2 | Ser viajante para recordar 💭
Morar e até visitar cidades turísticas requer paciência, mas também pode ser motor para a construção de viajantes mais conscientes em deslocamentos memoráveis. Quem queremos ser em movimento?
Olá! Antes de tudo, quero agradecer imensamente o retorno tão caloroso após o envio da primeira edição na semana passada. Recebi inúmeros comentários, sugestões e, claro, fotos de claraboias. Até a , uma referência em produção de conteúdo, andou espalhando a palavra de Bom Proveito!
Muita gente me escreveu dizendo que a leitura foi um momento de pausa durante a semana. Mais de uma pessoa passou um cafezinho antes de abrir o e-mail e teve quem tenha ficado com vontade. Espero que esse ritual se repita mais e mais vezes, me comprometendo a entregar um conteúdo de qualidade para isso.
Estou muito feliz com o início da formação desta comunidade de viajantes cheios de curiosidade, disposição para trocar e ampliar o olhar. Boas-vindas para quem chega — espero que desfrutem a jornada!
Todas as cidades onde escolhi viver são turísticas: Florianópolis, Sevilla e Porto. Conviver com turistas seria o preço a pagar por ter bom gosto? Mas e quando você é alguém que também gosta de viajar?
Eu me pego com frequência nesta contradição entre querer reclamar de turistas ao mesmo tempo em que sou uma de tempos em tempos. De tanto observá-los ao longo dos anos, comecei a refletir sobre a maneira com que me desloco.
Sinto que esta é uma conversa que poucas pessoas estão dispostas a participar, principalmente em função da forma hedonista com que se viaja na atualidade. É mesmo incômodo perceber-se causando um impacto sócio-ambiental negativo durante umas férias paradisíacas.
Mas, ao parar para pensar, acredito que é possível fazer viagens melhores, daquelas que mudam quem se abre para o novo, além de potencialmente ser parte da solução para o turismo massificado.
First things first: o turismo está inserido em um mercado bilionário que mantém o dinheiro nas mãos de poucas pessoas, quase nunca locais, sem falar na marginalização de populações nativas e na ameaça a inúmeros ecossistemas. Mas até aí nada de novo sob o sol do capitalismo.
É evidente que são necessárias mudanças estruturais vindas da própria indústria para alterar essa lógica. Mas e se começássemos pelo o que está ao nosso alcance?
Com a escalada do turismo pós-pandemia, tenho tentado cada vez mais adotar uma postura consciente, respeitosa e cuidadosa quando viajo. Algo como ser mais viajante que turista, sem qualquer arrogância nessa diferenciação — a jornalista Adriana Setti, que está por trás de marcas como a The Summer Hunter, já escreveu um artigo bem humorado sobre essa velha questão existencial.
Isso passa por perguntar a si mesmo para onde se quer viajar e, mais importante, por que o desejo de ir até esse lugar. Pelas fotos, pela moda ou por uma bucket list? Se não pudesse compartilhar em lado nenhum, ainda gostaria de conhecer tal destino? E o que se quer descobrir, experimentar e sentir nesta viagem?
Com as respostas em mente, tento seguir nesta linha: evitar lugares sobrecarregados pelo turismo, preferir épocas baixas às altas, desviar daquele café que viralizou na rede ao lado, dar abertura ao acaso, passar mais tempo em cada lugar e privilegiar iniciativas de base comunitária. Nem sempre é possível, algumas são até medidas bastante privilegiadas, mas sinto que já ajuda manter isso no radar.
Indo além, ser viajante implica em manter um olhar interessado mais para as pessoas do que para as atrações de determinado local. Enxergar quem está lá como a verdadeira atração. São elas, suas histórias e recomendações quem vão construir memórias de viagens inesquecíveis.
Lembro que a primeira vez que me dei conta disso foi em Viena, há exatos oito anos. Primeiro, com o impacto que senti ao dividir quarto com mulheres refugiadas recém-chegadas à capital austríaca. Depois, quando uma senhora reparou na minha emoção e me cedeu o seu lugar com mais visibilidade para a ópera, acrescentando que frequentava o lugar toda semana já que vivia lá. Me recordo com mais nitidez desses dois episódios do que de qualquer monumento ou mesmo do gosto de chocolate da Sachertorte.
Mais recentemente, na Sardegna, ganhei uma verdadeira aula sobre essa ilha mediterrânea durante o café da manhã do B&B onde me hospedei, que mais parecia uma degustação de produtos típicos locais em um palácio do século passado restaurado. O professor? Giovanni, um sardo apaixonado que não se cansou nem um minuto, muito pelo contrário, frente ao meu interesse. Foi ele quem engrandeceu com conhecimento a pasta que eu havia jantado na noite anterior:
É incontornável o impacto da atividade turística na vida dos habitantes de uma cidade muito procurada, mas são eles que fazem os destinos. Por isso, devem ter voz e ser respeitados, segundo JoAnna Haugen, que atua com turismo sustentável. Gostei em especial desta sua reflexão traduzida pelo jornal português Público:
“Acredito que existem muitas soluções locais realmente poderosas para os nossos desafios globais, vozes que estiveram à margem no passado e que são agentes de mudança nas comunidades. Se as apoiarmos, amplificarmos e promovermos através do turismo, então podemos construir uma forma realmente poderosa de usá-lo como ferramenta para apoiar um mundo próspero onde todos possamos viver."
Mais do que nunca, é preciso encontrar estratégias de viagem que privilegiem o convívio saudável, tanto entre visitantes e locais, quanto de todos em relação ao planeta. Digo isso não só para respeitar a cidade e as pessoas que a constituem, mas também para viajar de forma mais significativa e por muito tempo. Acredito mesmo que uma coisa leva à outra.
