6 | Livro também é souvenir 📚
E livraria, atração turística. Mais: bibliotecas como refúgio em viagens, o gênero travel literature, uma árvore de Natal literária, a tendência dos audiobooks e o lançamento de Portal do Mundo.
“Not all those who wander are lost”, ou nem todos aqueles que vagueiam estão perdidos, J.R.R Tolkien.
Cento e setenta anos, 170, quase dois séculos. É o tempo de vida da Stanfords, uma livraria especializada em viagens, provavelmente a mais antiga em funcionamento no mundo. Após conhecer a British Library — que armazena em um prédio magnífico aberto ao público edições raríssimas e todo e qualquer livro publicado no Reino Unido — visitei o templo dos viajantes no coração de Convent Garden.
Fiquei encantada com a quantidade de livros, guias, mapas, atlas, globos, bandeiras, bem como todo o tipo de acessórios para embarcar em aventuras de qualquer estilo e em todos os lugares que apetecer. Desde um adaptador de tomada até um itinerário específico de caminhada em determinado local, passando por itens de navegação. Um lugar frequentado para inspirar, planejar, abastecer, executar e refletir sobre os deslocamentos.
Ainda que seja dado um destaque maior aos livros, a marca nasceu mais como uma papelaria especializada em mapas do que como uma livraria. Isso porque Edward Stanford trabalhou no ramo cartográfico antes de criar a loja que leva o seu sobrenome. À época, havia cada vez mais procura por mapas em função da expansão do império colonial, que apesar de tudo moldou uma cultura de curiosidade além-mar.
Mas o negócio consolidou-se mesmo a partir do lançamento do Stanford's Library Map of London and its Suburbs em 1862. O produto prometia ser a representação gráfica mais precisa à venda, mesmo com as rápidas transformações observadas durante a era vitoriana. O mapa ainda pode ser adquirido na própria livraria ou online, agora com caráter de relíquia.
Embora a internet tenha alterado substancialmente o mercado editorial de viagens, a Stanfords soube reinventar-se ao longo das décadas. Apostou, sobretudo, na venda e até na premiação de travel literature. O gênero, que é um fenômeno na Inglaterra e em algumas partes da Europa, engloba literatura ao ar livre, guias, escritos sobre a natureza e memórias de viagens. Prato cheio para viajar sem sair de casa ou viajar durante uma viagem — escapismo pouco é bobagem.
Há poucos dias a
escreveu em City Lights por que visitar livrarias locais durante as viagens e eu não poderia concordar mais: “Primeiro que é um programa que, em tese, não custa nada: em livrarias decentes você é livre para vagar, folhear e perder tempo entre as prateleiras sem sofrer assédio ou incômodos. Mas se quiser gastar dinheiro, pode”, cravou a autora de Mas você vai sozinha?, um exemplo de literatura de viagem.Da minha parte, quase sempre trago livro como souvenir, termo francês bastante utilizado para identificar os itens que compramos para recordar de uma viagem ou para presentear alguém na volta. Significa mesmo memória, por isso quando levo um livro como lembrança de um lugar escrevo na folha de rosto a data e onde foi comprado. Quero passar a escrever por que motivo escolhi-o.
Exceto pelas de aeroporto — que se parecem todas iguais, vendendo os mesmos títulos questionáveis —, em viagem enxergo livrarias e sebos como atrações turísticas. Gosto de observar os livros mais vendidos ali, as novidades em que decidiram apostar e as edições locais de obras que já vi.
Acredito que é possível conhecer os lugares pela capa ou pelo título escolhido para determinada obra, enxergando representações visuais e traduções como parte da cultura local.
Recentemente, na Librerie delle Donne, em Bologna, adorei folhear a edição italiana de Becos da Memória, da Conceição Evaristo. O prefácio assinado por Igiaba Scego me lembrou de priorizar essa escritora na lista de livros a serem lidos. Esse também é um dos motivos pelos quais não abro mão de visitar livrarias feministas em viagem.
Acrescento ainda o prazer de conhecer novas bibliotecas, um hábito relativamente recente que venho tentando consolidar nos meus roteiros. Costumam ser espaços ainda mais calmos que as livrarias, além de excelentes para people watching de pessoas que vivem naquela cidade. Não raro também atraem pela arquitetura, a exemplo destas 13 bibliotecas mais bonitas do mundo listadas pela Architectural Digest.
