16 | Há um cartão postal literário nos cinemas 🪳
Fragmentos escritos após assistir à pré-estreia do filme A paixão segundo G.H., baseado no livro de Clarice Lispector, seguida de debates com realizadores. E mais cinemas para conhecer em viagens.
“Estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda”, Clarice Lispector nas primeiras linhas de seu mais famoso romance que acaba de ser transposto para o audiovisual.
1.
A chance de dar errado era muito grande. Quem em sã consciência aceitaria para si o desafio de adaptar A Paixão Segundo G.H. para o cinema? Para além do maior empreendimento literário de Clarice Lispector, pelo qual é reconhecida internacionalmente, é um livro a priori infilmável. Feito de pensamentos profundos, pouquíssimo imagético, apesar do fio do enredo simples só na aparência.
Uma mulher de Copacabana vê a empregada demitir-se, decide arrumar o quartinho onde a doméstica dormia e encontra uma barata. É a partir da exploração máxima – meu corretor ortográfico sugere mágica – da linguagem que o livro engrandece. Torna-se uma reflexão existencial que culmina em uma perda de identidade, sempre dentro de um espaço claustrofóbico e sem a presença de outros personagens.
Foi com essa desconfiança que saí de casa para assistir ao novo filme de Luiz Fernando Carvalho e Melina Dalboni, com interpretação de Maria Fernanda Cândido e Samira Nancassa. Nas últimas semanas, a equipe esteve em turnê para reafirmar à Europa a potência clariciana, essa espécie de cartão postal literário do Brasil. E, agora, também cinematográfico.
Primeiro no Festival Internacional de Cinema de Rotterdam, onde foi ovacionada em sessões lotadas. Depois, na programação do aniversário do Cinema Trindade e em uma aula de crítica de arte no Batalha Centro de Cinema, ambos no Porto, em Portugal. A previsão é de que A Paixão Segundo G.H. seja exibido em larga escala nos cinemas brasileiros ao longo das próximas semanas. Os bilhetes para as sessões nos festivais no Rio de Janeiro e em São Paulo no fim do ano passado esgotaram-se em questão de minutos.
2.
Logo nos primeiros segundos do filme, ouve-se o barulho de uma máquina de escrever. “Vou criar o que me aconteceu ontem”, anuncia G.H. na voz de Maria Fernanda Cândido. Naquele momento, é selado um compromisso de fidelidade ao livro de Clarice, que se cumpre ao longo das mais de duas horas do longa-metragem.
Tanto que, ao longo da sessão, fico com a vontade de grifar o filme, se é que isso é possível. Resisto ao impulso de pegar caderno e caneta para anotar as frases marcantes, que são muitas e me lembram a leitura da mesma obra. E isso não se dá somente por um respeito profundo ao texto, que se materializou em sessões de preparação literária entre a equipe, inclusive com a participação de especialistas do nível de Nádia Gotlib, uma das biógrafas de Clarice.
Descubro mais tarde que o diretor criou um aparato próprio para rodar o filme, a sua resposta criativa à leitura. Batizada de “Lente G.H.”, é uma contradição por si só. Uma mistura de grande angular com desfoque de teleobjetiva. Usada principalmente para closes em G.H. e na barata, simula a distância entre a retina e a página de um livro. Estamos mesmo diante da leitura de um filme.
3.
O que mais se vê no filme d'A Paixão Segundo G.H. é o rosto de Maria Fernanda Cândido filmado muito de perto. Há um propósito nisso, além do enfoque no monólogo interior, que é o de atingir uma noção animalesca. A atuação epifânica de uma atriz que se desdobra em várias – quase em transe guiada por um diretor meio xamânico, que nem sempre avisava quando estava filmando – é o arremate final.
Para um público hipnotizado por sua atuação desde as telenovelas brasileiras, Maria Fernanda contou que até então nunca esteve diante da missão de despersonalizar um personagem. Era sempre o contrário. Compara o convite do amigo Luiz Fernando, com quem já trabalhou em Capitu e Dois Irmãos, a pular de um precipício.
