26 | Uma data pela liberdade 🌹
50 anos do 25 de Abril em Portugal e a falta que faz ao Brasil uma festa assim, pá.
“Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo”
Sophia de Mello Breyner Andresen, poeta portuguesa.
Se tem algo pelo qual sinto inveja de Portugal, é o 25 de Abril. Um dia que marca o fim do Estado Novo, um regime autoritário, ditatorial e colonialista, a partir da Revolução dos Cravos. Mais do que isso, uma celebração pela liberdade em seus mais amplos sentidos, que se reinventam ano após ano.
Marchas, música, teatro, filmes, exposições, flor: costuma ser uma festa bonita, pá, como cantou Chico Buarque em relação à primeira delas. Aposto que, quando escreveu Tanto mar há 50 anos, também ele sentia um bocadinho de inveja. Afinal, a democracia ainda não dava sinais de chegar além-mar, onde Médici recrudescia ainda mais um regime em curso.
Feriado nacional português, é uma oportunidade anual de reavivar a memória coletiva sobre os horrores dos fascismos. Também injeta ânimo para ser resistência, sobretudo ao lembrar que a democracia foi conquistada, não simplesmente concedida. E que pessoas sacrificaram-se para que isso acontecesse.
Como alguém que aterrissou para viver neste país poucos dias após a posse de Jair Bolsonaro no Brasil, o Dia da Liberdade sempre me emociona. Logo após o meu primeiro 25 de Abril, comprei a reprodução de um quadro da artista Maria Helena Vieira da Silva nomeado A poesia está na rua, uma frase-chave de Sophia de Mello Breyner Andresen sobre a revolução. Nele, podem ser vistas pessoas de todas as idades marchando com cravos vermelhos nas mãos. Provavelmente cantavam Grândola Vila Morena, a canção veiculada pelo rádio e que foi o código para os militares seguirem os seus planos de pôr fim à ditadura — influenciados sobretudo por quem lutava pela independência das ex-colônias africanas. Gosto imenso do som de fundo, de passos, parecendo uma marcha. Indica movimento, após anos de estagnação.
Não uma bandeira, nem uma arma, mas uma flor e uma música são os dois símbolos máximos de uma revolução pacífica, pela qual um povo todo se orgulha.
Ou quase todo, tendo em vista o resultado das últimas eleições no país, que deu mais espaço à extrema-direita. E aí eu me pergunto: se foi assim com o 25 de Abril, como teria sido sem? Arrisco dizer que os votos no fascismo seriam bem mais do aquele já preocupante milhão.
Lamento que isso tenha acontecido justo em 2024, nos 50 anos da Revolução dos Cravos. Pela primeira vez vive-se mais tempo de democracia do que de ditadura. Até pensei que as comemorações seriam mais tímidas em função dessa ressaca eleitoral, mas pelo contrário: a minha impressão é de que a agenda cultural está ainda mais intensa, baseada em uma resistência que começa a organizar-se mais, da mesma forma com que aconteceu no Brasil. Há mais motivo para ir às ruas, afinal.
Na semana passada, assisti à orquestra sinfônica junto à poesia de Sophia, cuja junção lembrou-me muitíssimo o espetáculo de Patti Smith sobre o qual escrevi há algumas semanas. Ontem, exatamente no 25 de Abril, foi uma festa ouvir cantos de resistência na voz do cantor brasileiro Luca Argel e nos acordes de um grupo de canto alentejano.
Já nos próximos dias, provando que a celebração do cinquentenário da liberdade alonga-se por todo um mês, estou animada para finalmente assistir ao documentário Debaixo do tapete. Nele, a jornalista portuguesa Catarina Demony olha para o próprio passado familiar e a sua relação com o tráfico de pessoas escravizadas. Falando nisso, finalmente o presidente de Portugal acenou à reparação material pelas colonizações. Começar a contar melhor a história nas escolas já era de bom tamanho.
Por tudo isso é preciso celebrar 25 de Abril. Desde o impedimento das viagens femininas sem autorização dos maridos, passando pela avareza de um ditador que virou até nome de espátula tamanha a pobreza que gerou, chegando ao envio de jovens às guerras coloniais e, mais recentemente, à crise da habitação. Para que se cumpram os ideais escritos lá atrás e atualizados com o passar dos anos.
Escrevo esta edição porque acredito na importância de saber o significado das datas comemorativas dos lugares que visitamos. Há um motivo para as janelas estarem quase sempre fechadas em Portugal: na ditadura mais longa da Europa, as pessoas tinham medo de serem denunciadas, tendo ou não motivos para isso. As demonstrações públicas de afeto também eram proibidas e ainda sente-se o impacto disso, assim como no movimento feminista, agora em crescimento após décadas de submissão das mulheres.
Neste feriado prolongado, o país está cheio de turistas, sobretudo de italianos. Lá também comemora-se a liberdade contra os fascistas: Il giorno della Liberazione. Só viajamos porque há democracia, onde existe o direito de ir e vir, é importante não perder isso de vista.
UMA ÚLTIMA VISTA D'OLHOS 👀
[Inspiração para espreitar antes de ir embora]
— 25 de Abril n’A Vida Portuguesa, uma loja que celebra a produção artesanal em suas mais variadas formas, sendo excelente para comprar souvenirs autênticos;
— As fotografias de Alécio de Andrade, o brasileiro que retratou Portugal depois de Abril de 1974;
— Adeus, Salazar!, episódio de podcast da 451 com a presença da romancista Dulce Maria Cardoso, autora do que pra mim é um dos melhores livros nacionais, O retorno, um relato do processo de descolonização e da recepção que Portugal fez aos seus retornados;
— Viajar ou não viajar para um lugar com regime opressivo?, Este artigo do NYT reflete sobre o que envolve uma decisão como essa;
— Passeios para observar luz-em-cus: dia desses viralizou o trecho de um livro da escritora portuguesa Lídia Jorge, no qual ela referia-se aos vagalumes de forma bem literal, fazendo jus à língua de Camões. A verdade é que os bichinhos iluminados são mais comumente referidos como pirilampos por aqui. De toda forma, é época deles e há itinerários específicos de observação.
Obrigada por ter lido até o fim! Estou testando uma edição mais enxuta, sem as seções de curadoria de lugares Flâneuserie e Salvo onde quero ir, na semana que antecede o envio de Portal do Mundo. Para quem ainda não conhece, é a minha coluna mensal focada em literatura de viagem exclusiva para assinantes pagos — uma forma de apoiar o meu trabalho.
Digam coisas daí! Bom proveito e até a próxima edição – toda sexta-feira na tua caixa de entrada ou no aplicativo do Substack!
Liberdade sempre. Até mais,
pensei que a liberdade vinha com a idade depois pensei que a liberdade vinha com o tempo depois pensei que a liberdade vinha com o dinheiro depois pensei que a liberdade vinha com o poder depois percebi que a liberdade não vem não é coisa que lhe aconteça terei sempre de ir eu — Sónia Balacó, atriz portuguesa.
"Não uma bandeira, nem uma arma, mas uma flor e uma música são os dois símbolos máximos de uma revolução pacífica, pela qual um povo todo se orgulha." Que belo trecho!
É inacreditável que seguimos como o único país que não puniu os crimes da ditadura e segue sem celebrar o fim do regime. Em alguma medida, diz muito sobre nós.