Acho que faltou incluir a Bibliothèque Nationale de France Richelieu, em Paris. Entre as selecionadas, quero muito conhecer a de Trinity College, em Dublin, que também é cenário da obra de Sally Rooney. No fim, é tudo sobre refugiar-se entre livros.
Por sorte, ainda há quem não dispense o caráter offline no momento de viajar. Seja para pesquisar um destino por meio de um guia de viagem, orientar-se in loco por um mapa impresso, enviar um cartão-postal para uma pessoa querida ou revelar fotos analógicas. Vi todos esses públicos na Stanfords que, além dos dois andares de loja, ainda dispunha de um café bem próximo às estantes de livros.
A junção entre cafeteria e literatura, inclusive, é o tema da estreia de Portal do Mundo: uma coluna mensal exclusiva para assinantes pagos de Bom Proveito. Trata-se de uma curadoria de livros de viagem seguida de resenha e recomendações outras. Estou muitíssimo animada para enviar a primeira edição no dia 28 de novembro.
Vou fazer suspense em relação ao título e a autoria, mas vou deixar um trecho do livro que me marcou para instigar a leitura:
Os peregrinos espanhóis vão pelo Caminho de Santiago, de mosteiro em mosteiro, colecionando selos com a forma de conchas para prender ao rosário, como prova de sua passagem. Eu tenho montes e montes de polaroides, cada uma delas sinalizando cada passo meu e, às vezes, espalho-as como se fossem cartas de um baralho de tarot ou cromos de basebol de uma equipa imaginária que disputa os seus jogos no céu.
No mesmo dia em que fiz observação de leitores e viajantes, também fui atrás da árvore de Natal literária da Hatchards, uma das livrarias mais antigas de Londres, fundada em 1797. Com 270 estantes, mais de 3,8 mil livros e uma escada em caracol, a estrutura monumental toda em madeira definitivamente não passa despercebida por quem se desloca na estação de trem St. Pancras.
Além de linda, permite sentar e ouvir livros selecionados de autores como Zadie Smith, Michael Morpurgo, Richard Osman e Tom Fletcher. A experiência consolida os audiolivros como tendência no meio editorial, principalmente em um mercado tão assíduo em se tratando de leitura quanto o inglês.
Tudo isso me fez lembrar da
e da sua Doses de tiquira, em especial a edição sobre títulos em espanhol narrados pelos próprios autores, na qual ainda tenho a honra de ser citada! Foi Luisa quem me incentivou a consumir livros neste formato, além de tornar inesgotável a minha lista de desejos escritos em castellano.Publicado este mês no Brasil com uma bela capa, El peligro de estar cuerda foi uma das minhas melhores leituras (ainda é leitura quando se ouve?) deste ano, logo após participar do lançamento com a presença da autora. Me apaixonei pelo livro e pela voz da Rosa Montero, que também poderia ouvir falar literalmente sobre qualquer coisa.
Antes de seguir com a curadoria de lugares e inspiração relacionada ao universo dos livros e deslocamentos, ainda queria comentar brevemente sobre outra suposta livraria de viagem. A Notting Hill Bookshop, que inspirou o filme com o Hugh Grant e a Julia Roberts. Por receber inúmeros turistas todos os dias, talvez alguns mais interessados em selfies que em livros, as atendentes não se mostraram solícitas.
Era o meu último dia de viagem e buscava um título de Virginia Woolf em uma edição rara de Street Haunting, mas tive que me virar. Acabei voltando com o The Waves (As ondas), que achei por minha conta, e um bocado decepcionada não só com o atendimento, mas também com a seleção bem mais restrita de títulos.
Depois encontrei uma matéria que explica a trajetória tumultuada desta livraria. Entre fechos e aberturas, aparentemente mantiveram o nicho apenas para inglês ver, mas claramente deixaram de focar no público viajante. Sigamos para outras opções!
Veja as minhas fotos da Stanfords, da British Library, da árvore de Natal literária e até da Notting Hill Bookshop aqui.
