17 | O lixo de um é o tesouro de outro 🪙
E memorabilia para viajantes. Aproveitar os "mercados de pulga" não só para compras em segunda mão, mas para ampliar o olhar ou simplesmente ver a vida acontecendo.
“Todos inúteis, de acordo com o senso comum de utilidade, mas todos eles inspiram em mim curiosidade e o mais simples deleite. Deleite no fato de que coisas bonitas feitas por pessoas há quarenta anos estão por aí, trazendo prazer a um estranho no presente. Isso me lembra do meu dever, do dever de todos, para com o futuro. Os filhos dos meus amigos vão precisar, daqui a vinte anos, encontrar porcarias como essa nos mercados para que eles possam sentir-se seguros pelas mãos dos sonhos futuros das pessoas do passado e não se sentir totalmente sozinhos”, Ellena Savage em Blueberries.
O primeiro lugar que morei em Portugal parecia um antiquário. Meu companheiro costumava dizer que Dom Pedro I provavelmente havia dormido naquela mesma cama em madeira maciça antes de ir ao Brasil e deixar o seu coração no Porto. Na sala, havia uma cristaleira cheia de louças portuguesas, inglesas e até japonesas que me aterrorizavam a cada faxina, mas que embelezavam o dia a dia.
Lembro que me vi na obrigação de aprimorar as habilidades confeiteiras para servir bolos mais gostosos naqueles pratinhos vistosos. Parecia o apartamento de uma avó e até havia uma senhoria que de certa forma desempenhava esse papel além-mar. Foi um começo afetuoso não só pela mobília, portanto, que nos encheu de coragem para ir atrás da nossa própria casa.
Hoje, guardo em lugar de destaque um decanter em porcelana branca e azul com motivos vínicos que ganhamos depois de fazer tantos elogios. Mas, como quase toda pessoa imigrante com orçamento restrito, recheei o meu apartamento de móveis da IKEA, a gigante especializada em design acessível. Lembro que passamos um dos vários confinamentos pandêmicos montando cada um dos móveis comprados — e acumulando uma quantidade obscena de chaves allen entregues em conjunto numa espécie de ritual de marca que formaliza o incentivo do it yourself.
Para quem está desterrada, a casa adquire uma importância ainda maior. Torna-se local seguro em zona de desconforto. Espaço para restaurar corpo e alma também entre uma viagem e outra. Construir um lar com as próprias mãos deixa tudo ainda mais significativo.
Conjugo o verbo no presente, porque embora a mudança de casa já tenha acontecido há três anos, sigo dando forma ao espaço que habito, quase como um reflexo de quem estou e sou. O que é esse se não o trabalho de uma vida toda? Talvez por nostalgia de outros tempos, minha estratégia consiste em mesclar o desenho nórdico à peças antigas em direção ao que especialistas dizem ser uma decoração vintage-afetiva. Trocando por miúdos, um meio termo entre um museu e um showroom sueco que, no fim das contas, expressa a minha linguagem.
Para isso, vou com frequência aos “mercados de pulga”, as feirinhas onde se vende de tudo em segunda mão: móveis, louças, quadros, tapetes, livros, roupas, discos, câmeras fotográficas, pôsteres etc. Onde moro há muitas, assim como em boa parte da Europa. Ao que tudo indica a origem está em Saint-Ouen-sur-Seine, bem perto de Paris, em 1870, quando passou a ser proibido acumular “lixo” em frente aos prédios — hábito que me lembro de ver há não muito tempo em Berlim, por exemplo, inclusive com itens em excelente estado acomodados na calçada para quem quisesse levá-los.
A população francesa então passou a fazer feiras para livrar-se daquilo que não tinha mais serventia e, por vezes, vinha acompanhado de uma pulguinha ou outra, daí o nome. Estudantes também enxergaram a possibilidade de fazer um dinheiro extra com as vendas. One man's trash is another man's treasure, como diz o provérbio anglo-saxônico. O negócio cresceu e hoje o mercado de pulgas sem pulgas de Saint-Ouen reúne 5 milhões de visitantes por ano que se espalham em vários quarteirões de lojas.
O hábito espraiou-se mundo afora, então visitar os chamados flea markets tornou-se um programa recorrente quando viajo. Tenho prazer em flanar atrás desse tipo de memorabilia, mas a verdade é que compro pouco e quase sempre viajo de mochila. Vez ou outra não resisto e volta com um prato, cuja coleção ainda tímida reúne peças da Costa Amalfitana, de Mallorca e da Fábrica da Vista Alegre — uma marca tradicional de cerâmica portuguesa onde já me hospedei e não canso de recomendar. Está quase na hora de fixar o conjunto em porcelana na parede da sala.
Independentemente de comprar, para mim a graça está em encantar-se com objetos raros, perguntar e ouvir suas histórias, além de observar o convívio tão comum em mercados de pulga. São espaços onde há muita vida acumulada. Assim como acontece em mercados públicos ou feiras de rua em geral, a venda às vezes é só um pretexto para as pessoas encontrarem-se todas as semanas — a vida simplesmente acontecendo, algo que tento capturar sempre que me desloco para outra realidade.
Tornam o passeio irresistível os aspectos ao ar livre, comida e entretenimento, já que quase sempre há opções gastronômicas e música para alimentar e embalar a busca por peças colecionáveis nas praças onde acontecem os mercadinhos. Soma-se a isso ainda a possibilidade de conhecer a cultura e a história local a partir do que é colocado à venda. Nesse aspecto, assemelham-se às lojas de outros tempos.
