41 | Turismo silencioso đ¶
RuĂdos culturais, parques de silĂȘncio e viagens por paisagens sonoras.
âSomente quando percebi que tinha uma necessidade primordial de silĂȘncio fui capaz de partir Ă sua procura â e, entĂŁo, soterrado sob uma cacofonia de ruĂdos de trĂąnsito e pensamentos, mĂșsica e mĂĄquinas, iPhones e carros limpa-neves, lĂĄ estava ele Ă minha espera. O silĂȘncioâ.
Erling Kagge, viajante e escritor norueguĂȘs em SilĂȘncio: Na era do ruĂdo.
A sensação é parecida como quando se chega a casa depois de uma boate: os ouvidos ainda vibram conforme a batida dos alto-falantes. Sinto um zumbido toda vez que volto do Brasil. à margem da cidade e, ainda assim, uma cidade que não é tão grande para a minha escala continental originåria, meu apartamento do outro lado do oceano contrasta com o volume comumente praticado no lugar de onde venho.
E nĂŁo Ă© sĂł por conta de isolamento acĂșstico. NĂŁo fossem as crianças, poderia dizer que parece que vivo sem o barulho de vizinhos ao redor. Assim que se aterra, o silĂȘncio Ă© melancĂłlico, mas reconfortante com o passar do tempo. Algo de que preciso cada vez mais, vim a saber nos Ășltimos anos.
A primeira vez que me dei conta disso foi na praia, naquela situação que minha avĂł paterna chamaria de âmadornaâ: nem dormindo, nem acordada. Um estado hĂbrido que, depois de um banho de mar, nĂŁo Ă© de vigĂlia, mas de relaxamento. De repente, ouvi um grupo de conterrĂąneos chegarem bem perto, atĂ© demais para um areal que sequer estava cheio. Instalaram-se em alto e bom som com as toalhas quase encostadas na minha.
Levantei-me, olhei para o meu companheiro e, sem precisar trocar uma palavra, começamos a levantar acampamento. Tudo bem, afinal jĂĄ estĂĄvamos hĂĄ um bom tempo ali e, uma vez em casa, a siesta poderia ser plena. Acontece que os novos vizinhos de praia perceberam o nosso incĂŽmodo e tambĂ©m se incomodaram. Um deles protestou chamando-me portuguesa branquela, risos. Preferi manter o silĂȘncio para evitar a fadiga que nĂŁo soubesse que vĂnhamos do mesmo lugar.
NĂŁo sou a Ășnica apreciadora da paisagem sonora suave em Portugal. AlĂ©m do prĂłprio povo, que se orgulha da sua calmaria, ainda que por vezes relativa, hĂĄ cada vez mais pessoas atraĂdas por uma vida com menos ruĂdo externo, que ressoa internamente. Recentemente, soube de trĂȘs artistas que se instalaram no paĂs para que pudessem criar com mais sossego: as escritoras Rosa Montero e LeĂŻla Slimani, alĂ©m do artista plĂĄstico Ai Weiwei. A espanhola e a franco-marroquina vivem na capital, enquanto o chinĂȘs escolheu o Alentejo. Que nĂŁo me ouçam, mas o silĂȘncio mais profundo desta terra mora no Alto Douro Vinhateiro.
Expandindo as fronteiras, outro lugar que me marcou pela atmosfera menos ruidosa foi a EscandinĂĄvia, talvez por ser um territĂłrio congelado na maior parte do ano. Sim, porque nem mesmo a neve faz barulho ao cair, diferentemente da chuva e do efeito dos raios de sol nas pessoas. Ao ler o livro do explorador Erling Kagge, soube que na cidade dinamarquesa de JutlĂąndia existe uma cĂąmara de silĂȘncio onde dezenas de pessoas reĂșnem-se com frequĂȘncia. Os visitantes passam cinquenta minutos quietos sentados em almofadas. Apenas tosses ou outros barulhos inevitĂĄveis quebram a atmosfera. A proposta: treinar a empatia ao lembrar que a vida estĂĄ relacionada a um profundo amor pelo prĂłximo.
Por mais contraditĂłrio que pareça, pode ser mais simples suportar o silĂȘncio na presença do outro. VocĂȘ jĂĄ deve ter ouvido falar em uma sala completamente sem eco onde poucas pessoas conseguem permanecer por muito tempo. Isso porque se passa a ouvir o barulho do prĂłprio sangue correndo nas veias, do ranger dos ossos e dos batimentos cardĂacos. Algo que a velejadora Tamara Klink tambĂ©m relatou recentemente ter vivenciado, mas sozinha no Ărtico durante a sua invernagem.
Quando conheci a Dinamarca, em 2022, reparei pela primeira vez na existĂȘncia de vagĂ”es silenciosos de trem, onde nĂŁo Ă© possĂvel conversar, falar ao telefone ou ouvir mĂșsica. De lĂĄ para cĂĄ, o modelo noise free parece ter-se replicado no transporte pĂșblico de vĂĄrios paĂses europeus, reforçando a imagem controladora que possuem, sobretudo entre estrangeiros. Questiono-me se as medidas estĂŁo relacionadas Ă s diferenças culturais realçadas pela imigração e atĂ© pelo turismo.
Viajando em um ĂŽnibus noturno pelo JapĂŁo, uma influencer brasileira foi confrontada pelo motorista, apĂłs pedidos de outros passageiros, para que fechasse a cortina e parasse de usar o celular, ambas medidas obrigatĂłrias para quem compra um bilhete do tipo. A viajante nĂŁo sabia da conduta por nĂŁo ter pesquisado nada sobre o destino, como ela mesma reconheceu apĂłs comprovar que a sua âskin brasileira nĂŁo colaria no JapĂŁoâ ao ser expulsa de um trabalho voluntĂĄrio no paĂs. Ainda nĂŁo estive no Oriente, mas arrisco dizer que o silĂȘncio integra as conversas por lĂĄ, chegando atĂ© mesmo a ser sinal de sabedoria.
