Portal do Mundo: M Train, de Patti Smith
#1 — Estreia da coluna mensal com curadoria, resenha e dicas de literatura de viagem exclusiva para assinantes pagos de Bom Proveito. O nome é como a autora da primeira edição se refere aos livros 🚪
Neste Porto onde moro, a Feira do Livro é um evento aguardado anualmente por quem gosta de ler. Acontece em um jardim com vista para o encontro do rio Douro com o Atlântico, sempre nos últimos dias do verão. Para mim, já se tornou um ritual de passagem entre as estações, no qual a munição para os dias frios que lentamente se apresentam é a leitura.
São muitas editoras, livrarias e alfarrabistas, como os sebos são chamados além-mar, que expõem os seus títulos, portanto é preciso tempo ou foco para folhear diferentes exemplares, conhecer os lançamentos e aproveitar os descontos. Mas neste ano não demorei a encontrar o que nem sabia que buscava. Apontando como um farol, a luz do fim de tarde deixou ainda mais amarelada a capa da edição portuguesa de M Train, de Patti Smith.
De alguma forma, me identifiquei com a imagem da artista estampada no livro: sentada a olhar calmamente para o lado, com a cabeça apoiada em uma das mãos, a outra bem ao lado de uma xícara, em uma mesa onde também aparece a sua famosa Polaroide — com a qual adora registrar objetos, como a bengala de Virginia Woolf, as muletas de Frida Kahlo ou o urso de Tolstoi que aparecem com ar de amuletos em M Train. “Viajar na companhia da literatura e da música” é a frase que arremata a capa e que me incentivou a levá-lo a Madrid, para onde viajaria dali a poucos dias.
Ao ler a contracapa, confirmei que se tratava de uma narrativa de viagens em seu sentido mais amplo ilustrada com as fotos instantâneas da própria autora, de quem já havia lido o aclamado Só garotos e escutado várias faixas musicais. Mas foi esta frase da editora Quetzal, que mantém o selo Terra Incognita para publicar travel literature, que me levou até o caixa para levar o livro escrito pela madrinha do punk rock:
“M Train é uma das experiências mais contagiantes para quem alguma vez foi ferido pelo animal da literatura, levando-nos pelos lugares em nome da memória que transportam, talvez porque viajar e ler sejam formas de superar a morte.”
Traduzido no Brasil pela Companhia das Letras para Linha M, M Train é um livro de memórias. Registro autoficcional publicado em 2015, também é sobre os lugares da vida de Patti Smith. Um mapa das estradas da sua existência, como a própria artista referiu. Não à toa a minha edição possui um interior cartográfico.
O epicentro da narrativa é o Café ‘Ino, em Greenwich Village, o coração nova-iorquino do movimento contracultura nos anos 60. É do seu café preferido que Patti parte para velhas e novas aventuras, sem deixar de registrar as suas impressões no caderno que rascunha o livro. Acompanhada de várias xícaras de café sem açúcar, torradas de pão escuro e azeite, a artista conduz quem lê pelos mais variados destinos a partir de distintas motivações.
Relembra a sua origem no Michigan, a aventura com o marido Fred Sonic Smith na Guiana Francesa — de onde pensaram ir até o Brasil —, a visita à casa de Frida Kahlo no México, a conexão que sente com Nova Iorque, mas também a vontade de estar junto do mar em Rockaway Beach, e a participação em conferências na Alemanha, na Islândia e na Inglaterra. Em todos esses lugares e acompanhada de litros de café, reflete sobre o mundo, o amor e a perda de objetos, lugares e pessoas. Não só do marido e do irmão, os lutos mais sentidos de sua existência, mas de quem também amou de outras formas: Jean Genet, Sylvia Plath, Rimbaud e Mishima.
“No meio do vôo eu estava chorando. Volte pra mim, pensava. Você já está longe por tempo demais. Volte pra mim. Eu paro de viajar; eu lavo sua roupa. Felizmente, acabei adormecendo, e quando acordei a neve caía sobre Tóquio”, diz sobre Fred, com quem viveu por 14 anos até o coração dele falhar.
