30 | Decolonizar o museu 🖼️
Consciência diaspórica é urgente ao visitar espaços museológicos na Europa, assim como repatriar obras de arte pilhadas.
“A Europa é indefensável” — Aimé Césaire, pensador decolonial francês.
“Se existir algum bem cultural que tenha sido apropriado indevidamente, do ponto de vista ético”, os portugueses devem “proceder à sua devolução”. As aspas são da Ministra da Cultura de Portugal durante o último Dia Internacional do Museu, celebrado anualmente em maio. Um avanço, é preciso dizer, ainda que a condicional seja um bocado irritante.
Há apenas dois anos foi inaugurado em Lisboa o Museu do Tesouro Real, que exibe pepitas de até 20 quilos e cerca de 22 mil pedras preciosas de Minas Gerais e Goiás, da época do Brasil Colônia. Brasileiro paga para ver ouro brasileiro em Portugal, como titulou a revista Piauí uma reportagem sobre a nova atração turística da capital. Enquanto isso, nada do país dedicar-se à construção de um memorial da escravatura.
Para além do bordão “devolva o nosso ouro” que inunda as redes sociais, a repatriação de bens e obras de arte é um tema na ordem do dia. Prova disso é o filme Dahomey, que ganhou o Urso de Ouro na Berlinale 2024. O documentário da cineasta franco-senegalesa Mati Daop narra a restituição de 26 peças do patrimônio artístico da República do Benim, uma ex-colônia francesa.
“Desde que foi instalado, não o deixei de contemplar”, disse Theo Atrokpo, um dos guias da exposição “Arte do Benim ontem e hoje”, à DW. "Já o tinha visto no museu do Quai Branly, na França, mas vê-lo aqui, em casa conosco, traz de volta parte da nossa alma e liga-se à nossa história". Reparação histórica, com todas as letras, em função dos danos causados pelo colonialismo.
Partiu justamente da França o esforço para acertar as contas da Europa com os países colonizados, que pedem a restituição há vários anos. Ainda em 2017, o presidente Emanuel Macron reconheceu que a herança africana não poderia existir somente em museus europeus ou em coleções privadas. Iniciava-se, então, um processo para que as peças regressassem aos seus locais de origem. Um movimento a que outros governos do continente dão continuidade em maior ou menor medida, incluindo a população ameríndia.
Ano passado estive em Londres pela terceira vez, a primeira em que visitei o Museu Britânico. Encontrar um quadro sobre a resistência etíope frente ao exército italiano, que tentava sem sucesso dominar aquele território africano, foi um alento em meio a tantas peças retiradas de outros países: coleção egípcia de múmias, Pedra de Roseta, vaso Portland, além das incontornáveis esculturas do Partenon — uma verdadeira volta ao mundo em um lugar que já foi capital de um império colonial.
Em dado momento, um pouco zonza — gratuito, é o lugar mais visitado do Reino Unido —, me perguntei se havia sobrado algo nos países de origem ou se tudo estava encerrado naquele museu a quilômetros de distância. Detive-me por uns minutos para observar a aula que um grupo de crianças tinha em frente às esculturas do Partenon, o qual imaginei ao ar livre como talvez já fora um dia. A maioria parecia ser filho ou descendente de imigrantes, alguns deles talvez de ex-colônias.
O contributo do British Museum para a noção de História Antiga que se tem hoje é inegável. Por outro lado, é imprescindível questionar a permanência de determinadas obras naquele espaço à luz dos novos tempos. Trata-se de adquirir uma consciência diaspórica, crítica acima de tudo, enquanto visitantes de museus na Europa. Cientes disso, vários deles começam a dar mais contexto a respeito de como acumularam o acervo. Nem tudo foi saqueado, é preciso dizer, mas também lembrar que boa parte dos processos foi violento.
Adicionalmente, há o fator conservação nesta reflexão. O arquiteto brasileiro Paulo Mendes da Rocha, por exemplo, decidiu ainda em vida que toda a sua obra deveria ficar exposta na Casa da Arquitectura, em Matosinhos, bem próximo ao Porto. Considerava não haver espaço equivalente no seu país. Inevitável lembrar do incêndio no Museu Nacional do Brasil em 2018, mas ao mesmo tempo pensar que uma coisa leva a outra: o vácuo deixado por acervos dessa magnitude contribui para a desvalorização museológica. Narrativas de resgate à parte, a Notre Dame também pegou fogo.
SALVO EM ONDE QUERO IR 💾
[Onde ainda não fui, mas salvei na lista para ir]
— Museu de Etnografia de Genebra, na Suíça: promotor da memória do impacto da colonização;
— Museu Real da África Central, na Bélgica: focado em repensar as coleções;
— Sámi Museum Siida, na Finlândia: o único que reconhece a cultura indígena na Europa, eleito o Museu Europeu de 2024;
— L'Etno, Valencian Museum of Ethnology, em Valência: comprometido em contar histórias comumente escondidas nesta região mediterrânea da Espanha;
— Kode, em Bergen: a exposição Histórias Indígenas é imperdível para quem visitar a capital dos fiordes noruegueses neste verão.
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UMA ÚLTIMA VISTA D'OLHOS 👀
[Inspiração para espreitar antes de ir embora]
— Grada Kilomba no Roda Viva, uma das melhores entrevistas a que assisti recentemente;
— A violência imperial da fotografia no caso Free Renty;
— Peças esculpidas por indígenas em 1559 voltam ao Brasil e remetem ao início da colonização;
— A reparação do Museu Picasso à artista que o espanhol boicotou;
— De imperador romano à mulher trans, a reclassificação de uma estátua por um museu britânico.
Obrigada por ter lido até o fim! Me conta se algo do que escrevi fez sentido por aí? Vou adorar saber se você também tiver alguma dica para me dar ou seguir alguma recomendação minha.
Bom proveito e até a próxima edição – toda sexta-feira na tua caixa de entrada ou no aplicativo do Substack!
Com carinho,
“O museu ocidental baseia-se em crimes”, Françoise Vergès, autora do livro “Decolonizar o museu – programa de desordem absoluta”.
O tanto que eu amei essa edição! Parabéns pelo trabalho 🔥
Que texto e reflexão incríveis!
A arte também conta nossa história, e sempre me pegou muito como as pessoas visitam museus foram do seu país, mas pouco prestigiam a arte quando estão por aqui. Enfim, que essa discussão fique cada vez mais forte e que as obras retornem a onde pertencem de fato.