19 | Viagem, substantivo feminino 👭🏻
Muito se fala sobre viajar sozinha, mas com as amigas é que é um acontecimento. Edição em memória da minha avó Gisella, que me deixou, mas me abriu os caminhos.
«Históricamente, las mujeres son seres cautivos y, por eso, el viaje es uno de los medios más simbólicos y más fuertes para liberarse de esa condición: viajar para una mujer constituye un acto fundador, es decir "voy donde quiero, solo me pertenezco a mí"», Lucie Azema em Mujeres en ruta: la emancipación a través del viaje.
No começo desta semana, enquanto pensava o que escrever na edição que coincide com o Dia Internacional das Mulheres, esta data tão agridoce, uma amiga muito querida me enviou dois vídeos legendados em maiúsculas para dizer que estava com saudades. No primeiro deles, me vejo interagir com o Oceano Pacífico pela primeira vez. Já no segundo, rimos juntas enquanto limpo os meus pés sujos de areia e me dou conta das joanetes inflamadas de tanto bater perna.
Era 2015 e estávamos no Chile em uma das grandes viagens que fizemos em dupla. Potencializadas pelo tempo de balé e jazz, as joanetes herdei da minha avó Gisella, mãe da minha mãe que morreu aos 90 anos, poucas horas antes de estas linhas serem escritas. Uma mulher que só conheci em sua versão viúva, mas que driblou a solidão fulminante a partir da amizade com outras mulheres.
Com algumas delas, viajou pelo Brasil em diversas excursões para a terceira idade feminina. Voltava sempre entusiasmada por conhecer outros lugares, cheia de histórias junto das amigas, que me contava quando uma de nós duas percorria 700 quilômetros para estarmos juntas. À época, penso não ter ouvido com a atenção que tenho hoje para o que é importante, mas de alguma forma sigo os seus passos em um caminho aberto não a golpes de foice, mas com a delicadeza dos pontos de crochê.
Honro a sua história. Não faz muito tempo que não precisamos pedir autorização de pais e maridos para sairmos por aí. E, mesmo quando viajamos entre amigas, no plural mesmo, há quem veja a experiência como solo pela ausência masculina.
Viajar sozinha é, sim, libertador, mas não há nada como viajar com outras mulheres de quem somos próximas ou queremos vir a ser. Em ambos os registros enviados pela minha amiga, olhamo-nos, documentamo-nos. Mais do que isso, enxergamo-nos uma na outra e, portanto, passamos a entender mais de nós mesmas. É claro que esse tipo de espelhamento também é possível em meio à rotina, mas acredito ser potencializado em uma viagem.
Dividir quarto, dormir e acordar juntas, lidar com imprevistos, experimentar coisas novas, emprestar roupas, decidir o que fazer a seguir. Os acontecimentos em uma viagem com amiga, no singular ou no plural, estreitam o laço. É tempo de qualidade que, no dia a dia, nem sempre podemos oferecer em função de tantos papéis sociais que precisamos performar, nomeadamente relacionados ao cuidado.
Não à toa dizem que só conhecemos alguém quando viajamos junto, talvez por estarmos inteiras no presente, vulneráveis às vezes. E como é bom passar a conhecer ainda mais das amigas, acompanhá-las em diferentes fases da vida. Ser acompanhada também, claro. Vejo-as como testemunhas de onde vim, quem já fui, quem estou me tornando e quem ainda quero ser.
Quanto choros aliviados já chorei ou amparei em viagens com as minhas, que também sabem gargalhar juntas como ninguém. A primeira vez que vivenciei isso foi em um fim de semana em Curitiba com amigas da faculdade, há mais de 10 anos. Bar ucraniano, Museu Oscar Niemeyer, Parque Tanguá — me lembro de tudo com tanta nitidez. Com uma delas, passei a viajar com mais frequência, tornando-se a minha amiga-viajante.
Mantínhamos alertas de passagens aéreas a serem parceladas em muitas vezes, montávamos itinerários e embarcávamos de doleira na barriga e mochila nas costas. Sabíamos que estávamos vivendo algo extraordinário. Aquelas lembranças alimentam a nossa amizade até hoje, como comprova o início desta edição, fazendo com que mantenhamos juntas o sonho de uma próxima aventura. Nesse sentido, vejo aquele período como um investimento não apenas em nós mesmas, mas na nossa relação.
Logo depois, também viajei muito a trabalho com uma colega de profissão que se tornou uma grande amiga. Adorava vê-la adormecer no carro assim que passávamos a ponte Hercílio Luz, em Florianópolis, em direção a alguma cidade catarinense. Na reta final da nossa parceria jornalística, passamos um ano visitando um presídio feminino em um contraste completo àquele ir e vir que mantínhamos, quase sempre parando na casa dos meus pais para almoçar a comida da minha mãe.
Venho de uma mulher que sempre disse ter sangue cigano, contrariando os seus pais para fazer a vida em um lugar perto do mar. Que escreveu no verso de uma foto nossa que iria trabalhar bastante para que pudéssemos fazer outra viagem como aquela à Bahia. E que, portanto, entende o meu desejo de ver o mundo, mesmo que isso também signifique passar longos períodos longe dela, além-mar, mas tendo-a como porto seguro.
