestas bandas nada mais era do que uma celebração pagã à fertilidade comumente associada à primavera. As pessoas reuniam-se para brindar com muito vinho o início do fim da escuridão invernal do hemisfério Norte. Colheitas e bebês eram esperados dali em diante, quase como um exercício de fé na vida com base em um renascimento anual.
No ano passado, viajei até a região de Trás-os-Montes, no nordeste português, para ver de perto o que deu origem ao Carnaval do Brasil levado pelos colonizadores. Cada vez mais procurado por turistas, o ritual do Carnaval de Podence: Entrudo Chocalheiro acontece anualmente entre o chamado Domingo-Gordo e a Terça-feira de Carnaval desde o chamado “tempo longo”, exatamente quando a vida era organizada em função dos ritmos do ciclo agrário.
Os protagonistas da festa transmontana que é patrimônio da Unesco são os caretos, tradicionalmente homens jovens e solteiros que usam trajes preenchidos com franjas de lã colorida, máscaras de lata ou couro e chocalhos à cintura. É essa espécie de sino comumente pendurado no pescoço das vacas que fornece a trilha sonora constante. Bastante fotogênicos, correm pela pequena aldeia de Podence em uma espécie de desfile para expulsar o mal. Sem deixar de incomodar ou mais precisamente “chocalhar” as mulheres em um simbolismo que remete mais uma vez à fertilidade.
Em outros tempos, eram vistos como diabos à solta e havia até quem se trancasse em casa para não ser alvo da brincadeira, que às vezes era marcada por uma intensidade que beirava à violência. Hoje, no entanto, é tudo muito mais brando e as mulheres também se vestem de caretos, como é possível ver neste curta documental feito pelo projeto Rostos da Aldeia. Filandorra, Madama, Velha ou Beilha, Sécia ou Mascarinha são outras figuras femininas da festa.
Existem ainda os facanitos, que são os caretos infantis responsáveis pela continuidade da tradição. São mais do que bem-vindos, tendo em vista o despovoamento tão comum em povoados remotos sul-europeus. Em Podence, os emigrantes retornam mais à casa durante o Carnaval quando no Natal, também delineando o período festivo como de reaproximação com os seus e as suas origens. É como se as aldeias renovassem as energias para começar o ano a partir do encontro.
Para além de música celta, comida à base de porco e hidromel completam a festa, que só termina com a queima do entrudo na terça-feira. O clímax do Carnaval acontece de forma bem ritualística, quando é ateado fogo em uma enorme figura de careto feita à base de ramos de árvore e folhas secas. Os personagens correm, dançam e gritam ao redor em uma espécie de transe que parece um ressurgir das cinzas. Algo sempre morre no inverno mesmo.
Várias outras festas semelhantes acontecem não só em Portugal, mas também na Espanha, principalmente na porção ocidental do país. Em comum entre todas está o uso de uma máscara, a máscara ibérica. Este ano, caso a tempestade Karlota dê uma trégua, penso em conhecer a Corrida do Entrudo nas Aldeias do Xisto de Góis, bem perto de Coimbra. Lá, a máscara é feita de cortiça e a queima de uma figura do entrudo também finaliza o festejo. O entrudo de Lazarim, na região do Douro, também está na minha lista.
No Brasil, o ritual de entrada na Quaresma fixou-se inicialmente no Rio de Janeiro entre os séculos 16 e 17. A prática mais comum era o jogo das molhadelas, que consistia em respingar de água suja ou limpa as pessoas que passavam pela rua. Nota-se que a zombaria da vizinhança permanecera, mas de forma bem mais tropical. Também contam o samba e outros elementos próprios da cultura afro-brasileira que foram incorporados ao longo dos anos.
Por motivos bem diferentes, alastrou-se por um país continental, especialmente entre as classes populares. Sempre foi uma oportunidade de suspender temporariamente as convenções sociais — tanto lá, quanto cá —, conjugando sagrado e profano e fantasiando-se a si mesmo e a realidade quando necessário. Nunca deixou de ser perseguido pelas elites, que queriam mantê-lo nos salões em vez das ruas, e agora nem nas ruas. É que a alegria é mesmo revolucionária.
Parafraseando Luiz Antônimo Simas, o Brasil não inventou o Carnaval, mas o Carnaval inventou o Brasil.
