12 | A Galícia é uma delícia 🐙
Destino completo, mas pouco explorado além da peregrinação até Santiago de Compostela. Se driblar as chuvas, é possível curtir praia, montanha, arte, história e gastronomia em bom galego, o portunhol.
“Lugar máis hermoso non houbo na terra que aquel que eu miraba, que aquel que me dera. Lugar máis hermoso no mundo n’hachara que aquel de Galicia, ¡Galicia encantada!", Rosalía de Castro, escritora e poeta, em Cantares gallegos, o início da literatura galega moderna.
Tenho um fascínio por áreas fronteiriças. Do que não é uma coisa nem outra, mas uma mistura. Muitos mundos costumam viver nas fronteiras, desafiando o conceito de Estado-nação ao partilhar história, cultura, línguas e economia a despeito de linhas arbitrariamente imaginárias.
Vivo a uma hora de distância da fronteira mais antiga da Europa: A Raia ou La Raya, que divide Portugal e Espanha desde os tempos do Condado Portucalense e do Reino de León. Embora não haja mais controle de acesso desde a assinatura do Acordo de Schengen em 1995, que trivializou o ir e vir no espaço europeu, adoro cruzá-la de um lado a outro, ver a paisagem alterar-se lentamente ao passo que o idioma das placas muda de súbito.
Se bem que na parte úmida d’A Raia cortada pelo rio Minho, a diferença linguística é residual. É que se adentra a Galícia, onde o galego vem antes do castelhano tornado espanhol pelo ditador Franco. A origem é a mesma da língua portuguesa: o galaico-português, que por sua vez deriva do latim. Portanto, usam-se os mesmos artigos, há várias palavras com “ei”, como “ribeira”, e até diz-se vermello em vez de rojo. Mas também existe uma grande quantidade de “X”, a exemplo de hoxe para dizer hoje, e ñ no lugar de “nh”. Quando ouço ou leio “graciñas” como agradecimento, me pergunto se pode haver algo mais gracioso que isso.
Mesmo após 800 anos de separação territorial, galegos e portugueses conseguem conversar sem grande esforço, oficializando o portunhol. Guardadas as diferenças trazidas pelo tempo, ainda são idiomas muito parecidos. Às vezes penso serem mais próximas do que a variante brasileira em relação à língua portuguesa. Justificável, afinal a distância não é oceânica, nem tampouco houve uma relação de exploração entre os povos com imposição de uma linguagem e influência de terceiros, quartos e quintos — fazendo referência às populações indígenas, africanas e de imigrantes que compõem o caldo efervescente do nosso brasileiro.
Sem contar a influência direta da língua galega no português falado no Brasil, considerado por pesquisadores o galego tropical. Meu companheiro guarda uma lista singela de palavras ouvidas na Galícia que transportam-no para a sua infância em Minas Gerais. A minha preferida é atopar em galego, topar em mineirês: ambas dão conta de encontrar-se com alguém. A afetividade linguística por si só seria um bom motivo para visitar com frequência a porção noroeste da Espanha, mas há bem mais.
Também tenho um carinho especial pela Galícia porque foi a primeira viagem que fiz após uma espera interminável pelos documentos que regularizaram a minha situação enquanto imigrante recém-chegada a Portugal, em 2019. Para comemorar, compramos tenda e sacos de dormir, colocamos com nossas roupas em duas mochilas, e partimos de trem até Vigo. O Comboio Celta é uma ótima opção para quem quer conhecer as regiões minhota e galega a partir do Porto (e ouvir as pessoas trocando o “v” pelo “b” para lembrar-se de que essa é uma área fronteiriça). O nome não é à toa: é uma das regiões megalíticas mais ricas da Europa, sendo os castros um dos vestígios das povoações celtas.
Da estação de trem, caminhamos até a marítima, onde embarcamos em direção às Cíes, que integram o Parque Nacional Marítimo-Terrestre das Ilhas Atlânticas da Galícia. Montamos acampamento em uma floresta de pinheiros quase em frente à Praia de Rodas — de água calma e transparente, areia branca e finíssima — já apontada pelo The Guardian como a mais bonita da Europa. Uma calmaria mesmo no auge das férias de agosto, comprovando que a Galícia ainda é um destino quase imune ao turismo de massa. A maioria do público é espanhol, ainda que por muitos anos tenham olhado para este território com desdém devido à pobreza de outros tempos. A minha impressão é de que a Galícia é um segredo bem guardado de quem costuma promover a costa mediterrânea, mas ainda mantém para si a “Espanha verde”.
