20 | Fortificados, generosos, espirituais 🍷
A história de viagem e os destinos que envolvem a produção dos vinhos licorosos, cujo expoente é o do Porto, mas há muito mais para descobrir.
“Não é possível falar do Douro sem o Vinho do Porto. O vinho do Douro, sem o Porto, não existe”, Cristiano Van Zeller, enólogo português.
No meu primeiro ano em Portugal, ganhei um conjunto de cálices de vinho do Porto. Herança de uma amiga que havia decidido voltar ao Brasil. Ingenuamente, achei que não fosse usá-los e, de fato, ficaram um tempo de lado na cristaleira. Mas não demorei muito para criar o hábito.
Cinco anos depois, abro a geladeira e me deparo com uma prateleira sempre com mais de uma opção de vinho licoroso. Ou ainda fortificado, generoso, espiritual, doce e de sobremesa. São muitos os nomes para indicar esse tipo de vinho encorpado, com maior teor alcoólico, que se bebe em menor quantidade para abrir o apetite ou facilitar a digestão. Por isso a taça menor, a exemplo desta desenhada pelo arquiteto português Siza Vieira.
Um dos mais conhecidos é produzido no milenar Alto Douro Vinhateiro, de onde viajava de barco rabelo pelo rio sinuoso para ser armazenado nas caves em Vila Nova de Gaia, cidade vizinha ao Porto e minha primeira morada portuguesa. O vinho do Porto é obtido a partir da interrupção da fermentação logo no início do seu processo de fabrico por meio da adição de aguardente vínica. Como o açúcar das uvas não se transforma em álcool, torna-se naturalmente doce.
Há uma disputa para indicar a sua origem — se por adição de brandy dos ingleses, que mantinham uma estreita relação de comércio com Portugal, ou de aguardente dos próprios portugueses durante a expansão marítima —, mas uma coisa é certa. O vinho do Porto nasceu para poder viajar e chegar “inteiro” ao seu destino final, sem azedar pelo caminho.
Por ser uma bebida muito antiga, é vista com olhos de tradição, às vezes até com pompa demais para o meu gosto. Consumida sobretudo por pessoas mais velhas. Mas isso está mudando, por esforço dos departamentos de marketing dos produtores.
Uma vez fui a um workshop do Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto para aprender a fazer coquetéis a partir da bebida. Facílimo, o Porto Tonic tornou-se hit de verão aqui em casa. Basta misturar gelo, casca de limão, folhas de hortelã e água tônica ao vinho do Porto branco seco. Gosto de servir em uma taça de gin.
Para além da versatilidade, vejo os vinhos fortificados dentro de uma ótica de consumo que tento perseguir. Beber cada vez menos, mas melhor, com mais qualidade. Diferentemente de outros tipos de vinho, não se “enche a cara” de Porto, Marsala ou Jerez — outros vinhos mais do que generosos sobre os quais escrevo nas seções a seguir — a menos que se queira uma bela dor de cabeça no dia seguinte causada não por taninos, mas por Bagaceira mesmo.
Também observo outras pessoas repensando a sua relação com o álcool. A onda do Dry January, o desafio de ficar um mês sem beber logo no início do ano, está aí para provar. Acompanhando a demanda, também há cada vez mais opções de mocktails nas cartas de bebidas, que buscam atrair a geração Z. Sem contar os vinhos naturais ou de baixa intervenção, todo um mundo à parte.
Além disso, a minha predileção por doce é incontornável. Não havia me dado conta de transpor o gosto para as bebidas até um casal de amigos me presentear com um Pacharan, um licor da região espanhola da Navarra, produzido a partir de um fruto chamado endrina e macerado com anis.
E, se vamos por aí, por que não lembrar do vermute, vinho fortificado aromatizado com ervas, frutas, especiarias e flores? Largamente consumido no Sul da Europa, principalmente na Espanha e na Itália, também é base de drinks icônicos como o Negroni e o Dry Martini.
Em todos os casos, tais bebidas espirituosas são formas deliciosas de começar ou encerrar uma bela refeição. Ou simplesmente para ser consumida sozinha, em uma espécie de meditação — há quem chame assim esses vinhos. E também motivos para viajar além da mesa, já que o enoturismo é um nicho que se especializa cada vez mais, oferecendo experiências bastante diversificadas e para todos os bolsos.
Desde que descobri as notas aromáticas e mais tropicais do vinho da Madeira, não vejo a hora de fazer as malas e rumar em direção a essa ilha atlântica. Arrisco dizer que voltarei com uma garrafa a bordo, assim como aconteceu quando estive na Península de Setúbal no fim do ano passado e me rendi ao seu moscatel, cuja doçura me transportou para o Sul do Brasil e suas ótimas borbulhas.