Me lembro, então, de uma das cenas mais significativas do filme: a protagonista fuma um cigarro na janela em frente ao quarto de empregada, que dá para um vão interno do prédio da elite carioca da década de 60. Ela observa as cinzas caírem no fundo escuro enquanto debate-se entre a vertigem que seduz e o empuxo de voltar para dentro. Era tarde. O abismo já havia olhado de volta para G.H., acostumada a contemplar somente a partir da janela da sua sala de estar, tão perto do mar de Copacabana que parece um prolongamento seu.
A G.H. do cinema vacila ao entrar no quartinho que era de Janair, a empregada há pouco demitida. Esperava um espaço imundo, mas encontra algo imaculado, não fossem as inscrições hieroglíficas em carvão na parede-caverna. Não fosse a barata. Na fusão entre o belo e o grotesco, a protagonista decide encarar tudo o que daí vem. Ou seria mergulhar?
O que importa aqui é que ela poderia ter saído do quarto e, por algum motivo, decide ficar. Enfrenta com obstinação a busca por alguma coisa, não sem pânico de encontrá-la. “Eu estava saindo do meu mundo e entrando no mundo”, diz a personagem. E a escritora.
4.
Em uma das conversas com a equipe alguns dias após assistir ao filme, comento com o diretor e a roteirista sobre uma cena que não me sai da cabeça. Presente no trailer, é a porta do quarto de empregada, por onde G.H. entra para sair de si, que estampa uma desbotada bandeira do Brasil. Talvez não há nada que represente melhor a sociedade brasileira do que esse espaço que sucede a senzala – lembrança que julguei imprescindível de ser feita perante uma plateia portuguesa.
Luiz Fernando conta que a imagem já estava colada à madeira antes mesmo do apartamento (que não tinha só um, mas três quartos de empregada) tornar-se set de filmagem. Quando ainda se preparavam para rodar, a equipe de cenografia quis retirar a bandeira. O diretor decidiu mantê-la.
Durante as gravações em 2018, era nítida a mudança de ventos na política brasileira, inclusive com o sequestro de símbolos nacionais pela extrema-direita. Manter a figura na porta do quarto de empregada para a realização daquele filme era um símbolo de resistência, além de um elo entre presente e passado que insiste em repetir-se. O ambiente, afinal, emula a época ditatorial em que o livro de Clarice foi escrito.
Por isso, é tão importante “iluminar Janair”, como fez questão de colocar luz a roteirista Melina Dalboni em relação à empregada. Fico com a mesma impressão de uma leitura sociológica presente mais no filme do que no livro. Não por falta da escritora, muito longe disso. Afinal, o conto Mineirinho e a própria formação em Direito motivada na reforma da condição de vida dos presídios brasileiros comprovam o compromisso social intrínseco à Clarice Lispector.
Talvez haja aqui uma influência da crítica literária, que não raro menciona mais a barata do que a empregada. De todo modo, é uma possível falha de interpretação que o filme faz questão de corrigir. Isso por si só já é um grande mérito, capaz de dar contorno próprio à obra audiovisual.
Penso ser nessa autoafirmação que reside o motivo para o diretor recusar a palavra “adaptação”. Para não reduzir a potência poética do texto de Clarice, diz que prefere “revelação”. Em seu revelar tão próprio, não há hierarquia entre imagem e texto. A palavra é estrutural. E, acrescento, estruturante.
5.
A Paixão Segundo G.H. é um deleite para o olhar. Filmado em uma câmera com película de 35mm, conserva uma luminosidade própria. Vai bem com as cores tão bem empregadas em uma paleta que não só agrada esteticamente, mas que também passa uma mensagem. Da decoração cravejada de obras de arte no apartamento escolhido para ambientar a história ao figurino.