Mais do que acompanhá-la em memórias de viagem, também seguimos os seus passos em deslocamentos atuais, tendo em vista que é convidada com frequência para participar de eventos — como quando foi ao Japão, descobriu e apaixonou-se pelo que Haruki Murakami escreve. Assim, é possível conhecer mais de sua rotina, gostos e pensamento atuais. Madura e mais conectada à literatura do que à música, percebi que gosto mais da Patti de M Train do que de Just Kids.
A prosa corre com fluidez, sensibilidade e delicadeza em uma mistura de sonhos, memória e realidade. Há uma certa musicalidade ao longo das pouco mais de 200 páginas, que oscilam entre a desolação e esperança típicas de quem viveu muito, mas também perdeu na mesma medida ao longo de 77 anos de vida. Assim, recria com as palavras o que não pode mais tocar.
“Tenho vivido de acordo com o meu livro. Um livro que nunca planejei escrever, registrando o tempo para trás e para a frente. Já vi a neve cair no mar e segui os passos de um viajante que há muito se foi. Revivi momentos que foram perfeitos em sua certeza. Fred abotoando a camisa cáqui que usava nas aulas de voo. Pombos voltando para o ninho na nossa sacada. Nossa filha Jesse estendendo os braços de pé na minha frente.”
M Train é um apanhado aparentemente aleatório de histórias que Patti consegue conectar com maestria. É a prova de que está sempre em busca de uma nova obsessão para alimentar a curiosidade por si mesma e pelo mundo, para o qual mantém um olhar atento — mencionando várias vezes, inclusive, a existência de claraboias onde viveu — enquanto sente a areia de uma ampulheta escorrer pela mão que escreve.
Se eu escrever no presente, com digressões, ainda será em tempo real? O tempo real, raciocinei, não pode ser dividido em seções, como números no mostrador de um relógio. Se eu escrever sobre o passado enquanto lido simultaneamente com o presente, ainda estou em tempo real? Talvez não exista passado nem futuro, somente um perpétuo presente contendo essa trindade da memória. Olhei para a rua e notei a luz mudando. Talvez o sol tenha se escondido atrás de uma nuvem. Talvez o tempo tenha escapado."
O livro oferece, ainda, um vislumbre de como se dá a criação artística de Patti Smith em seu âmago. Ao final, não restam dúvidas de que viagens, livros e cafés são combustíveis para a artista — e, talvez, séries policiais também. O ano do macaco é a continuação natural de M Train para quem não quer ficar sem a companhia de Patti Smith enquanto lê, viaja, escreve ou aquece as mãos com uma xícara bem quente.
🌊 VIAGENS OUTRAS
[Para onde este portal me levou e também pode te levar]
— Os livros favoritos de Patti Smith [link];
— Uma reflexão sobre Patti Smith além do gênero [link];
— Um passeio em Rockaway Beach, onde para respirar maresia Patti Smith comprou um chalé que sobreviveu a um furacão [link];
— O espetáculo Correspondences, de Soundwalk Collective com Patti Smith, que vou assistir em março [link];
— Patti Smith & Robert Mapplethorpe Tour, ou a NYC dos garotos [link];
— Um livro que narra Patti Smith em turnê na década de 90 [link];
— A newsletter de Patti Smith no Substack, onde ela conta na última edição sobre a chegada a Ancona, na Itália [link].
Coluna mensal com curadoria, resenha e dicas de literatura de viagem exclusivas para assinantes pagos de Bom Proveito, Portal do Mundo também é a forma com que Patti Smith refere-se aos livros que a acompanham.
A primeira edição é aberta para dar a conhecer o formato. Se gostou, considere apoiar o meu trabalho — financeiramente ou espalhando a palavra para quem pode se interessar! Me escreva caso ainda não possa pagar, mas queira receber alguma futura edição, ok?
Muito obrigada pela leitura e até a próxima,
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