FLÂNEUSERIE 💃🏻
[Recomendações de lugares por onde andei, testei e aprovei]
— Cádiz: callejeros que são, os espanhóis não podiam deixar de ter um Carnaval de rua, que acontece durante pelo menos 10 dias no Sul da Espanha desde o século 16 e aposta em sátira social;
— Florianópolis: nunca gostei muito dos blocos, mas gostei da experiência na Passarela Nego Quirido, um dos poucos momentos em que a capital catarinense olha um pouco mais, ainda não o suficiente, para a sua cultura negra;
— Rio de Janeiro: já curti os bloquinhos com amigas queridas, mas ainda sonho em ir assistir ao desfile das escolas de samba com a minha mãe. O Rio é um acontecimento, e o Sam Youkilis acabou de chegar lá para fazer suspirar ainda mais quem está longe;
— Psicodália: é um festival meio hippie que acontece na serra catarinense pelo qual tenho muito carinho por ter entrevistado e assistido ao show de Elza Soares em 2016. De volta este ano, terá Manu Chao e Chico César;
— São Paulo: não deixo de me impressionar com o ressurgimento e o crescimento do carnaval na metrópole. Se você está quebrando a cabeça para escolher o bloquinho, ainda dá tempo de checar a curadoria da
, que sabe de SP como ninguém.SALVO EM ONDE QUERO IR 💾
[Onde ainda não fui, mas salvei na lista para ir]
— Veneza: de origem medieval, é das grandes atrações da cidade. Tenho vontade de ir para fotografar os trajes e, claro, as máscaras famosas mundialmente. Este ano, o tema é a viagem de Marco Polo ao Oriente;
— Bolívia: em Oruro, acontece a celebração máxima do folclore boliviano a quase 4 mil metros de altitude. Pré-colombiano e perseguido pelos espanhóis, os rituais resistiram para tornarem-se patrimônio da Unesco;
— Nice: há 150 anos o Sul da França organiza um desfile anual sempre à volta de uma temática. A cultura pop é a inspiração para 2024;
— Colônia: o maior Karneval alemão começa oficialmente às 11h11 de 11 novembro! Os festejos mesmo acontecem durante os quatro dias tradicionais, de pub em pub, e prometem dar vida à cidade cinza banhada pelo Reno;
— Barbados: este vistoso Carnaval caribenho conhecido por Crop Over não acontece nas datas habituais, mas no começo de agosto e em comemoração ao fim das colheitas.
→ Tem alguma recomendação? Deixa pelos comentários!
UMA ÚLTIMA VISTA D'OLHOS 👀
[Inspiração para espreitar antes de ir embora]
— Pequenas Áfricas: O Rio que o Samba inventou, exposição que pelo menos a partir do tour virtual parece estar incrível. Em cartaz no IMS Paulista até meados de abril;
— Os artistas que estarão na Bienal de Veneza em 2024, que pela primeira vez terá um curador do Sul Global e, melhor ainda, brasileiro — vi na
;—Lista de destinos para 2024 do NYT, já que para muita gente o ano só começa agora e sempre há tempo para sonhar e planejar, sobretudo com uma lista tão embasada. Só não vale ser vítima da 123 Milhas, que este ano terá até bloquinho;
— Farofar à beira-mar é revolução, sobre a festa que é comer a própria comida na praia, este espaço cada vez mais em disputa;
— Instalação-estreia de Marina Abramović no Brasil, Generator é um muro com quartzo rosa que me lembrou desta edição da newsletter
sobre o sonho que deve ser a Chapada dos Veadeiros.Ei, obrigada pela leitura! Neste Carnaval, você vai para embarcar no agito, no sofá ou em uma viagem? Aqui nem feriado é, maior tristeza, mas vou adorar saber dos seus planos. Você pode responder este e-mail ou deixar pelos comentários.
Também vou aproveitar para dar as boas-vindas para as várias pessoas que chegaram depois da última edição sobre Nápoles e da minha notinha sobre o novo filme baseado em A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector, yey! Esta é uma newsletter cujo tema central é viagem, mas no seu sentido mais amplo, o que acaba envolvendo livros, filmes e por aí vai. Espero que desfrutem a jornada!
Bom proveito e até a próxima edição – toda sexta-feira na tua caixa de entrada ou no aplicativo do Substack!
Com carinho,
“Eu quis um dia, como Schumann, compor
Um Carnaval todo subjetivo:
Um Carnaval em que o só motivo
Fosse o meu próprio ser interior…”, Manuel Bandeira.
Lendo com duas semanas de atraso, como de costume. Obrigado pela menção. :D
Sempre me impressiono com a sua dedicação à newsletter. Não só o texto é bem escrito, mas recheado de muita pesquisa e uma boa dezena de links interessantes. Eu não conseguiria fazer uma edição assim por mês, imagine todas as semanas. Parabéns!
Obrigada pela menção generosa ;)