7 | De rainha na Espanha à pombagira no Brasil 💃🏿
A história desconhecida de María de Padilla, cujo arquétipo moldou a postura das espanholas e é cultuado em rituais afro-brasileiros. Mais um motivo para visitar Sevilla, a cidade que me deu o mundo.
“Há que sevilhizar a vida. Há que sevilhizar o mundo”, João Cabral de Melo Neto, poeta brasileiro que também viveu e se apaixonou pela capital da Andaluzia.
Gosto de sugerir algo bem peculiar para quem me diz que vai a Sevilla, onde morei durante um intercâmbio e tive o privilégio de voltar algumas vezes ao longo da última década: a Plaza de España, a Catedral ou o Metropol Parasol são fáceis de localizar, então preste atenção nas mulheres de lá.
No jeito que caminham, ocupam e vivem a cidade. Como conversam com outras pessoas — quase sempre rodeada de outras mulheres, mas também muito bem sozinhas, gracias. Nas palmas que já nascem sabendo bater de forma ritmada, tendo inclusive criado uma categoria de música e dança com o próprio nome: a sevillana. A forma quase hipnotizante com que não pedem licença para simplesmente serem, em todas as idades e muito confortáveis na própria pele.
Percebo esta altivez na postura da mulher espanhola como um todo, basta olhar para a força do movimento feminista nacional, mas a origem pode residir justamente na capital da Andaluzia. A região meridional deu ao país os seus símbolos mais conhecidos, como o flamenco e as controversas touradas. O que pouca gente conhece — eu inclusa até pouquíssimo tempo atrás — é a história de María de Padilla, filha de servos da corte real que nasceu em 1334, viveu um romance em Sevilla, faleceu durante a peste bubônica e cujo espírito atravessou o Atlântico para tornar-se entidade cultuada no Brasil.
Inicialmente amante do rei Dom Pedro I de Castela, com quem teve quatro filhos, só foi reconhecida rainha a pedido dele postumamente. Isso porque havia um acordo para casamento de conveniência com a francesa Branca de Bourbon, que acabou sendo envenenada para que Doña María e Dom Pedro pudessem viver o seu amor.
Um dos cenários desta história medieval é o Real Alcázar de Sevilla, o palácio real em uso mais antigo da Europa que foi morada do casal. Me refiro mais especificamente aos Baños de Doña María, uma fonte muçulmana usada pela rainha para refrescar-se durante os dias escaldantes tão comuns nesta região, justo em frente ao Jardín de la Danza. Quase sempre nua e sob a mirada de Dom Pedro, que obrigava quem lhe dirigisse a palavra a beber da água onde a sua amada banhava-se.
Lendas à parte, a morte prematura de Doña María não interrompeu a influência que sua imagem exercia na sociedade da época. Pelo contrário, contribuiu para que se tornasse uma figura ainda mais mitológica, inclusive ao longo dos séculos. Inspirou desde a ópera de Gaetano Donizetti até a vida de outra mulher: a cigana Carmen de Mérimée, que por sua vez influenciou a criação de um romance com o seu nome e de outra ópera, de Georges Bizet. Muito além do barbeiro de Sevilla, o território é imaginário operístico de mais de 150 canções.
Atualmente na Catedral de Sevilla, o túmulo de María de Padilla é local de peregrinação, sendo visitado também por pessoas do Brasil. É que sua breve, mas intensa existência “forneceu o arquétipo da mais controvertida entidade dos cultos afro-brasileiros", nas palavras de Rodney William, que é Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP, além de babalorixá e autor do livro Apropriação cultural.
Na umbanda e no candomblé praticados no Brasil, Doña María é pombagira, categoria de entidade feminina equivalente ao exu masculino. Talvez a mais popular de todas, tendo até mesmo um culto específico, mas também marginalizada. Sua figura tem um corpo exuberante vestido nas cores vermelho e preto. Nas giras, rosas com os botões bem abertos e sem espinhos, além de tabaco e álcool podem ser oferecidos em troca de conselhos amorosos, de autovalorização, autopreservação, poder pessoal e independência.
Para entender a conexão entre Espanha e Brasil, é preciso lembrar que a península ibérica esteve unida por muito tempo e que Portugal colonizou o Brasil igualmente por um período expressivo, além de ter traficado pessoas da África para serem escravizadas no Novo Mundo. Com base em documentos até da Inquisição, a escritora Marlyse Meyer reconstruiu a trajetória do espírito da rainha no livro Maria Padilha e toda sua quadrilha (1993): de Montalvão a Beja, de Beja a Angola, de Angola a Recife e de Recife para os terreiros de São Paulo e de todo o Brasil, movendo-se por meio da oralidade.
“Não se sabe se Maria Padilha é o espírito da amante do rei de Castela que se manifesta nos terreiros de umbanda e candomblé, e pouco importa saber. Tanto os fatos históricos da corte de Sevilha quanto a ficção da ópera fornecem a imagem de uma mulher forte, influente, sedutora, transgressora, feiticeira", explica William. Figura essa que representa uma mulher livre em países católicos, o que não deixa de ser grandioso dos dois lados do oceano. Por isso, o arquétipo aproxima-se hoje da luta feminista.