A tonalidade dos vestidos usados pela elegante Maria Fernanda Cândido acompanham o humor da personagem interpretada. A cor castanha do uniforme de Janair funde-se à sua pele, reafirmando a sua invisibilidade em uma sociedade ainda tão desigual.
A trilha sonora também acerta ao criar uma tensão constante. Parece ser a cola da montagem, talvez a etapa mais longa da produção do filme. Feita, inclusive, em esquema de parceria entre o diretor, a roteirista e especialistas no universo de Clarice Lispector interessados em impor uma ordem própria para os escritos da autora no cinema.
6.
Samira Nancassa é quem interpreta a empregada sem sobrenome Janair. É importante que seu nome seja dito mais de uma vez. Tornou-se atriz junto com o filme.
Imigrante da Guiné-Bissau no Brasil, formou-se administradora, mas não conseguia emprego. Trabalhou de doméstica. Também ganhou um concurso de beleza africana e foi parar no jornal. O periódico em questão estava de canto no apartamento escolhido para rodar A Paixão Segundo G.H. e foi folheado pelo diretor, que bateu os olhos em Samira e disse ter visto Janair.
Até então, a audição de nenhuma outra atriz havia convencido Luiz Fernando. Ele não acrescentou falas à personagem de Clarice. No entanto, permitiu que se expressasse inteiramente pelo não dito, sobretudo com os olhos, quase em contraponto à verborrágica G.H.
7.
Outro aspecto de que gosto muito no filme é a repetição. Como o telefone constantemente colocado fora do ganho, que também indica a desconexão de G.H. com o mundo, incluindo o ex-amante, para conectar-se consigo mesma. Talvez pela primeira vez. Algo que a permite chegar até algo amorfo, como a goma viscosa que sai brilhando da barata que não deixa de mexer as suas antenas em uma tomada que igualmente se repete.
As mãos da atriz também aparecem muitas vezes. É claro que isso se dá pela protagonista ser uma escultora. Me refiro mais especificamente às mãos soltas de Maria Fernanda Cândido no ar, quase sempre em movimentos circulares. Interpreto como o caminho em direção a um labirinto tateado às cegas, no fundo escuro do armário, e percorrido por ela própria para chegar à conclusão de que “a vida se me é”. Frase essa também pronunciada à exaustão por uma atriz que soube empregar a variação da sua voz como guia para quem assiste, em meio à profusão de imagens e palavras dispostas em cortes rápidos.
8.
O filme exibido em pré-estreia no Brasil não é o mesmo filme projetado na Europa. Houve uma mudança na última cena, decidida às pressas pelo diretor após um debate na Mostra de Cinema de São Paulo. Luiz Fernando achou insuportável a ideia de redenção romântica para a protagonista.
Para desespero da distribuidora, voltou à montagem para adicionar uma cena que deixa clara a sua libertação individual, pela via do corpo. Junto com a música escolhida a dedo, o take final é um alívio. Um espasmo de quem descobre a pulsão de vida após ter engolido uma barata esmagada.
Ninguém em sã consciência levaria A Paixão Segundo G.H. para o cinema. Só quem já passou por desmoronamento semelhante à protagonista. O diretor identificou-se com as questões de Clarice enquanto filmava outro livro exigente: Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar.
Assim como a escritora se dirige no prefácio às “pessoas de alma formada”, também acredito que o filme dialogue mais com aqueles, especialmente aquelas, que já se perderam para se acharem perigosamente. Ou, pelo menos, com quem tem disposição de embarcar em uma viagem visual do discurso rumo ao desconhecido, podendo ou não entendê-lo. É um enigma à altura de Clarice Lispector.