FLÂNEUSERIE 💃🏻
[Recomendações de lugares por onde andei, testei e aprovei: livrarias que são atrações]
— Shakespeare and Co (Paris): livraria em inglês, que também já foi biblioteca, frequentada pela Geração Perdida dos anos 20. Tem umas edições raras impressionantes e uma ótima seleção em segunda mão;
— Daunt Books (Londres): faz as vitrines mais incríveis, além de ser um espetáculo por dentro, cheia de luz natural;
— Bertrand Chiado (Lisboa): a mais antiga do mundo, onde é possível encontrar todos os títulos de Fernando Pessoa, mas recomendo mesmo buscar pela obra de Sophia de Mello Breyner, uma das mulheres selecionadas pela Fuvest em decisão inédita;
— El Ateneo (Buenos Aires): um teatro convertido em livraria que resulta em algo verdadeiramente monumental;
— Livraria Lello (Porto): autointitulada a livraria mais bonita do mundo, que inspirou a escrita de Harry Potter. Infelizmente, cobra para entrar, mas pelo menos você pode reverter o valor em livros. Para evitar multidões, escolha o último horário do dia;
Extra: duas editoras que publicam ótimos títulos de viagem também possuem lojas físicas. A Monocle, em Londres, e a Taschen, em vários locais — já visitei em Paris.
SALVO EM ONDE QUERO IR 💾
[Onde ainda não fui, mas salvei na lista para ir: livrarias de viagem]
— Palavra de Viajante (Lisboa): só vende presencialmente, prometendo boas sugestões. Também acolhe exposições fotográficas e conversas sobre viajar;
— Librairie Ulysse (Paris); com o lema Pays et Voyages, foi criada por uma mulher que integra uma série de associações de viajantes. A especialidade parece ser os mapas;
— Stanley & Livingstone (The Hague): esta livraria nos Países Baixos oferece guias de viagem das mais prestigiadas editoras. É pequena, mas uma gracinha;
— Llibreria Altaïr (Barcelona): promete consultas visuais e intuitivas para conhecer o mundo de forma detalhada, celebrando toda a sua complexidade. Ainda apresentam uma curadoria de ficção bem interessante;
— The Travel Book Company (interior da Inglaterra): no meio do nada, à beira de uma estrada, há esta livraria que oferece escrita de viagem, livros de comida, para crianças viajantes e muito mais. Os top 10 para todos os públicos prometem facilitar a escolha.
UMA ÚLTIMA VISTA D'OLHOS 👀
[Inspiração para espreitar antes de ir embora]
— Uma celebração visual de livrarias independentes pelo mundo;
— Um livro que se intitula como souvenir;
— Somewhere, ou o feed do Sam Youkilis impresso e recém-lançado;
— Os livros mais esquecidos pelos viajantes, segundo a British Airways;
— Festa Literária Internacional de Paraty de 2023: livros para ir a Flip sem sair de casa, com destaque para o Pagu no metrô, sobre a temporada parisiense da homenageada desta edição.
Estou feliz por você ter lido até aqui! Antes de ir, conta para mim qual foi a livraria ou a biblioteca mais bonita que você já foi ou deixa a recomendação de um livro de viagem? Foi uma leitora, a querida Marina Braga, quem me lembrou de visitar a Stanfords, dica que agradeço mais uma vez e, agora, repasso!
Ah, e envia esta edição para alguém que gosta de ler e viajar, por favor? Um mês após o lançamento de Bom Proveito, estamos muito perto de ser 200 viajantes por aqui. Você pode me ajudar a chegar lá :)
Bom proveito e até a próxima edição – toda sexta-feira na tua caixa de entrada ou no aplicativo do Substack!
Um beijo e um abraço,
"It is good to have an end to journey towards; but it is the journey that matters, in the end." - Ursula K. Le Guin.
Gabiiii!!! Que postagem deliciosa: tocastes no ponto que mais amo que é viajar dentro de uma viagem, muito além do verbete tendência "experiência". E nada melhor do que entrar em uma livraria. Elas também são atrativos em minhas viagens e, principalmente, souvenir: onde compro uma tradução de Alice no País das Maravilhas e, minha irmã, Pequeno Príncipe (em Ljubliana tem uma livraria em homenagem ao título "Mali Princ"). Viagei no teu texto, obrigada :) ps: turismo+souvenir+design foi tema da minha pesquisa de tcc
Que delícia de leitura! Amei viajar com você por esses lugares todos. Ontem, dei de cara com uma nova livraria aqui no meu bairro, em São Paulo, e fiquei feliz: livros, seus espaços, autores e leitores sempre se renovam ♥️ Ah, esses dias li um que acho que conversa um tanto com esse prazer de estar entre livros que você menciona. Chama Diário de um Livreiro, e é de um dono de livraria no interior da Escócia. Bem rapidinho de ler, e cheio de anedotas literárias. Obrigada pela menção! E bom fim de semana!