14 | Tem cidade que é personagem de livro 🏙️
De tão palpável nas páginas, deixa de ser só cenário. Assim é a importância de Nápoles para a obra de Elena Ferrante. Este é o meu relato de viagem pelo bairro seguido de outros destinos literários.
«A felicidade, fique o leitor sabendo, tem muitos rostos. Viajar é, provavelmente, um deles.» José Saramago em Viagem a Portugal, 1981.
Tenho viajado à Itália semanalmente desde o início do ano. Não fisicamente, mas a partir dos e-mails enviados pela Isabela Discacciati. Primeiro estive no bairro espanhol napolitano, depois fui a Pisa e, por último, retornei a Nápoles, desta vez na sua zona industrial. Não vejo a hora de visitar igualmente por meio da leitura Ischia e Florença, locais que também dialogam com uma de minhas paixões literárias: a tetralogia de Elena Ferrante.
Não só conversam, mas têm status de personagem de tão importantes que são para o desenvolvimento do enredo. Interagem, afugentam ou atraem. Falei pela primeira vez desse caráter personificado do território neste episódio do Posfácio Podcast, das colegas
, mas em se tratando de Nápoles há sempre algo ainda a ser dito, mesmo que muito se revele no não dito. Foi o que senti quando estive fisicamente na cidade que vive à sombra do vulcão Vesúvio em setembro de 2021. As palavras da Isabela também me guiaram, já que montei o meu roteiro de viagem com base em um artigo do seu blog — hoje há até um guia ilustrado da cidade.Antes, no entanto, eu havia conhecido Nápoles pelas palavras dos meus pais. Eles me contam que frequentavam uma pizzaria chefiada por um simpático casal napolitano. O local se chamava Scugnizzo, uma palavra dialetal incorporada ao italiano que possui múltiplos significados, desde “menino animado, muito vivaz” até “gênio das ruas napolitanas” — provavelmente consta neste livro adorável que vi em uma vitrine na Emilia-Romagna no último outono. Lá, minha mãe grávida de mim era incentivada a tomar um pequeno cálice de vinho tinto da casa para que a bebê viesse forte e, principalmente, com as bochechas rosadas em sinal de saúde. Acho que deu certo.
Nápoles posteriormente voltou ao meu horizonte a partir dos quatro livros da misteriosa escritora italiana sem rosto. Lembro que embarquei na leitura em 2017, quando já havia um certo burburinho acerca da história de Lila e Lenù. Nunca duvidei de que Elena Ferrante seria uma mulher, tamanha a capacidade de descrever as questões que nos permeiam. Tampouco contribuí com a sanha patriarcal que não suporta o sucesso feminino nem mesmo no anonimato.
Fui engolida pela narrativa durante uma viagem de férias de verão ao Uruguai, quando virei a noite em Cabo Polônio lendo o segundo livro e sofri não poder baixar o próximo no Kindle. É que não havia energia elétrica no vilarejo de praia, muito menos internet. A desconexão momentânea contribuiu para a construção do imaginário da região da Campânia, que viria a conhecer dali a quatro anos.
Assistir à adaptação da tetralogia napolitana feita pela HBO, cuja última temporada tarda e será lançada somente no fim de 2024, coroou o desejo de me embrenhar pelo bairro. Que bairro? O bairro, ora. Rione Luzzatti. Aquele que a guia turística napolitana riu ao me ouvir dizer que iria visitar após o free walking tour centrado na parte histórica de Nápoles, onde em Port D’Alba atrasei o grupo para olhar com calma as livrarias e os sebos onde Lenù folheava livros.
É que a maioria dos italianos não dá a mínima à Elena Ferrante, não entende o turismo temático gerado ao redor de sua obra e, para a minha surpresa, são as mulheres que parecem menos gostar da escritora. Acredito que se deve ao fato de a autora tocar em pontos sensíveis que constituem a sociedade da Itália pós-guerra, a exemplo da violência. Algo como se olhar no espelho e não gostar muito da imagem refletida. Comprovando a força do olhar estrangeiro, uma imigrante dos Estados Unidos que vive em Turin descreveu o fenômeno como Ferrante Fatigue.