Na última viagem entre amigas que pude fazer, para Madri em setembro do ano passado, fomos ao cinema assistir a um filme que, de alguma maneira, ressoava o que estávamos vivendo. Las chicas están bien conta a história de quatro atrizes e uma escritora que passam uma semana em uma casa no campo para ensaiar uma peça de teatro. Deixam as obrigações de lado para concentrarem-se em si mesmas e nas suas questões, quase como em um mergulho à relação que mantém.
Saímos da Sala Équis suspirando pela habilidade espanhola de retratar esse tipo de amor fundamental que é a amizade feminina. Voltei para casa tão energizada depois daqueles dias, que arregacei as mangas para tirar Bom Proveito da gaveta. Primeiro, porque elas acreditaram em mim.
Para além de terapêutico, viajar com amigas é uma forma totalmente diferente de vivenciar determinado local do que se estivesse sozinha, com namorado ou família. Há nuances que só o olhar das mulheres é capaz de captar, conversas que só acontecem em roda, entendimentos obtidos somente com ajuda de outra. Para isso, precisam temporariamente deixar de ser companheiras, mães, filhas etc para serem “só” amigas.
As mulheres ficam bem quando estão juntas. Quem me ensinou isso foi a minha avó, por quem eu sigo mesmo com dores nos pés. Quando viajam em conjunto, vão além geograficamente, na compreensão de mundo e de si mesmas.
Para este Dia das Mulheres, o meu desejo é que viajemos cada vez mais, em segurança. Que ter a companhia umas das outras em deslocamentos deixe de ser um privilégio. Antes, que nos priorizemos. Finalmente, que possamos deixar tudo para trás por uns dias para descansarmos na presença umas das outras. Para crescermos como água em uma viagem de amigas.
→ Variações sobre o mesmo tema que também podem te interessar:
FLÂNEUSERIE 💃🏻
[Recomendações de lugares por onde andei, testei e aprovei]
— Buenos Aires, sendo o Museo Evita uma parada obrigatória e que visitei com uma querida amiga porteña;
— Andaluzia, Córdoba, Granada e Ronda, além da óbvia Sevilha de Maria Padilha, são lugares deliciosos para salir de tapas y copas com amigas;
— Minas Gerais, uma indicação da minha avó que acabei seguindo com meu companheiro, sobretudo a rota histórica entre Ouro Preto, Mariana e Tiradentes;
— Uruguai, principalmente o litoral e, mais especificamente Punta del Diablo, são um ótimo destino de viagem de verão, onde me diverti em grupo de mulheres no Réveillon. Adorei esta edição da Yolo Intel sobre o vilarejo de José Ignácio ali perto;
— Leste Europeu, onde mochilei em 2015 com a amiga do início da edição e, para economizar e consumir a cultura local, quase tomamos mais cerveja que água entre Berlin, Cracóvia, Praga, Viena, Bratislava e Budapeste.
SALVO EM ONDE QUERO IR 💾
[Onde ainda não fui, mas salvei na lista para ir]
— Estados Unidos, em especial para estas recomendações da Oprah para girls trip;
— Sicília, mais especificamente em direção à L’Isola Delle Femmine;
— Egito, em um roteiro focado na Cleopatra, como este cruzeiro pelo Nilo;
— Sudeste Asiático, de templo em templo em uma viagem bem espiritual;
— México, provavelmente atrás de livrarias feministas, levando em conta a potência do movimento e da literatura por lá.
→ Viajou para algum lugar legal com amigas? Deixa pelos comentários!
UMA ÚLTIMA VISTA D'OLHOS 👀
[Inspiração para espreitar antes de ir embora]
— Las de la última fila ou As garotas do fundão, uma série espanhola na Netflix sobre a força da amizade feminina potencializada em uma viagem;
— Os homens que não amavam as mulheres oscarizadas, uma reflexão importantíssima sobre os efeitos que o êxito profissional pode ter na vida pessoal feminina;
— Carmen Amaya em uma breve biografia em vídeo da maior bailaora de flamenco;
— The Women Sanctuary, retiros para mulheres no Mediterrâneo;
— As inseparáveis, meu livro preferido da Simone de Beauvoir, um romance autobiográfico sobre a amizade entre Sylvie (Simone) e Andrée (Élisabeth Lacoin, a Zaza). Esta review está impecável.
Obrigada por ter lido até o fim! Escrever em um momento dolorido é o que me mantém sã, sobretudo a partir deste lugar de resgate de memórias especiais. Vou adorar também saber das suas, se quiser me contar.
Bom proveito e até a próxima edição – toda sexta-feira na tua caixa de entrada ou no aplicativo do Substack!
Com carinho,
“To fight against time, against forgetting, against death, to do justice to this absolute presence of the instant, to this eternity of the instant, which will have been forever” ― Sylvie Le Bon de Beauvoir, em Inseparable.
amei as dicas. Que texto lindo!
Gabi, que edição linda! Tb sinto o mesmo ao olhar pros meus pés. Tenho muito da minha avó em mim. Eu acho isso tão especial. Quando eu era novinha ela brincava comigo: “o que está te incomodando? Temos muito em comum, posso lhe ajudar!” - eu achava fofo! E tudo q ela falou, aconteceu. Sabedoria de quem trilhou o caminho antes.
Olha, não sei se você conhece, mas na minha lista de livrarias a conhecer, coloquei a Persephone em Londres! Você já teve a chance de conhecer? Ela se dedica a reeditar alguns livros escritos por mulheres entre os séculos XIX e XX… me parece interessante!