Portal do Mundo: A triunfante, de Teresa Cremisi
#2 — "Tenho a imaginação portuária". É assim que a autora convida a embarcar em uma viagem pelo Mediterrâneo: do Egito à Itália e por fim na França, misturando as suas memórias com ficção ⛵
Enquanto descia as montanhas da Serra da Estrela na semana passada, avistei uma placa que indicava uma capela dedicada à Nossa Senhora do Desterro. O nome me chamou a atenção. Tanto por desconhecer a santidade, quanto por ter vivido uma década em Florianópolis, chamada inicialmente de Desterro.
Não parei para conhecer a igreja, mas anotei para pesquisar sobre a santidade quando voltasse ao Porto, já que celular e estrada sinuosa sempre foram incompatíveis com meu estômago e labirinto sensíveis. Em casa, descobri que se trata de um título católico dado à Santíssima Virgem Maria derivado da fuga da Sagrada Família para o Egito, logo após o nascimento do menino Jesus.
Por esse motivo, também é conhecida como Nossa Senhora da Fuga, a padroeira de refugiados e imigrantes. É muitíssimo venerada na Itália como a Madonna degli Emigrati, inclusive. Costuma ainda ser invocada para proteger viajantes em geral.
De imediato, lembrei d’A triunfante, livro de 2016 que li na metade deste ano e que me marcou profundamente (obrigada pela indicação certeira de sempre,
). A autora Teresa Cremisi conta a história de uma criança não que chega, mas deixa o Egito, mais precisamente a cidade litorânea de Alexandria, e segue em direção à Europa — primeiro a Milão, depois a Paris. “Eu comecei a falar dos lugares e a história se desenvolveu de maneira bem natural”, diz em entrevista à Editora Âyiné, que publicou o romance no Brasil em 2019.É um livro de inspiração autobiográfica, mas não uma autobiografia, talvez um autorretrato intelectual, como define a própria autora. Teresa recorre às memórias sem abrir mão da liberdade de criar aquilo que lhe apetece, recheando a narrativa de referências históricas e literárias. Isso fica evidente logo na primeira página desta viagem, que tem o mar Mediterrâneo pelo meio e começa assim:
Tenho a imaginação portuária.
A lista do que faz meu coração bater mais forte é longa — fotos amareladas, poemas, canções, imagens de filmes — e representa ou conta os cais, os barcos, as docas, os fardos de algodão, os contêineres, as gruas, as aves marinhas.
Nasci em uma grande cidade empoeirada, no último andar de uma clínica conhecida como “hospital grego”, bem perto de um porto. Um porto mais célebre que os outros, onde a história se alojou muitas vezes com estrondo, onde realizou estranhos vaivéns, ao sabor dos séculos, sem objetivo aparente.
Um porto que conheceu a glória e o esquecimento, uma esquina do mundo, no cruzamento de todos os caminhos. Cleópatra nasceu lá (ainda que um pouco antes de mim), e durante milênios a areia das praias a seu redor devolveu moedas de todos os tipos. Moedas polidas pela água, pelo sal, pelo vento.
A história continua dessa forma magistralmente escrita em cinco partes ao longo de pouco mais de 200 páginas. Ainda na primeira delas, é possível conhecer não só o Egito de 1940, mas a infância dourada que a narradora viveu e que teve de deixar para trás devido à instabilidade da crise do canal de Suez.
Filha de pai italiano e mãe com passaporte inglês, a menina cresceu com a linha do mar sempre presente em seu imaginário. Conhecia histórias de travessias pelo Mediterrâneo, batalhas navais e navios. O próprio nome do livro, A triunfante, é uma alusão ao navio de guerra navegado pela França no Oceano Pacífico para dominar as Ilhas Marquesas.
Logo compreendi que as menininhas que gostavam de batalhas navais eram raras, e sempre fui discreta quanto a meu saber marítimo e militar. Era inexplicável, não era acompanhado de um temperamento violento, nem de uma erudição utilitária, visando a algum proveito. Era um saber autodidata acumulado sem razão, nem interesse, nem finalidade. Não convinha a uma criança dos anos 1940, nem à mulher que me tornei. Ainda hoje é um conhecimento secreto. Ele me faz companhia.
Enquanto lia, lembro de ter buscado no Google Maps a praia na baía de Abu Qir onde a menina ia com seus pais em um Chevrolet para comer ouriços. Uma vez o pai contou-lhe que exatamente naquele trecho do mar ocorrera uma batalha em 1 de agosto de 1798 — a Batalha do Nilo, entre franceses e britânicos. Também é nesta enseada onde há uma antiga cidade portuária afundada há mais de mil anos, cujos templos, estátuas e sarcófagos foram descobertos há pouco mais de duas décadas. Com a curiosidade aguçada, seguiu alimentando-se dessas histórias, como quando leu a Ilíada de Homero na escola.
Sonhava, afinal, em ser Lawrence da Arábia, mas foi obrigada a desterrar-se de seu paraíso em 1956 junto da família. Indo de um lado para o outro pelo Mediterrâneo, teve que aprender a se virar. Em Milão, conta as dificuldades da adaptação, sobretudo para os seus pais, em trechos de cortar o coração. “As crianças e os adolescentes são os tradutores do mundo que vem”, reflete Cremisi em entrevista. O livro é dedicado à memória dos pais da autora, Vitorio e Gaby.