Pois aí que me deu mais vontade de ir, e fui. Não sem antes almoçar uma pizza naquele mesmo lugar da Julia Roberts em Comer, Rezar, Amar. O calor sufocante de um verão que parecia não querer ir embora minou a fome. Acabou sobrando a metade de uma margherita, que meu companheiro pacientemente transportou em uma caixa durante todo o passeio por um lugar que ele só conhecia a partir do meu relato, talvez exaustivo, mas apaixonado, visto que ele não é um ferranter. Eu estava excitada demais para carregar algo além do meu próprio corpo elétrico.
A energia era tanta, dizem que do vulcão sempre à espreita, que decidi ir a pé. Honestamente, não poderia ter acertado mais. Ao longo dos 13 quilômetros percorridos, pude observar a cidade mudar gradualmente: indo do centro relativamente arrumado para o bairro periférico da classe trabalhadora com ar de abandono do poder público. As flores nas varandas deram lugar aos varais cheios de roupa recém-lavada, que logo seriam secas pelo sol do Sul da Europa a despeito da umidade trazida pelo Mediterrâneo, que é ao mesmo tempo perto e distante dali.
Ainda me situando no cenário da novela, consegui reconhecer a escola, a igreja e a biblioteca tão presentes nas páginas dos livros graças a alguns murais pelas paredes. Dizem ter sido feitos pelos produtores da série televisiva. No muro de acesso ao prédio onde as meninas estudaram, havia uma foto das atrizes que interpretaram Lila e Lenù na infância. A segunda delas, que narra a história, estava sem rosto, assim como acontece com a autora.
A professora Oliviero e o professor Ferraro estampam a entrada da biblioteca, que infelizmente estava fechada. Me contentei com o bar em frente, que tinha ares de estabelecimento dos irmãos Solara, onde pude ouvir o dialeto em alto e bom som. Assim como o bairro, a linguagem popular em relação ao italiano clássico importa muito na obra de Elena Ferrante — e em Nápoles como um todo.
Nas horas em que caminhei por Rione Luzzatti, também pude ver o estradão, mas o que me emocionou mesmo foi o túnel. Deixei por último aquele portal para vidas outras, certa de que não era a mesma após conhecer aquele local. Ali ao lado peguei o trem para voltar para a região do Porto — onde me hospedei e parti para Capri e Costa Amalfitana nos dias seguintes — para comer o restante da pizza da Michele e observar o entardecer com o Vesúvio a partir do lungomare, como se chamam as ruas ou avenidas mediterrâneas pela Itália. Segui os passos da Lenuccia e escolhi o Caracciolo.
Conhecer Nápoles foi mesmo como encontrar um personagem ferrantesco, porque certamente li a cidade a partir da lente da autora. Na volta da viagem, devorei A vida mentirosa dos adultos e entendi de imediato a diferença entre as partes alta e baixa da cidade, como se tateasse um corpo familiar. Vomero e quartieri spagnoli comprovam que se trata de um local ambivalente, ou pelo menos de contrastes, ambos com muita personalidade. E até lendo o italiano Domenico Starnone, também dono de uma trilogia fascinante, reforcei a impressão de gente daquele lugar cheio de nuances.
Assim como as pessoas napolitanas, que a constituem, Napul'è é dona de uma atmosfera indescritível. E não só por Elena Ferrante, afinal foi porto do berço da civilização, sem falar no fascinante sítio arqueológico de Pompeia ali do lado. Por isso, fico sempre querendo voltar ou reler os livros, como já recomendou o colega
. Talvez encare a maratona até o fim do ano para assistir ao fim da série com tudo bem fresco em mente e encerrar bem esse ciclo literário tão importante na minha vida. Depois, o novo livro da Isabela Discacciati, Para além das margens: a Itália de Elena Ferrante, já está na minha lista antes mesmo de ser lançado.As fotos fazem parte de um ensaio de Giuseppe di Vaio para o Guardian.
