Portal do Mundo: Kramp, de María José Ferrada
#10 — Em estilo road movie, escritora chilena conta a história de uma menina que vendia parafusos na companhia do pai caixeiro-viajante pelo interior de um país em ditadura 🔩
Inspirada pelo seu irmão mais novo, María José Ferrada começou a escrever livros para crianças e adolescentes. A motivação familiar tornou-se um ofício largamente premiado. Talvez por isso chame a atenção em Kramp (2020, Editora Moinhos, 96 páginas) a verossimilhança da voz infantil que narra a história, a primeira ficção da escritora chilena.
Em estilo que faz lembrar o gênero road movie, a protagonista M pega a estrada com o pai, um caixeiro-viajante que vende produtos de serralheria da marca Kramp. Aventuram-se em um Renault velho por estradas, povoados e cidades do interior em função de uma profissão que já dava sinais de decadência.
A menina torna-se ajudante de D, de quem também só é revelada a letra inicial de seu nome, em um arranjo familiar que visava protegê-la da ausência da mãe. Mais tarde, descobre-se o motivo do adoecimento mental materno, que está atrelado à ditadura pela qual o Chile atravessava. Tem-se, portanto, uma das marcas de Ferrada, que é a de voltar-se para crianças que experimentam eventos como rupturas democráticas ou imigração.
Nas viagens, M aprende não só de pregos, martelos, serrotes, maçanetas e olhos mágicos, mas principalmente sobre a vida ao analisar as relações que se estabeleciam nos balcões das lojas, nas cafeterias, em praças ou hotéis. Também ouvia muitas histórias contadas por outros caixeiros-viajantes, sempre homens a quem era reservado o direito de deslocar-se mesmo em períodos extremos.
“Recordo-me de que fui acampar. Saímos para olhar as estrelas e, utilizando o Cruzeiro do Sul como referência, expliquei aos meus companheiros que o que brilhava lá longe não eram estrelas, e sim tachinhas de três polegadas com as quais o Grande Carpinteiro havia pendurado tudo no céu, inclusive a gente. O que quero dizer é que cada pessoa tenta explicar o mecanismo das coisas com o que tem em mãos. Eu, aos sete anos, tinha estendido a minha e topado com o catálogo da Kramp.”
Polêmica ao estampar a imagem de uma criança fumando, a capa da edição brasileira sugere o amadurecimento de M, que parece ser a inicial da própria autora nesta espécie de romance autobiográfico. E não apenas de forma figurativa, já que a menina passa a fumar na companhia do caixeiro-viajante, sobre quem dizia ser melhor patrão do que pai. De toda forma, entre tachá-lo de “inconsequente” ou “pioneiro da pedagogia sistêmica” pelo fato de tirá-la da escola por alguns dias para viajar, M fica com a segunda opção.
A viagem de Kramp é mais em torno do amadurecimento do que pelo interior homogêneo do Chile, onde pouca coisa acontecia à época. Não por isso deixa de ser menos interessante, muito pelo contrário: Kramp é uma narrativa curta, mas poderosa, que tem potencial de grudar por um tempo na mente de quem a lê. Também há outra viagem no horizonte da história: ao céu noturno tão famoso no país, sobretudo à lua. O contexto da corrida espacial conjugado à história de M reforça a tentação ao escapismo quando se vive situações difíceis em casa e no país.
“Os trajetos de que eu mais gostava eram os de volta. E não era porque, quando a estrada terminava, eu estava na minha casa, e sim pelo efeito lumínico que se produzia no final das tardes e que simplificava tudo. Nessas horas, o mundo se parecia com a maquete que tínhamos visto numa das tantas lojas de ferragens que visitávamos.”
🌊 VIAGENS OUTRAS
[Para onde este portal me levou e também pode te levar]
— As viagens de Gulliver, um dos livros que acompanha M mais velha em Kramp [link];
— Voodoo Chile Blues, música de Jimi Hendrix ouvida enquanto o livro era diagramado, uma informação curiosa que adorei ler na edição brasileira [link];
— O que é meu, livro de José Henrique Bortoluci que também aborda uma relação com o pai mediada pela estrada [link];
— Morte de um caixeiro viajante, dramaturgia clássica de Arthur Miller [link];
— Vamos comprar um poeta, livro de Afonso Cruz, quem traduziu Kramp em Portugal [link];
— Apollo 13: Sobrevivência, novo documentário disponível na Netflix sobre a alunissagem frustrada e o retorno bem conseguido à Terra [link]
— Arpilleristas, o coletivo de artistas chilenas não identificadas presente na Bienal de Arte de Veneza 2024 [link];
— Crianças fumando em tradicional celebração do Dia de Reis no interior de Portugal [link].