Portal do Mundo: Frio o bastante para nevar, de Jessica Au
#6 — Livro da autora australiana de origem asiática sobre uma viagem mãe & filha ao Japão é tão delicado como o filme Vidas passadas, da sul-coreana Celine Song 🌬️
Foi com surpresa que me dei conta do paralelo existente entre as obras de Jessica Au e Celine Song. Durante um deslocamento de trem, a narradora sem nome de Frio o bastante para nevar lembra-se de uma história contada várias vezes ao longo da infância por sua mãe, quem a acompanha em viagem pelo Japão e é testemunha de um romance juvenil entre o irmão de origem humildade e uma menina de família sofisticada. Os planos de fuga do casal foram interrompidos pela mudança abrupta da família dela para os Estados Unidos. Com pena, a governanta passou um recado deixado para trás: que ele a esperasse, porque ela voltaria para encontrá-lo.
Diferentemente de Vidas passadas, o encontro nunca acontece. No livro, o tio tem um problema no coração e, por isso, permanece em Hong Kong por toda a vida, inclusive muito perto de onde a amada morava. Até que anos mais tarde recebe uma carta dela, que o encontra a partir de uma rede de conhecidos mútuos. Conta da vida que construiu em um novo país, mas nunca obteve resposta, por mais que o destinatário tivesse tentado.
É certo que se trata de um enredo relativamente comum de desencontro motivado por migração, evento comum entre a população asiática. Além disso, essa história é contada en passant em Frio o bastante para nevar, não fazendo parte de forma preponderante na história. Mas há algo mais que aproxima o livro da autora australiana do filme da cineasta sul-coreana. Apesar de se passarem em cidades frenéticas como Tóquio e Nova Iorque, ambos são delicados, contemplativos e profundos, revelando-se em múltiplas camadas a partir de um enredo só aparentemente banal. Quem lê, viaja não apenas ao país nipônico, mas também pela sua memória em digressão.
Em menos de cem páginas, Jessica Au relata uma viagem entre uma mãe idosa e uma filha adulta ao Japão. As duas moram na Austrália, ainda que em cidades diferentes. A mulher mais velha é nascida em Hong Kong, emigrou e deu a luz à narradora e sua irmã já no país de língua inglesa. É, inclusive, apenas nesse idioma que conversam, não na língua materna — uma constatação a que a protagonista chega somente ao planejar a viagem.
O destino escolhido faz as vezes de território neutro na relação entre mãe e filha que, sabemos, está bem longe de ser simples, sendo quase sempre complexa. Também é um local seguro de certa forma para a narradora, que já visitara o Japão com o marido. Talvez se preparasse para algum tipo de batalha a ser travada.
Em plena temporada de tufões, a viagem começa em Tóquio e termina em Quioto. Ainda que as descrições do cenário se destaquem, o que sobressai é a tentativa de aproximar-se emocionalmente daquela que lhe deu a vida a partir da convivência intensa que só uma viagem permite.
Vemos o mistério materno como uma dança entre duas pessoas que ora afastam-se, ora aproximam-se. Não por acaso a filha decide fazer uma trilha sozinha no meio da viagem, prevendo que em dado momento se sentiria sufocada por aquela convivência e precisaria de solitude. Como escreveu a autora mexicana Guadalupe Nettel em uma leitura que faço agora, Los divagantes, aqueles que nos tocam fisicamente no início da vida costumam deixar as suas marcas para sempre.
Mas, voltando a Cold enough for snow, título em inglês traduzido literalmente por Fabiane Secches, o roteiro da viagem é feito pela filha a partir de um desejo profundo de agradar a mãe. Inclui museus, restaurantes, lojas e galerias de arte — na tentativa de que a matriarca também goste das suas predileções. Sinto a apreensão dela como se fosse minha.
A narradora é alguém que nasce depois da imigração. Pôde intelectualizar-se em um contexto de vida mais estabelecido, diferentemente da mãe, que teve de ser bem mais austera para adaptar-se à Austrália. Além de afastar as duas, esse histórico com ecos de Annie Ernaux faz com que a mãe seja uma mulher que não expressa as suas vontades, talvez por ser alguém a quem foi negado o desejo. A única pergunta que denota interesse na viagem feita pela mãe faz está relacionada ao título do livro.
A filha tenta, então, preencher essas lacunas silenciosas com a arte. Parece acreditar no poder que a pintura, por exemplo, têm de suportar o que não se pode colocar em palavras. Aquilo de que não consegue falar com a mãe por medo, respeito ou cultura.
Uma passagem interessantíssima é quando se lembra de uma temporada que passou sozinha na casa de uma professora de literatura inglesa devorando a sua biblioteca, cozinhando receitas novas e passeando com o cachorro que não fora à viagem de férias da família. Aposto que a tradutora e psicanalista Fabiane Secches, especializada na obra de Elena Ferrante, também se recordou do poder que tal persona pode exercer para mudar a vida das pessoas, assim como alterou a de Lenù na tetralogia L’amica geniale.
Frio o bastante para nevar é o segundo livro de Jessica Au, publicado após um hiato de dez anos. Traduzido para dezenove idiomas, ganhou a primeira edição do Novel Prize, mantido por editoras prestigiadas em países de língua inglesa. O prêmio no valor de dez mil dólares provavelmente financiará a continuidade de seu trabalho, que também inclui um part-time em uma biblioteca em Melbourne.
Daqui, torço para que a suavidade persista em sua obra, que me fascina pelo minimalismo capaz de entregar tanto. Que siga escrevendo histórias nas quais aparentemente não acontece nada, mas que na verdade tudo se passa, em camadas sutis. É daqueles livros que exigem presença, mas que também são bons acompanhantes em um voo de curta ou média duração. E, se fico com uma mensagem, é de que nem sempre é possível conhecer verdadeiramente alguém — nem mesmo em uma viagem idealizada para esse fim, nem mesmo durante toda uma vida.
🌊 VIAGENS OUTRAS
[Para onde este portal me levou e também pode te levar]
— Longa, interessante e bem fotografada entrevista com a escritora Jessica Au feita pela Liminal Mag, uma revista literária da Austrália de muito bom gosto [link];
— Da viagem da Marina Guaragna ao Japão, achei importante saber sobre a perseguição às gueixas por turistas [link];
— Entrevista com a tradutora de Frio o bastante para nevar, Fabiane Secches [link];
— Expats, série da Prime Video que se passa em Hong Kong sobre as diferentes imigrações, desigualdade social, maternidade etc, com Nicole Kidman [link];
— Também de autoria feminina, os filmes Aftersun, sobre uma filha que relembra a viagem que fez com o pai há 20 anos e se dá conta de partes dele que nunca conheceu [link], e Lost in translation, que retrata a solidão da mulher de um fotógrafo em viagem a Tóquio, onde encontra um ator de cinema com quem se distrai e encontra compreensão [link];
— A música Alone in Tokyo, da dupla francesa Air, que costuma compor a trilha sonora dos filmes da Sofia Coppola [link].
— O Japão é um lugar estranho, diário de viagem fotográfico do
àquele país [link];— O livro Aos prantos no mercado, de Michelle Zauner, também publicado pela editora Fósforo no Brasil, sobre o luto de uma filha pela morte precoce da mãe e como a comida coreana, da origem delas, cumpre um papel nesse momento [link].
Coluna mensal com curadoria, resenha e dicas de literatura de viagem exclusivas para assinantes pagos de Bom Proveito, Portal do Mundo também é a forma com que Patti Smith, autora da primeira edição, refere-se aos livros que a acompanham.
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Muito obrigada pela leitura e até a próxima,
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