22 | Escutar requer presença 👂🏼
Reflexões sobre o ato de ouvir a partir da viagem sonoro-poética que é o espetáculo Correspondences, de Patti Smith e Soundwalk Collective.
“Bem-aventurados os que escutam, porque abrem o coração ao espanto do mundo”, Pedro Gomes em Plano de fuga.
Patti Smith e Stephan Craneanscki conheceram-se em uma viagem de Paris a Nova Iorque, na qual sentaram-se lado a lado há uma década. Ela não resistiu ao impulso incontrolável de espreitar o que ele lia durante o voo: a poesia de Nico, nome artístico de Christa Päffgen. Puxou conversa e logo quis fazer parte de uma homenagem com alguém a ler os poemas da alemã por cima das gravações dele, que é o cérebro do Soundwalk Collective, um grupo internacional de arte sonora experimental fundado em 2001.
São muitas as camadas de Correspondences, a performance mais recente de Patti e Stephan a que pude assistir no último domingo em Braga, no Norte de Portugal. No fundo do palco do belíssimo Theatro Circo, um telão projetava as mais variadas cenas ao som dos artistas do coletivo posicionados logo à frente. O destaque maior, claro, foi dado à voz da poeta, cantora, fotógrafa, escritora, compositora e musicista norte-americana, ícone do movimento punk, que declamou os seus escritos à mão.
Os assuntos do que lia entre um gole e outro de chá eram os mais variados, desde imigração até a história de Medéia, mas a base do espetáculo era sempre a mesma: as gravações feitas por Stephan durante diversas viagens para lugares remotos, da Rússia à Índia, sempre sozinho. Depois de coletados, os áudios são levados ao estúdio para serem trabalhados de modo a criar o ambiente perfeito para ressoarem a poética de Patti Smith. Em vários momentos, fechei os olhos para ouvir com mais nitidez um marulho, um ritual xamânico ou uma abelha-rainha, tentando adivinhar de onde vinham e conjugando à voz firme da artista de 77 anos.
Inevitável dizer que viajei pela sonoridade que a poesia também pode emitir, em especial quando ouvida em conjunto. O barulho de um enorme cubo de gelo sendo cortado por Stephan Craneanscki em frente a um microfone fez-me aterrar na poltrona novamente. Guiada pela voz que saía de todo o corpo de Patti, que soltava as folhas lidas ao redor de si em uma espécie de coreografia, entendi que se tratava de um alerta para as mudanças climáticas.
As mensagens eram importantíssimas, mas confesso que tive dificuldades para interpretá-las racionalmente diante da possibilidade de embarcar em um deslocamento quase lisérgico impulsionado apenas pelo som. Me deixei ir. Na volta para casa, em uma estrada iluminada pela lua cheia, pensei sobre o que significa ouvir, este ato que demanda bem mais que ouvidos.
Para escutar, que vai além de ouvir, é preciso estar presente. Prestar atenção. Lembro do personagem principal do filme Perfect days, que se dedica diariamente as suas fitas cassete no caminho para o trabalho. “Now is now. Next time is next time”.
Escutar envolve tentar silenciar conversas externas e internas, talvez as mais difíceis, para conectar-se com outras ondas, que levam a lugares outros. Nesse sentido, a audição pode assemelhar-se à meditação.
“Quando escutamos, só existe o agora. […] Embora os olhos e a boca possam se fechar, o ouvido não tem tampa, nada para fechá-lo. Ele aceita tudo que o cerca. Recebe, mas não pode transmitir. O ouvido está simplesmente presente no mundo. […] dizer que escutamos com os ouvidos ou com a mente talvez seja uma concepção errada. Escutamos com o corpo todo, com todo o nosso eu.”
Rick Rubin no livro Ato criativo: uma forma de ser, citado por
em edição da sua newsletter Espiral: A escuta como estado contemplativo.
Talvez soe contraditório, mas a partir da presença é possível viajar por meio do som. E, uma vez em viagem, ouvir é uma habilidade primordial na qual todas as gerações femininas são treinadas, como sustenta a escritora portuguesa Susana Moreira Marques na quarta edição de Portal do Mundo, a minha coluna de travel literature.
Percebi a possibilidade de deslocar-me pelas ondas sonoras ainda durante a pandemia, quando o fecho das fronteiras em direção à casa dos meus pais fez-me ouvir MPB à exaustão. Chorar ao som de Caetano Veloso não só me ajudou a segurar a barra, consolidando o poder terapêutico da música, como me deu mais sensibilidade auditiva. Às vezes, me pego com saudades do silêncio daqueles dias, além de sempre estranhar o excesso de barulho quando vou para a minha terra, fazendo-me apreciar a calmaria no retorno.
Frente às tantas possibilidades de espantar-se a partir da escuta, vez ou outra tenho medo de ficar surda. É que tenho um zumbido no ouvido um bocado persistente que, ironicamente, pode ter sido causado por excesso de ruídos. Se um dia o quadro evoluir fazendo-me deixar de ouvir, sinto que perderia uma parte importantíssima de contato com o mundo.
