13 | Uma viajante altamente sensível 🤯
Um relato sobre a minha descoberta da alta sensibilidade, como estou aprendendo a lidar com o traço e de que forma viajar para dentro impacta viajar para fora: sentimento é leitura de mundo.
“Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir. Sentir tudo de todas as maneiras. Sentir tudo excessivamente (…)”, Álvaro Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa.
Há um par de semanas fui a um espetáculo imersivo em uma igreja. Meus pais haviam visto um vídeo na internet e, encantados, me pediram que fôssemos enquanto estivessem me visitando. Fiquei com a impressão de ser algo bem pega-turista-instagramável, o que em certa medida acabou se provando depois, mas fomos mesmo assim. A inspiração para o jogo de luzes, as projeções visuais e a sonoridade dentro de um espaço sacro-barroco me convenceu: um poema de uma das personalidades literárias mais conhecidas de Fernando Pessoa.
Declamado parcialmente no início da apresentação, “Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir” integra uma corrente literária modernista chamada sensacionismo. Nela, há uma grande valorização do sentir. E também a defesa de que o ser é a conjugação do indivíduo com o exterior. São versos sublimes, com os quais me identifico na forma de estar na Terra por meio do sensível.
Uma das minhas primeiras memórias é de uma festinha de aniversário. Brincava de dança da cadeira com a criançada, ao som de Sandy e Jr., quando saí correndo aos prantos. Ao ouvir uma das faixas mais tristes do CD, larguei a disputa por um dos assentos para pedir à minha mãe que fôssemos ajudar as crianças que moravam embaixo da ponte. Ela conta que me acalmou dizendo ser só uma música. Não foi a primeira, nem a última vez que se surpreendeu com a minha sensibilidade.
Sempre fui observadora. Atenta ao meu redor usando todos os sentidos, sendo capaz de captar nuances sutis. Fui ensinada a olhar para o mar como diversão, escape e contemplação. Sentia muito as despedidas quando ia visitar minha avó no interior do Rio Grande do Sul. Filha única, gostava de estar em grupo desde que intercalasse com momentos de solitude. Era a primeira a dormir nas festas do pijama. É assim até hoje, em maior ou menor medida.
Mas cresci na virada do milênio, quando a inteligência emocional ainda não estava tão em pauta. Frequentemente lida como sentimental demais, engolia até mesmo o choro visto como bom, porque em geral as pessoas não sabem lidar com lágrimas alheias, muito menos com as próprias. Reprimi demasiado para me encaixar, porque me fizeram acreditar que haveria algum conforto nisso, mas só via as emoções tornarem-se ainda mais rebeldes em rebote. Não raro, somatizava tudo.
Já na vida adulta, alguns anos de análise me ensinaram uma ou duas coisas, principalmente que não havia nada de errado comigo no que toca à sensibilidade. Que eu finalmente poderia baixar a guarda e desatar os nós na garganta, tentando me importar cada vez menos com o olhar alheio. O auge desse período de descoberta coincidiu com os incontáveis confinamentos pandêmicos, quando realmente só era possível viajar para dentro de mim mesma. A poesia passou a me ancorar e acompanhar em definitivo.
Também precisei de muitas outras boias, sobretudo de carne, osso e afetuosidade, para navegar em um mar interno tão revolto. Tive que furar inúmeras ondas tão gigantes quanto as de Nazaré que apareceram diante de mim. Mergulhei, mas também aprendi a voltar à superfície para recobrar o fôlego. Lembro que o álbum Mar de Sophia, uma homenagem de Maria Bethânia à poeta portuense Sophia de Mello Breyner Andresen, era o meu mantra.
Parecia que sentia tudo com o atraso de anos, mas também recuperava a autoconfiança necessária para acomodar a sensibilidade em mim mesma. No meio disso tudo, encontrei uma publicação da
sobre Pessoas Altamente Sensíveis (PAS). Foi a primeira vez que entrei em contato com o termo. Lembro que me senti igual ao emoji do título desta publicação, então fui beber direto da fonte.
A partir da própria vivência, a psicóloga norte-americana Elaine Aron começou a estudar a alta sensibilidade em 1991 e segue até hoje em seus desdobramentos. A pesquisadora clínica acumula incontáveis achados científicos, inclusive em seu livro mais conhecido. Aquelas que fizeram com que finalmente me sentisse validada são as seguintes:
A alta sensibilidade é um traço de personalidade, não uma doença, que acomete até 20% da população mundial;
É algo inato, provavelmente hereditário, e está presente em pelo menos 100 espécies que possuem uma estratégia de sobrevivência de observar antes de agir;
As PAS são mais atentas às sutilezas e conseguem enxergar além da superfície porque os seus cérebros processam informações de forma mais aprofundada;
É mais fácil haver sobrecarga quando se nota muita coisa ou até se sente o que outras pessoas estão sentindo;
Alta sensibilidade não é sinônimo de timidez, nem de introversão.
A importância de nomear o que se sente, quem se é e do que se é feita — e de produzir sentidos a partir disso — nunca deixa de me impressionar. Aliviada, fui criando repertório para cuidar da minha própria sensibilidade. Não pense que caí na armadilha bastante comum de me sentir um ser evoluído por ser assim, mas comecei a entender meus sentimentos como força em vez de fragilidade, ainda que isso seja algo que preciso reafirmar com frequência.