Não sei vocês, mas comer & beber bem são motivos de sobra para deslocar-se real ou figurativamente por aqui. Saúde!
FLÂNEUSERIE 💃🏻
[Recomendações de lugares por onde andei, testei e aprovei]
— Alto Douro Vinhateiro, Portugal: uma das regiões vinícolas mais antigas e bonitas do mundo, para ser visitada durante a vindima em setembro ou logo após, quando os vinhedos adquirem as cores do outono. Nos produtores, como a Quinta do Vallado ou a Quinta do Portal, é possível fazer provas específicas de vinho do Porto;
— La Rioja, Espanha: é o local para quem quer apreciar arquitetura moderna, como na Bodega Ysios ou na Herederos del Marqués de Riscal, enquanto empina umas tacinhas de crianza, reserva, gran reserva ou de um fortificado, não tão comum, mas presente, como na Bodega Vinícola Real;
— Península de Setúbal, Portugal: destino completíssimo a poucos quilômetros de Lisboa com praia, montanha, cerâmica e, claro, enoturismo, inclusive eleito um dos melhores destinos de vinho do mundo. Os moscatéis são fortificados de tom alaranjado e produzidos só lá. Vale experimentar na Quinta de Catralvos, na Bacalhôa e na José Maria da Fonseca, dona do famoso Periquita e de um ótimo restaurante, o Wine Corner;
— Serra de Santa Catarina, Brasil: adoro os vinhos de altitude do Estado de onde venho, sobretudo os espumantes. Recentemente, soube que a Pericó produz lotes especiais de um vinho licoroso, mais especificamente um ice wine, feito de uvas congeladas ainda na videira;
— Uruguai: a variedade local tannat tem sido a base de vinhos licorosos. Adorei conhecer a Bodega Garzón, para onde voltaria para provar o Cosecha Tardía e a Grappa.
SALVO EM ONDE QUERO IR 💾
[Onde ainda não fui, mas salvei na lista para ir]
— Marsala, Itália: vinho fortificado italiano produzido nos arredores da cidade de mesmo nome, na Sicilia, que também obteve influência inglesa na sua criação;
— Marco de Xerez, Espanha: onde se produz o jerez, em Jerez de La Frontera, no Sul da Espanha, um dos vinhos fortificados mais complexos do mundo;
— Madeira, Portugal: ilha atlântica onde se produz um dos cinco vinhos fortificados de Portugal, com história compartilhada com o vinho do Porto, já que o local era parada durante as colonizações;
— Patras, Grécia: terceira maior cidade do país, que é terra do Mavrodaphne, um vinho doce grego de origem alemã;
— Pirineus catalães, entre Espanha e França: onde se produz o Banyuls, um vinho fortificado produzido a partir de vinhas velhas. Roussillon faz fronteira com outra região vitivinícola em alta, Empordà, na Catalunha.
→ Tem alguma recomendação? Deixa pelos comentários!
UMA ÚLTIMA VISTA D'OLHOS 👀
[Inspiração para espreitar antes de ir embora]
— Guia para receber pessoas em casa para jantar, da Eater;
— A sexta linguagem do amor de viajantes, quem aí já praticou?;
— A rota literária de Saramago, em Portugal, inspirou a criação da rota literária de Machado de Assis, no Rio de Janeiro;
— Anna Pacheco, uma escritora que se infiltrou no turismo de luxo para combatê-lo (gracias por me enviar, Natalia);
— Zona de Interesse, o vencedor do meu Oscar pessoal sobre a banalidade do mal do Holocausto lá atrás e em Gaza hoje, em uma cena incrível comentada pelo diretor, que também disse o que precisava ser dito na cerimônia. Menção honrosa para a atriz Sandra Hüller, que também me arrebatou em Anatomia de uma queda, filme de Justine Triet sobre o qual ainda consigo falar pouco.
→ A incrível Vera Holtz está em Portugal com o filme Tia Virgínia, foto acima, e o monólogo Ficções, baseada na obra de Yuval Harari. Não perco por nada!
Muito obrigada pela leitura até aqui! Estou muito, muito feliz por chegar à vigésima edição da newsletter com uma comunidade cada vez mais interessada e interessante.
Isso só faz sentido porque vocês estão aí do outro lado. Por isso, brindemos!
Bom proveito e até a próxima edição – toda sexta-feira na tua caixa de entrada ou no aplicativo do Substack!
Com carinho,
“Boa é a vida, mas melhor é o vinho”, Fernando Pessoa.
Eu chamo o vinho do Porto de vinho que abraça. Talvez por ser quentinho/alcoólico, talvez porque seja o abraço de antes de uma refeição-encontro e a despedida dele. Eu não vejo a hora de beber direto da fonte 🍷♥️
Sou um abstêmio, mas adoro histórias em torno do vinho. Bebidas podem suscitar boas histórias, bons encontros.