Mais profissionais, por outro lado, são os antiquários que se fixam a partir de uma demanda tão crescente — e também mais sustentável — pelo retrô. Sou apaixonada por um deles focado em móveis das décadas 50, 60 e 70, além de adorar o estilo bem demarcado deste brechó, que aposta nas fibras naturais e em tons neutros. Bem longe de lixo, são verdadeiras joias, inclusive no preço. Não à toa a durabilidade atravessa gerações.
Em todos os formatos, impõe-se a arte de garimpar, que é aprimorada a cada ida a um mercado de pulga — ou zapeada em aplicativos como a Vinted, por onde comprei em segunda mão o livro In Paris: 20 Women on Life in the City of Light, depois de me arrepender por ter deixado passar durante visita à cidade. Mas também as próprias viagens contribuem sobremaneira para ampliar o repertório e, claro, refinar o olhar.
Parece que os olhos vão se habituando a identificar o que é mais bonito, especial ou que se vai encaixar melhor àquele trilho de crochê feito pela avó que já está em cima da mesa. Vejo como uma busca afetiva a partir de itens que contam histórias familiares ou de viagens. Também demanda intuição.
Ganha mais quem chega cedo e reproduz o hábito japonês chamado Yutori: tem tempo para olhar ao redor. Ou ainda quem chega tarde, mas pechincha bem, infelizmente um dom que não possuo. Não só procurar requer paciência, eventualmente limpar ou até restaurar itens garimpados também estão dentro de uma outra lógica de consumo, que ainda passa por abraçar eventuais imperfeições ou dar novos usos aos objetos. Acima de tudo, apreciar a poética da passagem do tempo.
Tudo isso faz parte da mágica de montar uma casa ou um estilo próprios, que reflitam o emaranhado de que somos feitos e refeitos quando estamos vivos, em movimento.
FLÂNEUSERIE 💃🏻
[Recomendações de lugares por onde andei, testei e aprovei]
— Feira da Ladra, Lisboa: uma das mais tradicionais em Portugal, acontece no Campo de Santa Clara com o Panteão de fundo toda terça-feira e sábado, das 9h às 18h;
— El Rastro, Madrid: é meio caótico, mas reflete a energia vivíssima da cidade. Aos domingos e feriados, das 9h às 15h, ao redor da Ribera de Curtidores;
— Portobello Road Market, Londres: a feira do filme Um lugar chamado Notting Hill acontece diariamente, mas o auge para quem quer garimpar é aos sábados, das 8h às 19h;
— Feira de Artes da Praça Benedito Calixto, São Paulo: passeio gostoso em Pinheiros, com destaque para as opções gastronômicas (saudades de quem não visita o Brasil há um ano), sempre aos sábados das 9h às 19h;
— Feira de San Telmo, Buenos Aires: mercadinho de antiguidades dominical, das 10h às 16h, criado por um arquiteto e onde é possível observar os mais variados estilos.
SALVO EM ONDE QUERO IR 💾
[Onde ainda não fui, mas salvei na lista para ir]
— Marché aux Puces Saint-Ouen, arredores de Paris;
— Monastiraki Flea Market, Atenas;
— Flohmarkt am Mauerpark, Berlim;
— Fiera di Sinigaglia, Milão;
— Waterloo Flea Market, Bélgica.
→ Tem alguma recomendação? Deixa pelos comentários!
UMA ÚLTIMA VISTA D'OLHOS 👀
[Inspiração para espreitar antes de ir embora]
— Studio Mathinna, da querida Déia, que aterrissou em Lisboa para garimpar as peças mais bonitas e vendê-las em drops pelo Instagram todas as sextas-feiras;
— Os locais de filmagem da terceira temporada de The White Lotus foram revelados e já atraem visitantes;
— Uma pessoa aleatória dá uma câmera descartável para outra pessoa aleatória esperando um voo para Buenos Aires. O resultado, em vídeo, é este;
— Longa e importantíssima reportagem sobre o impacto do turismo de massa;
— Coisas para ter em mente quando você sentir que está ficando para trás na vida, vi na ótima New Plan Journal.
Obrigada por ter lido até o fim! Se puder, me conta o que achou reagindo aos botões abaixo ou me escrevendo de volta?
Bom proveito e até a próxima edição – toda sexta-feira na tua caixa de entrada ou no aplicativo do Substack!
Na próxima terça-feira, envio a quarta edição de Portal do Mundo, minha coluna mensal de travel literature exclusiva para assinantes pagos. Desta vez, escrevo sobre um relato de viagem que tem como guia um retrato minucioso da condição feminina em Portugal na década de 40, em plena ditadura. Curioso, não é?
Um beijo, um abraço e até logo,
“Quando ouvimos música, poesia ou histórias, o mundo se abre novamente. Somos atraídos para dentro ou para fora, e as janelas de nossa percepção são limpas, como disse William Blake. A mesma coisa pode acontecer quando estamos perto de crianças pequenas ou adultos que desaprenderam esses hábitos de fechar o mundo para fora” — Ursula K. Le Guin.
Fico imaginando como deve ser sua casa, um mosaico de peças. Você iria amar o meu livro O coração da pedra rsrsrs
1. Recomendo vivamente as magnificas lojas de artigos usados no bairro Psiri, em Atenas, em especial na praça em frente ao Varvakios, mercado central da cidade;
2. Leio este post minutos depois de ter fechado o olx, onde navego em busca de tudo e de nada, tentando encontrar para cada objecto aleatorio uma utilidade que justifique a compra...