Se quando vamos à casa de alguém respeitamos a pessoa e o espaço em questão, por que não fazer o mesmo quando estamos conhecendo ou de passagem por um lugar que não é o nosso, por mais cidadãs e cidadãos do mundo que sejamos?
No último mês, a prefeitura do Porto lançou um Manual do turista e distribuiu aos visitantes no aeroporto, nas estações de trem e pelas ruas da cidade. Destaco as seguintes sugestões do manifesto, que também podem servir para outras cidades:
Ter curiosidade para acessar tesouros escondidos da cidade, sendo “buscadores de saberes e colecionadores de memórias";
Ser amigável para conhecer os hábitos e a cultura locais, inclusive aprendendo o básico do idioma;
Caminhar ou usar o transporte público;
Comprar de lojas tradicionais a fim de apoiar o comércio local, assim como preferir restaurantes pequenos para conhecer a gastronomia da cidade;
Não fazer barulho fora de horas.
Isso me lembrou de uma vez que estava sentada junto à escadaria da Sé do Porto ouvindo um fado vadio, ou seja, cantado por moradores, na Varanda da Saudade. A música era incrível e a cidade estava no aquecimento para o São João.
Uma atmosfera única que um grupo de turistas que passou na minha frente provavelmente não sentiu. Caminhavam olhando para o celular, completamente alheios ao redor e em busca da próxima atração para riscar da lista. Talvez estivessem presos a um roteiro como este, mas viajar é sobre liberdade.
→ Em tempo: acredito que residem em nós turistas e viajantes e que essas personas confundem-se, inclusive em uma mesma viagem. Nas fotos a seguir, ambas de um mochilão pelo leste europeu em 2015 na companhia da minha amiga querida Isa Mafra, estou participando de algum ritual turístico em Praga para atrair sorte, mas também estou voltando para casa cheia de histórias na bagagem graças à generosidade de gente local. Pelo visto, a superstição funcionou!
FLÂNEUSERIE 💃🏻
[Recomendações de lugares por onde andei, testei e aprovei]
Um destino: não canso de indicar o País Basco, uma região que não costuma ser a primeira opção de quem visita a Espanha ou a França. Fiz uma road trip para lá há dois anos que também envolveu a região de La Rioja e vivo pensando em voltar, desta vez esticando até outra zona de vinhos — Bordeaux, outro destino menos concorrido. Um deleite para quem gosta de comer e beber bem, ter mar e montanha juntinhos, mergulhar numa cultura (e numa língua) complexa e riquíssima, além de ver arquitetura e arte de primeiro nível;
Um tipo de hospedagem: tal qual Elis Regina, quero uma casa no campo, mas enquanto isso não é possível, dou preferência aos alojamentos rurais. Fora dos grandes centros, o ritmo é outro e a hospitalidade também, especialmente se estivermos falando dos chamados Agriturismo, na Itália, que se assemelham ao Acolhida na Colônia no Brasil e ao Accueil Paysan na França;
Um projeto: dois, neste caso. Preencher Vazios e Gazete, ambos dedicados à preservação dos azulejos em Portugal, que frequentemente são roubados por turistas predatórios. As duas marcas também produzem ótimas opções de souvenir para fugir das lojinhas de cortiça e outros itens duvidosos produzidos bem longe daqui.
SALVO EM QUERO VISITAR 💾
[Onde ainda não fui, mas salvei na lista para ir]
Para planejar a próxima viagem: embora de 2022, esta lista do NY Times traz 52 lugares para mudar o mundo, onde viajantes podem ser parte da solução;
Respeitando a floresta: sou louca para conhecer a Amazônia, mas tenho pavor de alguns tipos de turismo que viralizam vez ou outra naquele cenário. Esta matéria explica como ser um turista consciente por lá;
Substituir: nunca fiz um cruzeiro e tenho cada vez menos vontade de fazer, tendo em vista o impacto arrasador que a maioria deles causa nas cidades portuárias. Em compensação, meu mais novo sonho de consumo é embarcar em alguma das viagens do Sailing Collective — ao sabor do vento, em itinerários menores, mas icônicos.
UMA ÚLTIMA VISTA D’OLHOS 👀
[Inspiração para espreitar antes de ir embora]
Restaurante social: queria ter ido ao Mo de Movimiento mês passado quando estive em Madrid, mas infelizmente não deu tempo. É uma pizzaria inspiradora onde metade dos funcionários apresenta algum tipo de vulnerabilidade e vê uma perspectiva de mudança por meio da inserção profissional;
Guia de A a Z para viagens sustentáveis: este material da Condé Nast Traveler tem muitas dicas para seguir em busca de deslocamentos com menos impacto negativo e mais significado. A minha preferida é praticar a xenofilia;
Documentário: se ainda tiver na dúvida do lado nocivo do turismo, assista ao The last tourist, de Tyson Sadler. Só o trailer já me deixou impactada.
Last, but not least: a inspiração para esta edição de Bom Proveito veio dos escritos da Betina Neves, mais especificamente desta newsletter, onde ela cita empresas e ONGs que atuam para alterar a lógica vigente do turismo em larga escala:
“A writer is someone who pays attention to the world”, Susan Sontag, escritora, cineasta, filósofa, professora, crítica de arte e ativista dos Estados Unidos.
Mais uma leitura muito inspiradora Gabi! Quero cada vez mais me convidar a ter esse olhar consciente nas viagens! Saudadess de viajar com você minha querida amiga!
gostei muito dessa reflexão, Gabi. acho que Curitiba é a cidade menos turística que já morei na vida. as pessoas que passam por aqui realmente estão vindo me visitar. ou visitar outros conhecidos aqui e acabamos nos esbarrando. é diferente essa sensação de como exploramos a cidade e também de como recebemos ou não outros turistas. fiquei pensando nisso.