FLÂNEUSERIE 💃🏻
[Recomendações de lugares por onde andei, testei e aprovei]
— Eye Filme Museum, Amsterdam: é um espaço incrível na parte norte da cidade para assistir, pensar e celebrar cinema;
— Le Champo, Paris: sala tradicionalíssima do Quartier Latin que ficou famosa a partir de diretores da new wave do cinema francês;
— Cinema São Jorge, Lisboa: cinema de rua bem simpático na capital portuguesa, que pode ser visitado junto com a Cinemateca, onde a programação costuma ser ótima;
— Sala Équis, Madrid: foi casa de um dos últimos cinemas pornô da cidade. A entrada dá num bar com um projetor ao fundo e som ambiente. Fechada, a sala de cinema tem poltronas de veludo e espaço para apoiar uma tacinha do que você escolher beber;
— Rio Cinema, Londres: sala Art Deco independente em East London com mais de 100 anos de história.
SALVO EM ONDE QUERO IR 💾
[Onde ainda não fui, mas salvei na lista para ir]
— Village East Cinema, Nova Iorque: o cinema de rua quase centenário onde Patti Smith foi assistir Poor Things com seu amigo Lenny Kaye e contou aqui;
— Giunti Odeon Libreria e Cinema, Florença: recém-aberto após reforma, este espaço de 1922 une o melhor dos mundos e ainda acrescenta um restaurante, pois Itália;
— Raj Mandir, Jaipur: fachada lindíssima de um dos cinemas mais famosos da Índia, a casa do Bollywood;
— Museum Lichtspiele, Munique: uma sala intimista rodeada por papel de parede, estátuas e lustres belíssimos que se dedica aos musicais;
— The Labia Theatre, Cidade do Cabo: um dos cinemas independentes mais antigos da África do Sul, tem um bar no jardim que convida à discussão depois da sessão.
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UMA ÚLTIMA VISTA D'OLHOS 👀
[Inspiração para espreitar antes de ir embora]
— Residência Literária Finestres, a casa onde Truman Capote escreveu A sangue frio, na Costa Brava, agora é uma residência literária;
— Terapia outdoor, a tendência na psicologia de fazer sessões ao ar livre para que pacientes possam conectar-se com a natureza (e consigo mesmos) mais facilmente;
— Mães de Bragança, o fenômeno conservador de duas décadas atrás que ainda molda a imagem da mulher brasileira em Portugal, narrado em episódio de podcast impressionante da Rádio Novelo;
— Um defeito de cor, o livro de Ana Maria Gonçalves agora em primeiro lugar na lista de mais vendidos na Amazon Brasil, foi o samba-enredo da Portela, que emocionou até o fim ao colocar um carro com 16 mães que perderam filhos para a violência policial, entre eles a mãe de Marielle Franco, que ainda teve a presença da gigante Conceição Evaristo;
— Viagem à Amazônia, com Ailton Krenak de 1993 a 98, em exposição fotográfica no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo.
Obrigada mais uma vez pela leitura! Daqui, gostei muito de decantar um filme tão denso a partir da escrita. E ainda de pensar sobre cinemas que já visitei ou ainda pretendo visitar em viagens, jeito esse tão gostoso de conhecer um lugar. Me conta o que achou? Use o botão abaixo para mandar esta edição para alguém que gosta de Clarice ou de filmes!
Viu que a Mangueira colocou a pombagira na avenida? Quem aí também se lembrou da edição sobre Sevilha na qual conto a história de Maria Padilla, a rainha espanhola que atravessou o Atlântico para ser cultuada nos terreiros do Brasil? Caso você tenha chegado depois ou queira reler, clique aqui!
Bom proveito e até a próxima edição – toda sexta-feira na tua caixa de entrada ou no aplicativo do Substack!
Com carinho,
“Viver é sempre questão de vida e morte, por isso a solenidade”, Clarice em A paixão segundo G.H.
Fiquei ainda mais curiosa com o filme depois de ler o seu texto! E a fotografia dele parece linda demais <3
Adorei ler também sobre os seus cinemas! Parecem ser lugares ótimos e cheios de história (e detalhe: um site mais bonito que o outro desses cinemas, hein? Eu amei).
Algo assim tão bem decantado da muita vontade de apreciar, mesmo. Ansioso para assisitir o filme e desfrutar dessa obra infilmável.