FLÂNEUSERIE 💃🏻
[Recomendações de lugares por onde andei, testei e aprovei]
— Côte d’Azur: Assisti ao filme La piscine em uma retrospectiva da Jane Birkin esta semana e vi muitas similaridades com o livro Nadando de volta para casa, de Deborah Levy. As duas obras se passam no sul da França e rendem um roteiro belíssimo entre Nice, praias e villas com o som das cigarras ao fundo;
— Portugal: Para além do Viagem a Portugal, cuja nova edição com fotos, textos e itinerários inéditos de Saramago está em pré-lançamento no Brasil, há do mesmo autor o Memorial do Convento, que motivou a criação de uma rota cultural e histórica a ser explorada por viajantes leitores em várias cidades do país;
— Barcelona: Já fui uma leitora assídua de Carlos Ruiz Zafón e a sua tetralogia que começa com A sombra do vento coloca a capital da Catalunha no centro da narrativa, inclusive há até um guia específico publicado;
— São Paulo: Ao ler a biografia de Tarsila do Amaral, visualizei um percurso que vai desde fazendas no interior do Estado até a metrópole, sobretudo em locais importantes para o modernismo brasileiro;
— Inglaterra: Ainda não conheço os escritos de Jane Austen, mas a obra de Virginia Woolf já me rendeu um ótimo roteiro temático por Londres. Inclusive, ando namorando o seu livro Viagens.
SALVO EM ONDE QUERO IR 💾
[Onde ainda não fui, mas salvei na lista para ir]
— Ilhas Canárias: Tenho muita vontade de voar até lá desde que li Andrea Abreu, que escreveu sobre duas amigas geniais das ilhas vulcânicas, atlânticas e espanholas em Pança de burro;
— Coréia do Sul: O sucesso estrondoso Aos prantos no mercado, que nos últimos dias atingiu 1 milhão de cópias vendidas, não se passa no país asiático, mas é recheado da comida de lá, o que me fez desejar ir longe. E aí também conhecer Paju, a cidade sul-coreana dos livros;
— Estocolmo: A trilogia Millenium me acompanhou na adolescência e, desde então, tenho vontade de conhecer a capital sueca de Stieg Larsson, onde há um roteiro específico;
— Irlanda: Também desejo conhecer in loco o universo Sally Rooney, da biblioteca de Trinity College até o interior e chegando aos cliffs. A fotografia da série inspirada em Pessoas normais indica que é tudo belíssimo;
— NYC: A Nova Iorque de Só garatos deve ser incrível, principalmente levando em conta o olhar viajante de Patti Smith, sobre o qual já escrevi em Portal do Mundo: M Train, de Patti Smith.
UMA ÚLTIMA VISTA D'OLHOS 👀
[Inspiração para espreitar antes de ir embora]
— Metrópole: modo de usar, nova edição da revista 451 sobre a história das cidades, inclusive com um rolê literário por Portugal;
— Fiat 500 Spiaggina, o carrinho no qual adoraria rodar todo o Sul da Itália, de praia em praia;
— “Viagem de turismo tem sempre algo de ridículo e ilusório”, artigo publicado na Gama Revista que me pareceu uma egotrip elitista, mas adoraria ouvir outras opiniões;
— Promoção da Taschen, que até domingo, 4/2, vende livros com descontos que chegam a 75%;
— Leituras Extraordinárias, o clube de leitura da
e da imperdível para viajantes que estejam em São Paulo em 2024, já que o tema é viagem.Muito obrigada pela leitura! Me conta se você também já viajou ou quer viajar para alguma cidade depois da leitura de um livro? Em tempos de viagens todas iguais, penso ser cada vez mais importante pensarmos bem onde desejamos ir e por quê.
Bom proveito e até a próxima edição – toda sexta-feira na tua caixa de entrada ou no aplicativo do Substack!
Um abraço com carinho,
“Nápoles parecia uma onda que me afogaria”, Elena Ferrante.
Também adorei ler a tetralogia napolitana e acompanhar a série. Tinha ouvido falar que essa região de Nápoles onde as protagonistas cresceram era perigosa pra turistas, mas que bom que dá pra visitar numa boa.
Gostei muito desta postagem inspirada por Elena Ferrante. Londres foi meu lugar de destino muito sonhado. Mas acho que eu esperava a Londres do século XIX, pois devorei, desde a pré-adolescência, Conan Doyle e seu Sherlock, bem como uns livros de uma coleção para moças que tinha sido de minha mãe e contava histórias de moças e meninas daquelas épocas. O ambiente de casas com governantas e moças quase aristocratas me fascinava tanto quanto as ruas fumarentas dos lugares por onde o crime rondava. Cheguei lá somente aos 50 anos, já motivada por interesses acadêmicos, mas curti ir a lugares com os quais tinha familiaridade através daquela literatura, tanto tempo antes. Em tempo: na adolescência tardia li muitos autores e autoras ingleses. Ajudou a mudar um pouco o foco.