“Podemos dizer, seguramente, que a pombagira seria a representação real da mulher caso a supremacia branca não tivesse criado uma série de mecanismos preconceituosos e diminutivos que cerceiam da autonomia plena do ser feminino", sustenta a escritora feminista Joice Berth.
Por aqui, celebro a energia feminina tão presente em Sevilla, como bem observou o poeta João Cabral de Melo Neto em Sevilha Andando, e tento recarregar-me dela a cada visita ou lembrança. Sempre muito grata por ter tido a chance de conhecer o mundo, especialmente outras possibilidades de vida bem vivida, a partir desta cidade, de onde tantas pessoas viajaram pelo rio que dá no Atlântico. Vibro com todo mundo que vem me contar que voltou de lá sevilhizado.
Fontes consultadas para este texto: 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 7.
FLÂNEUSERIE 💃🏻
[Recomendações de lugares por onde andei, testei e aprovei]
— Flamenco: assista a um espetáculo aberto na Plaza de España, a um fechado no Museo del Baile Flamenco e visite o bairro de Triana, onde o povo cigano estabeleceu-se inicialmente, especialmente os arredores do Mercado;
— Comer&beber: Casa Morales, Taberna Los Coloniales e Las Teresas para algo mais tradicional, Torres y García e Barra Castizo para releituras mais modernas e La Terraza del EME para contemplar La Giralda enquanto toma una copita (vermú para abrir o apetite e jerez para fazer a digestão);
— Sevici: a melhor forma de conhecer Sevilla é caminhando, mas também é muito gostoso pedalar lá. Alugue uma bicicleta da prefeitura e vá pela margem rio Guadalquívir em direção à Isla de La Cartuja, onde aconteceu a Exposición Universal de Sevilla de 1992 e ainda é possível conhecer os pavilhões de vários países;
— Mercadinho de pulgas: na rua em que eu morava, a Calle Feria, acontece uma feira de antiguidades toda quinta-feira das 8h30 às 14h, o Mercadillo Histórico del Jueves.
— Centro Andaluz de Arte Contemporáneo: está dentro de um antigo mosteiro e expõe obra nacionais e internacionais com bastante crítica social;
— Basílica de La Macarena: se for visitar uma das várias igrejas, escolha a da padroeira dos ciganos e dos toureiros, que é celebridade na tradicional Semana Santa.
SALVO EM ONDE QUERO IR 💾
[Onde ainda não fui, mas salvei na lista para ir]
— Feria de Abril de Sevilla: momento máximo de celebração da cultura da cidade;
— Hotel Alfonso XIII: um palácio de luxo no coração de Sevilla;
— Fundación Trés Culturas del Mediterráneo: uma entidade que fomenta os diferentes povos que vivem ao redor deste mar por meio de exposições, cinema e visitas guiadas ao que já foi o Pavilhão de Marrocos na Expo 92;
— The Exvotos: uma oficina que combina escultura, pintura, decoração e design aplicado à cerâmica, madeira e papel;
— CaixaForum Sevilla: um braço do museu de Madrid que também costuma ter exposições de arte bem interessantes, além de um edifício de interesse arquitetônico.
UMA ÚLTIMA VISTA D'OLHOS 👀
[Inspiração para espreitar antes de ir embora]
— Andalusian Crush, o jeito cinematográfico de promover o turismo na região, com o ator Peter Dinklage, de Game of Thrones;
— A performance de Rosalía em homenagem à Rocío Jurado no último Grammy Latino em Sevilla;
— Machirulo, a nova palavra incluída no dicionário espanhol para designar um homem que apresenta atitudes machistas (obrigada por me enviar, Paulete!);
— O Tiny Desk Concert de Omar Montes, para quem já viu à exaustão aquele do C Tangana;
— O desfile-cruzeiro da Dior em 2022 na Plaza de España, uma grande celebração ao savoir-faire sevillano.
Obrigada por ter lido até o fim! Aprendi muito ao escrever esta edição, mas também posso ter errado, sobretudo porque ainda não fui a uma gira. Fique à vontade para acrescentar algo, viu?
Vou adorar se você puder encaminhar para alguém que quer ir ou já foi a Sevilla! Ou para quem é de alguma religião afro-brasileira.
E, caso você não tenha visto, essa semana teve estreia de Portal do Mundo, uma coluna mensal dedicada à literatura de viagem — leia a primeira edição sobre M Train, de Patti Smith.
Bom proveito e até a próxima edição – toda sexta-feira na tua caixa de entrada ou no aplicativo do Substack!
Hasta la vista,
“Ela diz que vem de longe / Pra dizer quem ela é / É uma velha feiticeira / Que trabalha como quer...” — Cantiga sobre pombagira, a mulher livre.
Saravá Maria Padilha ♥️
Amei, Gabriela! Que história incrível! Também fiquei pensando na cor terrosa presente em Sevilla, foi inspiração pra newsletter?!