É claro que também houve hesitação. Inicialmente, uma das coisas que mais me preocupou ao entrar em contato com o universo da alta sensibilidade dizia respeito às viagens. Afinal, deslocar-se geograficamente para o desconhecido pode ser uma experiência altamente estimulante e, portanto, exaustiva para as PAS. Mas também é o que mais gosto de fazer. Nesse sentido, eu estaria me sobrecarregando? Hoje sei que depende, principalmente, de como viajo. No fim das contas, não é só o planeta que se beneficia do turismo lento.
“Passe bastante tempo se expondo ao mundo — sua sensibilidade não é algo a ser temido.”
Elaine Aron em Pessoas altamente sensíveis: Como lidar com o excesso de estímulos emocionais e usar a sensibilidade a seu favor.
Olhando em retrospecto, reparo que a alta sensibilidade foi decisiva para marcar algumas das minhas viagens mais especiais. Como quando senti um assombro imenso em um tour astronômico no Deserto do Atacama. Ou na ocasião em que fiquei obcecada pela atmosfera tranquila de Copenhague, como escrevi nesta publicação, em oposição ao enjoo que tive em um campo de concentração nazista. Também me lembro de quando chorei após conversar com um imigrante africano que tocava um instrumento muito parecido com o berimbau em um parque de Parma. Tenho pensado que a vida tem mais brilho para quem se entrega às emoções e passa a ver beleza na oscilação que é estar viva.
Talvez seja por conta das neuronas sin podar, como escreve sobre as PAS a espanhola Rosa Montero. Em seu livro O perigo de estar lúcida, a escritora explica que o amadurecimento cerebral tem início na adolescência e termina por volta dos 30 anos, para que se possa concentrar no que será importante lidar na vida adulta. No entanto, a autora continua, esse processo não é exatamente finalizado em dois casos: nas pessoas com alta sensibilidade e em artistas.
Estou longe de me afirmar como alguém que produz arte, mas tenho cada vez mais a certeza de que a escrita é a minha maneira de expressão no mundo. Preciso dela para me sentir não só criativa como viva, usando as viagens em suas diferentes formas como matéria-prima, combustível e intensidade.
“Cada pessoa precisa aprender a conviver com a sua maleta de oscuridad.”
Rosa Montero no lançamento do seu último livro, El peligro de estar cuerda.
Ordenar os sentimentos em palavras é somente uma dentre as tantas formas possíveis. Mas venho aprendendo que para todas é preciso letramento emocional, exatamente o que promete A vida secreta das emoções, um livro cuja leitura finalizo quase junto à escrita desta edição. Gostei muito de viajar com Ilaria Gaspari por tantos sentimentos, sobretudo de conhecer a filosofia por trás deles. A italiana expõe as nossas semelhanças enquanto seres vulneráveis, defendendo que se enxergar de forma emotiva pressupõe atentar-se às necessidades que nos torna humanos. A mensagem principal que levo na bagagem comigo é esta:
“O que se sente é o que permite conhecer o mundo.”
Ilaria Gaspari em A vida secreta das emoções.
Ser uma viajante altamente sensível implica mergulhar de cabeça nos destinos, fazer pesquisas aprofundadas e descobrir coisas únicas. Valorizar conversas significativas com pessoas locais, partindo sempre de um lugar de curiosidade. Também é captar nuances não tão óbvias e, por isso mesmo, riquíssimas, que geram conversas por muito tempo após o desembarque. Não ter vergonha de chorar ao entrar em contato com algo que arrebata. Encontrar muita beleza pelo caminho, no ordinário e no extraordinário, mesmo que tudo isso pressuponha precisar descansar mais do que a média no retorno.
Sendo sensível é como experimento os mundos, interno e externo, unindo-os numa coisa só.
UMA ÚLTIMA VISTA D'OLHOS 👀
[Inspiração para espreitar antes de ir embora]
— O filme Sensitive: The Untold Story, com a cantora Alanis Morrissette;
— Uma reflexão sobre sensibilidade à beleza, da artista Etel Adnan;
— A tendência do turismo em busca de silêncio;
— Entrevista com a psicóloga Elaine Aron, que descreveu o traço da alta sensibilidade;
— Os últimos lugares na Terra para observar noites verdadeiramente escuras e ver estrelas;
— Um atlas de emoções, que vi na newsletter da
, para deixarmos de ser pessoas analfabetas emocionais;— Os city breaks mais relaxantes para visitar em 2024.
Ei, obrigada pela leitura até aqui! Fiquei na dúvida se partilhava algo tão pessoal, mas decidi arriscar porque realmente acredito que a sensibilidade torna as experiências mais interessantes. É bem importante para mim saber o que você achou, portanto dê um alô!
As seções FLÂNEUSERIE 💃🏻 e SALVO ONDE QUERO IR 💾 voltam na semana que vem, ok?
Bom proveito e até a próxima edição – toda sexta-feira na tua caixa de entrada ou no aplicativo do Substack!
Um abraço com carinho,
“As emoções que habitam dentro de nós tornam-nos humanos. Confiar no que sentimos não significa que somos frágeis ou instáveis, mas vivos, abertos à experiência e prontos para nos maravilhar com o mundo”, Ilaria Gaspari, filósofa e escritora, em A vida secreta das emoções.
Que edição linda, Gabriele! Adorei ler sob sua perspectiva, foi de uma sensibilidade única. Obrigada, inclusive, por me citar ao longo do texto. Seguimos desbravando esse nosso jeito sensível de ser. Um beijo!
Eu não sou muito sensível, sou até racional demais. Mas tenho tentado, especialmente na apreciação de arte mais contemplativa (pintura, escultura, arquitetura), me abrir às possibilidades da emoção. Mas dando o feedback: eu gostei da edição fora do padrão. :)