Apesar dos desafios para estabelecer-se, são raros os momentos em que a narradora deixa a melancolia tomar conta. Ao mesmo tempo faz a pergunta que possivelmente boa parte dos imigrantes se faz vez ou outra, caso tivesse decidido permanecer em sua pátria.
O Oriente de minha juventude (seus valores fantasiosos, sua decomposição cativante) tinha sido pouco a pouco apagado, cancelado do mapa. Não houvera espaço para nostalgia depois de nossa instalação na Europa: mas agora as lembranças, elas próprias inertes, não se manifestavam mais. O que teria acontecido se a história tivesse esperando um pouco, duas ou três décadas, antes de nos sacudir como um cachorro sacode suas pulgas? O que eu teria me tornado?
Entendendo, então, que sempre seria estrangeira, busca refúgio na literatura para assentar-se no mundo e em sua própria nova vida. Stendhal, Conrad, Proust, Cavafis e Corto Maltese, por exemplo, são apenas algumas das leituras da narradora de A triunfante, que ganhou o Prix Mediterranee no ano de seu lançamento. Sempre pontuando o recorte de gênero na imigração e no sentimento de pertença.
Por muito tempo não entendi que o fato de ser mulher era como ter uma deficiência; eu não tinha absolutamente parado para pensar sobre os indicativos de que era difícil vislumbrar um destino à la Lawrence da Arábia sendo do sexo feminino. Não tive, aliás, nenhum sinal de alerta sobre isso. Como meus pais tinham esquecido de me proibir o que quer que fosse, jamais em minha vida eu tinha ouvido que eu não poderia fazer alguma coisa por ser uma menina.
Embora os seus sonhos não se concretizem, ela triunfa. Primeiro na Itália, quando frequentou a universidade e conseguiu um posto em um jornal, e sobretudo em Paris, para onde parte em novo exílio, desta vez escolhido. Na capital francesa, encontra o amor e o êxito profissional.
A esta altura, ficção e vida real se encontram, já que Teresa Cremisi é uma editora reconhecida no mercado francês, sendo responsável pela publicação de autores proeminentes, a exemplo de Yasmina Reza (e seu delicioso Felizes os felizes). Acumula passagens pelas prestigiadas Gallimard e Flammarion, inclusive em posições executivas.
Outro trecho da história que me tocou é o relato da narradora para conquistar os documentos franceses — uma busca que pode revelar-se verdadeira odisseia a ser enfrentada por quem imigra do Sul para o Norte Global. Impossível não relacionar a aflição à nova lei de imigração aprovada há poucos dias na França, bem mais restritiva, além de um sinal preocupante do avanço da extrema-direita na Europa.
Já no epílogo, a protagonista revela uma possível vontade de movimentar-se novamente em direção à costa italiana para viver a velhice mais perto do mar — esse horizonte volátil que afasta e aproxima, mas ainda assim conecta. Sem deixar de despertar uma curiosidade infinita sobre o que há na outra margem (e e em nós mesmos).
“Eu acho, hoje, tendo chegado a certa idade, acho que os lugares são determinantes, e que se escolhemos, ou somos obrigados a viver, ou nascemos em um tal país, isso mudará completamente nossa maneira de ver e sentir. E quando esses lugares se multiplicam, a personalidade se torna muito complexa”, sugere a escritora em entrevista.
Que Nossa Senhora do Desterro nos proteja, amém.
O livro A triunfante está com 70% de desconto no bazar da Editora Âyné, saindo por R$ 20,90 na data de envio desta edição. Não é publicidade, mas poderia ser. Aproveito para comunicar que Bom Proveito usa links de afiliados: isso quer dizer que se você comprar algo que indico pela Amazon, por exemplo, o preço é o mesmo e eu ganho uma pequena porcentagem que ajuda a financiar o meu trabalho.
🌊 VIAGENS OUTRAS
[Para onde este portal me levou e também pode te levar]
— LITERATURA: Livros recomendados por Teresa Cremisi [link]; A lista com todos os outros vencedores do Prix Mediterranee [link];
— MÚSICA: A playlist de A triunfante feita pela sua editora no Brasil [link] + Laila Al Habash, ítalo-palestina que foi uma das cantoras que mais ouvi este ano [link];
— TEATRO: Moria, um espetáculo imersivo, documental e inesquecível sobre a tragédia humanitária da ilha grega de Lesbos [link];
— AUDIOVISUAL: O filme Les plages d’Agnès, da soberana Agnès Varda [link] + Uma cena sobre família da série Peaky Blinders bastante oportuna para as festas de fim de ano [link];
— FOTOGRAFIA: Acervo fotográfico de Ruth Orkin, famosa pela foto American Girl in Italy, que ilustra a capa do livro Flâneuse [link];
— ARTE: “Só um imigrante sabe o trabalho que dá ser imigrante", trabalho do brasileiro radicado no Porto, Leandro Caram [link];
— GUIA DE VIAGEM: The Passenger, publicado no Brasil também pela editora Âyiné, é uma mistura de livro e revista com abordagem bem fora do óbvio [link];
— LUGAR: Thonis-Heracleion, a cidade greco-egípcia engolida pelo Mediterrâneo no século 7 e descoberta há 20 anos [link] + Institut du monde arabe, em Paris [link] + Mucem, em Marseille [link].
Obrigada por ler esta coluna mensal com curadoria, resenha e dicas de literatura de viagem exclusivas para assinantes pagos de Bom Proveito! Contei na primeira edição que Portal do Mundo também é a forma com que Patti Smith refere-se aos livros que a acompanham.
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