Foram dias deliciosos entre trilhas, banhos de mar gelado, duelos com gaivotas devoradoras de lanches, pôr do sol às 22h e polvo à feira (pulpo a la gallega, em castelhano), o prato carro-chefe da casa: aferventado em um caldeirão, cortado aos pedaços com uma tesoura e servido com azeite de oliva, páprica e sal, sempre acompanhado de um copo de Albariño, a mesma casta dos vinhos verdes de Portugal, ou da Estrella Galicia. Soube bem aquela liberdade simples com gosto de mar.
Tanto que voltei algumas vezes ao longo dos últimos anos à Galícia, que se tornou destino para escapadas de fim de semana ou feriado prolongado. Entre idas e vindas, incorporei outro vocábulo galego ao meu vocabulário, o substantivo feminino de rio:
Ria (...) o mesmo que boca, ou entrada, de rio grande no mar. Usamos desta palavra particularmente quando falamos nas rias de Galiza.1
Além da ria de Vigo, onde se comem as melhores zamburiñas, a vieira típica da região feita na chapa, há a ria de Pontevedra, protegida pelas ilhas de Ons. Logo acima e bem próximo à Padrón, cidade dos famosos pimentões verdes, está a ria de Arousa, que por sua vez abriga as porções insulares de Sálvora e La Toja. Lá, há uma capela toda revestida de conchas, uma solução arquitetônica encontrada por Anselmo Millán no fim dos anos 1940 para resolver a infiltração causada pelas chuvas tão comuns ao Norte da península ibérica entre o outono e o inverno. Ironicamente, escrevo isso enquanto tento acabar com um mofo que resolveu instalar-se em uma parede do meu quarto.
Por fim e antes de virar à direita no mapa para chegar à Corunha, há a ria de Muros e Noya, que produzem ótimos vinhos em solo de ardósia e granito. É neste litoral recortado, onde o mar vive comendo a terra, que está a Costa da Morte. O nome foi dado por ingleses que viram vários de seus navios naufragar em função do mar agitado já quase da esquina do Atlântico com o Cantábrico. Ali, é possível observar o exercício de uma das profissões mais arriscadas do mundo: os pescadores de percebes, um tipo raro de crustáceo muitíssimo apreciado, que custa três vezes mais que a lagosta e tem uma aparência, digamos, peculiar. Parece um dedo de dinossauro com unha e tudo. Ainda não tive coragem de provar a iguaria, mas deste verão não passa.
Lugar de extremos, a Costa da Morte já foi considerada o fim do mundo: finisterrae, onde a terra terminava. Quando lá chegaram, os romanos ficaram impressionados com o espetáculo do sol mergulhando no Oceano Atlântico e acreditavam que era este o portal para o além. Compreensível, mas hoje já se sabe que é apenas o ponto mais a Oeste da Europa. No entanto, a mística permanece.
Finisterra ou fisterra em galego é onde os peregrinos ritualizam o fim do Caminho de Santiago de Compostela, queimando as roupas e os sapatos usados ao longo de vários quilômetros percorridos a pé desde França ou Portugal pelos mais variados motivos — religiosos, espirituais, de saúde, aventura e, claro, turísticos.
No ano passado, estive no ponto de chegada dos caminhantes: a Catedral de Santiago. Sentei em um banco e fiquei observando vários deles. Aos prantos, sorrindo de orelha a orelha, cantando, conversando, gritando, em chamada com alguém — ninguém chegava indiferente e, só de lembrar, já me arrepio toda.
Poucas vezes na vida senti algo tão forte a partir da emoção de outras pessoas. Secretamente, começava ali o meu preparo para também percorrer o Caminho de Santiago, sobre o qual espero um dia escrever em Bom Proveito. Por favor, me conte a sua experiência, caso já tenha sido uma persoa camiñante por lá.
Dentre as várias rotas, penso ter escolhido o Caminho Marítimo Português, o segundo mais percorrido por peregrinos, cujo número só cresce nos últimos anos, e que começa exatamente deste Porto de onde escrevo. Sonho com o dia que vou sair de casa com uma mochila enxuta, talvez com bastões de caminhada, seguindo as placas azul marinho estampadas com uma concha de vieira amarela. Ainda tenho alguns desafios de saúde para superar, mas até lá seguirei me sentindo mais livre cada vez que cruzar a fronteira com a Galícia, aprendendo galego e pensando no que escreveu Guimarães Rosa: perto de muita água, tudo é feliz.
