Portal do Mundo: Mil milhas, de Tamara Klink
#3 — Navegadora já cruzou o Atlântico e agora viaja pelo Ártico em solitário, mas como tudo começou? Pelo Mar do Norte e sem ajuda do pai, o medo também revelou uma escritora à bordo da Sardinha 🐟
Não me lembro exatamente em que momento passei a acompanhar as viagens de Tamara Klink. Acredito que tenha sido mais ou menos quando passou por Lisboa, em 2021. À época, avisei uma amiga que trabalha em uma revista, as duas se encontraram e o resultado foi uma reportagem sobre a sua expedição solo do Atlântico Norte para o Sul. A menina tornava-se a mulher brasileira mais jovem a alcançar o feito a bordo de um veleiro pequeno.
Hoje, quem segue a navegadora de 26 anos nas redes sociais sabe que o desafio é ainda maior. Tamara está no Ártico, navegando na Sardinha 2 pelo mar cada vez menos congelado que circunda a Groenlândia. Como ela mesma diz: sozinha, mas não solitária. Suas conquistas, de tão grandes e liricamente descritas, não impressionam apenas o público feminino. Os comentários são sempre lotados de encorajamento.
Para encarar a invernagem, Tamara teve que começar de algum lugar menos inóspito. É claro que, sendo filha de quem é, a navegação sempre esteve presente em sua vida. Mas é um engano supor que o autor de Cem dias entre céu e mar soprou o “caminho das pedras” nos ouvidos da filha. E que bom que não o fez, preservando, assim, o casco da Sardinha 1 e engrossando o de Tamara. No entanto, previu em uma espécie de ato falho que Tamara um dia voltaria ao Brasil por conta própria velejando, como é possível saber pelo livro.
Mil milhas narra, então, o nascimento da navegadora cujo batismo aconteceu no Mar do Norte, mais precisamente entre a Noruega e a França. Mas a escritora Tamara Klink talvez já existisse desde a alfabetização. Junto das irmãs, sempre manteve diários de viagem. Essa era uma exigência da mãe, Marina Klink, para que as filhas não se esquecessem do extraordinário que viviam em família desde pequenas, como quando foram à Antártica.
“Sonhos são coisas perigosas. A gente não decide tê-los, nem define como serão. Eles nascem por eles próprios, crescem em silêncio e espalham raízes nas nossas escolhas todas. Sem a gente perceber, os sonhos já nos são.”
Com base em registros à mão posteriormente transformados em livro, Tamara conta como tudo começou: por sugestão de um amigo que fez pela internet e emprestou-lhe dinheiro para comprar um barco pequeno e meio baleado nomeado Sardinha. Achou que ele estivesse brincando quando ouviu que poderia voltar por conta própria da Noruega, onde o veleiro estava, até a França, país que escolheu ancorar e estudar arquitetura naval. Afinal, desconhecia até mesmo manobras de navegação, mas aprendeu o que deu, fez do veleiro a sua casa e partiu, já que “quanto mais se prepara, mais inacabado fica.”
“‘Tornar-se pronta’ seria um processo individual e infinito. Em algum momento, eu teria que ir.”
A partir daí, fui levada a bordo de porto em porto com Tamara: Volda, Florø, Bergen, Føresvik, Farsund, Thyborøn, Vlieland, Den Haag, Calais e Dunkerque. À medida que a leitura avançava, senti de tudo junto da navegadora. Comemorei a finalização de uma manobra arriscada para atracar em um local apertado, respirei aliviada em dias de “mar de azeite” e contraí o trapézio em noites escuras de tempestades. Sei bem como é a saudade que relata sentir dos seus. Em nenhum momento deixei de me impressionar pela forma com que Tamara vê a coragem na borda do medo.
“Dá um medo que só, mas o risco é o gerador da liberdade e o risco se faz ao riscar.”
Muito além de travessia geográfica, Mil milhas também dá conta do amadurecimento de Tamara, assentado nos aprendizados colhidos diariamente em mar aberto, além do deslocamento e da busca por um lar tão longe de casa. Portanto, em certa medida o livro também é um “diário de formação”, graças à sua capacidade de observação dentro e fora de si mesma.
“A gente precisa ser a gente sempre, para poder se levar para os portos aos quais nosso corpo vai chegar por nós.”
Como mulher que já viajou e eventualmente ainda viaja sozinha, não pude deixar de sentir incômodo em relação a determinados olhares masculinos sobre a viagem de Tamara. Em uma passagem, é questionada por um grupo deles se não tem medo de fazer a travessia solo. Pergunto-me a intenção por trás de um questionamento como esse. A navegadora também se questiona, mas prefere encorajar outras mulheres a fazerem o mesmo em vez de limitarem-se.
“‘Sozinha?’ Eles não sabem. Quando a gente se entrega inteira, quando a gente cuida de cada ponto e cada nó, a gente nunca está só. Vem conosco uma manada afoita e latente uivando para seguirmos sempre em frente.”
Assim como os vídeos que publica das suas viagens mais recentes, Mil milhas é dedicado à Anna, avó de Tamara. Mantém uma relação de confidência com ela e com as irmãs, sobretudo com a sua gêmea Laura, que assina a tipografia presente no barco e no livro. Ao longo das páginas, elabora a relação com os pais, sobretudo com o pai. Agradece a autoconfiança desenvolvida indiretamente que a possibilitou navegar longe e em solitário.
“Seguir os passos de alguém é ignorar os novos contextos, é renunciar nossa capacidade explorativa, tentar caber onde não dá. É manter o olhar em alguém e perder-se de vista enquanto isso. É contar com a inércia dos tempos, é torcer contra a evolução, é não partir nem ficar.”
Amyr Klink assina um breve, mas bonito posfácio que sela a relação com a filha. Nas últimas páginas, há uma série de fotos adoráveis da família de navegadores. Certamente todos estão orgulhosos de Tamara, mas não tanto quanto ela própria de si mesma.
Há uma espécie de continuação ainda mais poética para quem quiser seguir embarcada com Tamara: Um mundo em poucas linhas, que junto de Mil milhas integra o conjunto Crescer e Partir. Esse segundo livro fala sobre ser estrangeira e, em suas palavras, ser perpetuamente uma versão traduzida de si mesma. Tamara acredita que foi quando se mudou para a França, não quando se lançou em alto mar, que mais correu riscos. Tenho sentimentos parecidos desde que saí de casa, igualmente com mais medo que coragem.
“O fim, quando chega, puxa a cadeira para um começo. E na minha cadeira estão a jardineira impermeável, a capa corta-vento e o diário em branco para a próxima viagem.”
🌊 VIAGENS OUTRAS
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