Quando se visita um lugar, é importante observar, identificar e respeitar os seus costumes. Jå quando se decide morar em outro local, além do respeito, é preciso encontrar formas de não se anular para caber entre tantos novos códigos. De alguma forma, fazer coexistirem a sua cultura e a cultura do novo contexto, por vezes criando algo novo. à o que tento praticar em relação à quietude e não só.
Nesse embate, talvez o silĂȘncio seja mais do que a ausĂȘncia de ruĂdo, mas uma estĂ©tica reverenciada pelas pessoas ricas, que por vezes se âesquecemâ quem Ă© obrigado a expor-se a decibĂ©is elevados para ganhar a vida. Consequentemente, acostumam-se a isso, como indica um artigo da The Atlantic. No mundo ideal, auto-regular o prĂłprio barulho a fim de respeitar o que e quem estĂŁo ao redor seria algo descolado de classe social, mas infelizmente nĂŁo Ă©, pouca coisa Ă©.
SĂŁo de fato as pessoas com maior poder aquisitivo que podem perseguir o silĂȘncio, caso nĂŁo seja possĂvel encontrĂĄ-lo em um cotidiano cada vez mais barulhento e recheado de estĂmulos. Inclusive, hĂĄ quem diga que o silĂȘncio esteja em extinção e tente protegĂȘ-lo. Tanto que, recentemente, o silent tourism tornou-se uma nova tendĂȘncia de viagem, mais uma entre as tantas da indĂșstria de bem-estar. SĂŁo as fĂ©rias em lugares tranquilos, alguns deles atĂ© certificados por organizaçÔes como a Quiet Parks International, que tambĂ©m promove experiĂȘncias de silĂȘncio ao redor do mundo. Banho de floresta, cerimĂŽnia do chĂĄ e retiros, como o budista Vipassana, sĂŁo algumas das possibilidades nos ditos parques silenciosos.
A ideia Ă© que se passe boa parte do tempo em silĂȘncio em prol da saĂșde. InĂșmeros estudos sugerem que a exposição prolongada a ruĂdos sobre os quais nĂŁo temos controle causa depressĂŁo, doenças cardiovasculares e, a depender da intensidade, perda auditiva. Em Memoria (2021), filme do diretor tailandĂȘs Apichatpong Weerasethakul, a atriz Tilda Swinton interpreta a angĂșstia que um barulho nĂŁo identificado, alto e repetitivo pode causar. Com um design sonoro impecĂĄvel, o longa faz lembrar o Sonic Pavilion, a instalação do Inhotim onde Ă© possĂvel ouvir o som da terra em tempo real.
Escolher um destino calmo, uma hospedagem mais silenciosa ou na natureza e, simplesmente, prestar atenção em outra trilha sonora jĂĄ pode ser suficiente. Um privilĂ©gio revigorante para que, no retorno a casa, haja inspiração para buscar calmaria de outras formas. Preferencialmente dentro de si, criando a prĂłpria quietude, que nĂŁo deveria ser luxo. Afinal, o silĂȘncio Ă© um lugar para onde se pode escapar e nem sempre Ă© completamente livre de ruĂdos.
UMA ĂLTIMA VISTA D'OLHOS đ
[Inspiração para espreitar antes de ir embora]
â O clipe de Silencio, mĂșsica ilustrada de Jorge Drexler;
â Jacques Cousteau inspired, esta bolsa feita em Barcelona remete Ă s viagens exploratĂłrias do mergulhador francĂȘs Ă bordo do Calypso;
â Lifeworld, o Ășltimo trabalho de Olafur Eliasson questiona a forma com que se vĂȘ o mundo, sobretudo com tantas imagens apelativas;
â Parque Estadual das Ărvores Gigantes da AmazĂŽnia, um lugar que ando sonhando em conhecer;
â Leaving and waving, sĂ©rie fotogrĂĄfica de Deanna Dikeman feita ao longo de 27 anos toda vez que ela se despedia dos seus pais.
Obrigada pela leitura até o fim! Me diz o que achou?
Daqui, estou fechando a mochila para viajar no fim de semana: vou Ă Bienal de Arte de Veneza pela primeira vez. Estou muito animada! Se vocĂȘ tiver alguma dica, me escreve de volta?
Bom proveito e até a próxima edição!
Um abraço afetuoso,Â
âFazer poesia Ă© saber escutarâ, Jon Fosse, vencedor do Nobel de Literatura em 2023.
Gosto muito desse livro do Erling Kagge sobre o silĂȘncio. Um lugar inusitado que me dei conta recentemente que Ă© Ăłtimo para ficar em silĂȘncio Ă© a sauna. Virei adepta e vou pelo menos 3x por semana para ficar ali em silĂȘncio sem nada para fazer a nĂŁo ser sentir a pele torrar. Eu amo a EscandinĂĄvia tambĂ©m por conta do silĂȘncio (vou fugir para lĂĄ agora no natal), enquanto Berlim Ă© super barulhenta, mas sorte a minha que moro nos fundos de um prĂ©dio onde parece que o mundo parou tamanho Ă© o silĂȘncio em volta.
depois de ler o texto deu vontade de fugir pra um cantinho bem silencioso <3 eu lembrei tambĂ©m do rodrigo do manual do usuĂĄrio comentando sobre andar pela rua de fones de ouvido para ABAFAR os ruĂdos da cidade, nĂŁo para escutar outra coisa. somos sempre tĂŁo estimulados por sons, Ă s vezes vai bem ficar dentro da nossa cabeça!