Bo camiño ou bom caminho, seja ele qual for.
FLÂNEUSERIE 💃🏻
[Recomendações de lugares por onde andei, testei e aprovei]
— Mercado de Abastos de Santiago, com destaque para o restaurante moderninho Abastos 2.0, onde seguramente comi o melhor polvo da minha vida;
— Centro Galego de Arte Contemporânea, desenhado pelo Siza Vieira, que menciono em 11 | Beleza é função e vice-versa 💎, em estilo galego e ao redor de um parque;
— Camping O Muiño, onde a animação é garantida e há até campeonato de tortilla;
— Ciudad de la Cultura de Galicia, um complexo do arquiteto Peter Eisenman onde vi a ótima exposição Camiños creativos, mas a programação é sempre interessante;
— Re-read, a livraria low cost de Vigo que incentiva releituras.
SALVO EM ONDE QUERO IR 💾
[Onde ainda não fui, mas salvei na lista para ir]
— Praia das Catedrais, para além da Corunha, com arcos e grutas rochosas que lembram uma igreja;
— O Vixiador, um monumento ao voyeurismo que também alude à vigia do mar pelos romanos;
— Bar do Porto, reaberto depois de anos com desenho do arquiteto David Chipperfield, ganhador do Pritzker 2023, em uma vila de pescadores;
— As casas deste anfitrião no interior da Galícia, lindíssimas e bons pontos de partida para conhecer vinhedos, cânions, termas e até estação de ski;
— Loxe Mareiro, A Sede e A Café, restaurante à beira-mar, bar de vinhos e cafeteria, respectivamente, do mesmo grupo do Abastos 2.0, de Iago Pazos.
UMA ÚLTIMA VISTA D'OLHOS 👀
[Inspiração para espreitar antes de ir embora]
— Latim Love, página que adoro seguir no Instagram desde que vi a máxima Portunhol: uma língua del futuro?;
— Portunhol, uma série documental de sete episódios sobre a fronteira luso-espanhola e os raianos ou raiotos, as pessoas que lá vivem;
— Olivera Dos Cen Anos, hino em música e vídeo feito por C Tangana para o time de futebol Celta de Vigo;
— Mythical Iberia, um dos motivos de eu ainda não ter abandonado o falecido Twitter;
— O Corno, filme vencedor da Concha de Ouro do último Festival de Cinema de San Sebastián sobre uma mulher galega, pescadora e parteira que se vê obrigada a fugir para Portugal em 1970 usando uma das rotas de contrabando.
Graciñas por ler até aqui! Me diz se algo do que escrevi ressoou por aí? Não deixa de me contar se seguiu alguma dica ou se tem alguma recomendação para me dar!
Se você chegou recentemente, deixo as boas-vindas e um convite para ler o arquivo de publicações.
Bom proveito e até a próxima edição – toda sexta-feira na tua caixa de entrada ou no aplicativo do Substack! Caso use esse último, sabia que dá para salvar edições para consultar depois?
Um abraço entusiasmado,
“Caminante, son tus huellas el camino y nada más; Caminante, no hay camino, se hace camino al andar. Al andar se hace el camino, y al volver la vista atrás se ve la senda que nunca se ha de volver a pisar. Caminante no hay camino sino estelas en la mar.” Antonio Machado, poeta andaluz.
BLUTEAU, Rafael (1720). Vocabulário Português & Latino. [S.l.]: Officina de Pascoal da Sylva. 824 páginas
Como é bom ler seus textos e viajar com você, Gabriele!
Estive na Galícia em 2012, numa viagem solo, e me encantei com a beleza singular dos lugares por onde passei.
Também me emocionei ao acompanhar a chegada dos peregrinos à portentosa Catedral de Santiago, onde assisti, ainda completamente enlevada, à missa que os recepcionou. Também conheci as Rias e observei os pescadores e estive nas lindas La Coruña, Vigo e Lugo.
Foi uma viagem tão rica, tão cheia de aorendizados, que me marcou profundamente. Que bom poder revisitar um pouco de minhas andanças por lá, aqui com você!
Parabéns pelos registros impecáveis e por escrever tão bem.
Graciñas! ❤️
Mudei o nome na minha inscrição, para contemplar a mim mesma....