Portal do Mundo: Escute as feras, de Nastassja Martin
#5 — Um urso ataca uma antropóloga francesa, que sobrevive para contar sobre o "encontro", a cultura e os lugares mais remotos da Rússia, que também falam de si mesma 🐻
Enquanto me debatia com a resenha de outro título, recebi uma mensagem de uma amiga interessada no livro Escute as feras (Editora 34), escrito em francês por Nastassja Martin (diz-se Nastássia Martãn). Levantei da cadeira e saí em busca do exemplar em alguma das pilhas espalhadas pela casa para emprestá-lo. Ao folhear as páginas e reler alguns trechos destacados à lápis, fui invadida novamente pela sensação esmagadora daquela leitura feita há um ano.
Inevitavelmente, recalculei a rota editorial para contemplar a obra inclassificável da antropóloga em Portal do Mundo. Escute as feras foi o souvenir que trouxe da última viagem ao Brasil, em janeiro de 2023. A minha escolha ao visitar a livraria Gato sem rabo, em São Paulo, dedicada aos escritos de mulheres. À época, o título ainda não havia sido publicado em Portugal e tampouco havia a possibilidade de comprá-lo pelo Kindle, o que junto de comentários elogiosos de pessoas próximas e da presença da própria autora na Flip em 2022 aumentaram a expectativa pela leitura.
Mas nada poderia me preparar para o que senti ao devorar as pouco mais de 100 páginas de Escute as feras, traduzido por Camila Vargas Boldrini e Daniel Lühmann. No ritmo das estações do ano, o livro narra o encontro brutal entre a estudiosa e um urso-macho na Sibéria durante trabalho de campo no extremo leste da Rússia. Trata-se de um ataque, mas a escritora, que estuda há duas décadas o Grande Norte Subártico, prefere chamar de encontro. Tenta elaborá-lo ao longo das páginas.
“Não apenas os limites físicos entre um humano e um bicho que, ao se confrontarem, abrem fendas no corpo e na cabeça. É também o tempo do mito que encontra a realidade; o outrora que encontra o atual; o sonho que encontra o encarnado. A cena acontece nos dias de hoje, mas poderia muito bem ter ocorrido há mil anos.”
Contrariando as estatísticas, Nastassja sobrevive para contar, carregando consigo uma marca está longe de ser apenas no rosto. Antes, peregrina por hospitais e vê o seu próprio corpo tornar-se território de uma guerra fria franco-russa, na qual duelam as medicinas oriental e ocidental. Chego a questionar-me se a violência maior foi desferida pela mandíbula do animal ou pelas mãos dos profissionais de saúde.
Por fim, torna-se uma miedka, concepção originária que dá conta de uma criatura habitada pelo espírito do animal e que vive entre dois mundos cujos contornos se estilhaçaram. Dotada de uma nova animalidade, Nastassja passa a ser “mulher-urso”. Também acredita ter deixado um punhado de humanidade no animal.
Assim, materializa o que vinha registrando em seus diários objetivos e subjetivos, que sustentam o livro: o animismo, que é a crença de que gente e bicho são iguais, podendo inclusive comunicarem-se por meio de seus espíritos. Quem lhe ajuda nessa compreensão é Dária, sobretudo pela via dos sonhos.
“Não sinto dores de fato. Só sinto medo, medo de tudo aquilo que não voltou a se fechar em mim, de tudo aquilo que potencialmente se insinuou em mim. Há outros seres à espreita na minha memória; então talvez também haja alguns debaixo da minha pele, nos meus ossos. Essa ideia me aterroriza, porque não quero ser um território invadido. Quero fechar minhas fronteiras, expulsar os intrusos, resistir à invasão. Mas talvez eu já esteja sitiada. É sempre a mesma coisa. Diante de pensamentos assim, eu afundo: sei que, para fechar minhas fronteiras, seria preciso antes poder reconstruí-las.”
Ao longo das páginas, me pergunto se Nastassja viaja para os lugares mais remotos em busca ou em fuga de algo. Eventualmente, esse também é um questionamento que me faço, assim como acredito que seja uma reflexão frequente entre quem se desloca. Sem fazer qualquer juízo de valor entre uma motivação e outra, inclusive acreditando haver fusão entre ambas, acredito já ter fugido, mas hoje penso ter mais nítido o que procuro.
Voltando ao que movimenta a autora de Escute as feras, penso ser um tipo de fascínio pelo seu próprio objeto de estudo, o povo originário even. Algo que é potencializado pela experiência-limite a qual sobreviveu, e da qual sente-se incompreendida pela maioria, exceto pelos povos originários das florestas congeladas. Renasceu sem ter morrido, em uma vida que passa a dividir-se entre antes e depois do urso.
A antropóloga acompanhou algumas famílias que preferiram tomar distância da vida na Rússia pós-soviética e voltaram a viver no coração das florestas siberianas, mesmo coexistindo com bases militares. Nastassja também sofre quando está na França, a sua terra natal. Me faz lembrar da população em situação de rua que, acostumada a outro estilo de vida, tem dificuldade em voltar a viver em um ambiente doméstico.
Longe de cravar qualquer interpretação fixa, pretendo continuar orbitando neste universo onírico a partir de A leste dos sonhos: Respostas even às crises sistêmicas, seu novo livro recém publicado no Brasil. Lá estão novamente Dária, seus filhos e filhas e seus modos de vida ameaçados de existir. Agora, a autora acrescenta ainda mais contexto histórico e global ao que acontece remotamente. Parece uma nova tentativa de conexão com a ancestralidade. Espero que tão poeticamente escrita quanto a primeira, que faz pensar sobre tanto, principalmente em modos de viver.
“Os ursos não suportam olhar nos olhos dos humanos, porque veem neles o reflexo de sua própria alma.”
🌊 VIAGENS OUTRAS
[Para onde este portal me levou e também pode te levar]
— Uma psicanalista e um cientista político debatem Escute as feras [link];
— A queda do céu, livro de Davi Kopenawa citado em conversa inspiradora por Ellen Lima, artista indígena da etnia Wassu radicada em Portugal [link];
— Conversa entre Mano Brown e Sidarta Ribeiro sobre sonhos [link];
— A newsletter da Aigo Livros, uma livraria migrante em São Paulo [link];
— Outro diálogo, desta vez entre Nastassja Martin e Ailton Krenak [link];
— Ishkar Travel, uma agência de viagens que leva pequenos grupos de viajantes curiosos e críticos para lugares raramente visitados [link];
— Dois livros sobre animais, edição da
que relaciona Escute as feras e Diorama, da [link];— O relato de um tutor que deixou o seu bichinho por uma semana em um hotel de luxo para cães [link];
— Um vídeo que retrata cachorros sendo pintados ao longo da história [link].