A escuta é algo que também me constitui de forma relacional. Sempre me considerei uma boa ouvinte e, em conversa com alguém, me esforço para absorver a fala sem pensar imediatamente no que responder. Dou-me a possibilidade de responder com um sonoro não sei frente a algo que pode me ensinar.
Escrevo isso e me lembro do livro A estrangeira, da italiana Claudia Durastanti, que narra a história de uma menina filha de pais surdos em seus variados percursos de migração. Em um mundo onde se fala muito mais do que se ouve, escutar adquire mesmo um caráter quase alienígena.
Enquanto puder, celebro a capacidade de ouvir de maneira ritualizada. Sozinha em casa, enquanto me dedico ao ler e escrever, por exemplo, mas também acompanhada, que é quando as possibilidades expandem-se.
Recentemente, tenho frequentado os encontros da Fonoteca Municipal do Porto, que armazena, fomenta e dá a conhecer o arquivo de discos de vinil da cidade, com mais de 34 mil álbuns. Semanalmente, é possível sentar-se confortavelmente em uma das cadeiras da sala principal, silenciar o telemóvel e a boca e deixar-se levar por uma playlist com alguma coerência temática — países, estilos ou épocas, por exemplo. Curioso observar como o próprio corpo e os dos outros respondem aos estímulos.
Assim como no espetáculo de Patti Smith e Soundwalk Collective, escuto melhor de olhos fechados. É a minha forma de me entregar ao que me chega pelos ouvidos. Um sentido tão importante para ser, estar e deslocar-se por mundos internos e externos que merece ser vivido em exclusivo. Mas tive de abri-los bem abertos, como que para testemunhar um grande momento, no momento de ouvi-la cantar junto da filha Jesse Paris Smith no piano a música People Have The Power e encerrar a noite.
FLÂNEUSERIE 💃🏻
[Recomendações de lugares por onde andei, testei e aprovei]
— Casa da Música, o melhor espaço de espetáculos que já visitei, do arquiteto holandês Rem Koolhass, onde até o material das poltronas foi escolhido a dedo para aprimorar a experiência auditiva;
— Inhotim, o museu de arte contemporânea a céu aberto em Minas Gerais, onde é possível ouvir o som da terra em uma das melhores galerias de todos os vários hectares;
— Socorro, uma loja lindíssima de discos de vinil com livraria em torno da temática musical;
— Abbey Road Studios, o estúdio que virou local de peregrinação para os fãs de Beatles, algo que já fui há uma década;
— Mouco Hotel, um alojamento todo dedicado à música, com bar, piscina e casa de shows também abertos a não hóspedes.
SALVO EM ONDE QUERO IR 💾
[Onde ainda não fui, mas salvei na lista para ir]
— MIS, o Museu da Imagem e do Som em São Paulo;
— Sidney Opera House, na Austrália;
— Jazz Club La Zorra y El Cuervo, em Cuba;
— Royal Albert Hall, em Londres;
— Rádio Clube Agramonte, um novo espaço no Porto para comprovar esse tipo de tradição em Portugal.
→ Tem alguma recomendação? Deixa pelos comentários!
UMA ÚLTIMA VISTA D'OLHOS 👀
[Inspiração para espreitar antes de ir embora]
— Evidence: Soundwalk Collective & Patti Smith, exposição em Lisboa sobre a parceria artística do grupo, em cartaz até setembro de 2024;
— A playlist Bon Voyage, perfeita para viajar em modo shuffle por músicas de diferentes partes do mundo;
— Por que pessoas ricas amam silêncio?;
— Espaço e poesia, a palestra de Ada Limón no SXSW;
— Como Paris mantém-se Paris, reportagem interessantíssima que coloca a moradia pública no centro do debate sobre uma das cidades mais visitadas no mundo.
Ei, obrigada pela leitura! O que você achou do assunto de hoje? Responde o e-mail ou deixa pelos comentários — vou adorar ler, que é também ouvir!
Ontem à noite participei do clube de leitura da com a presença da , que acrescentou muito ao debate sobre o livro Flâneuse, da Lauren Elkin, a partir da sua vivência com a , um projeto editorial que investiga a relação das mulheres com as cidades. Vale acompanhar as duas, viu?
Bom proveito e até a próxima edição – toda sexta-feira na tua caixa de entrada ou no aplicativo do Substack!
Feliz Páscoa para quem é de Páscoa. Feliz feriado para quem é de feriado.
Um abraço apertado,
“Às vezes parte de um poema é o mundo inteiro e a poesia uma conversa a ter”, Raquel Nobre Guerra.
a audição, assim como o olfato, são sentidos poderosos extremamente ligados à memória e por isso sentidos tão especiais… amei a sua colocação sobre ter presença e viajar pelo som! De fato, sem presença não viajamos, e isso muda tudo! Quando você for a Cuba, vou pedir que um conhecido a leve para dançar, faz parte da experiência :)