29 | As viagens que não fazemos ⛔
E que ainda assim nos compõem, além de fazer lidar com o inesperado, mas o que é isso se não viajar?
“As pessoas não fazem as viagens, as viagens fazem as pessoas”, do escritor estadunidense vencedor do Nobel de Literatura em 1962, John Steinback.
Às vezes, ainda me culpo por ter deixado a oportunidade passar enquanto rolava o feed no trabalho. A passagem estava muito barata. Algo como R$ 700 para ir e voltar de Florianópolis a Bangkok. Era um erro do sistema, de certeza. Eu tinha de ser rápida, mas resisti ao impulso.
Não comprei, deixei de ir ao Sudeste Asiático e nem me lembro direito a razão. O destino, por sua vez, nunca me saiu da cabeça.
Alguns anos depois, a viagem tinha tudo para acontecer. Não para aquelas praias paradisíacas e longínquas, mas para outras, do Algarve. Meus pais estavam de mala e cuia para o passeio em família, a hospedagem já estava reservada e os passeios, mapeados.
Mas o inimaginável apareceu no horizonte: uma pandemia. Um, dois, três, mil lockdowns aconteceram e claro que não fomos à Gruta de Benagil, um lugar icônico que desconheço mesmo com cinco anos de residência portuguesa na bagagem.
Ainda durante o tempo de máscaras e álcool em gel, mas durante uma fase menos restritiva, eu e meu companheiro compramos bilhetes para Milão. Dali, alugamos um carro e rodamos pelos lagos e Alpes italianos. Ufa, aconteceu. Mas não realizamos o ponto alto, literal e metaforicamente, da viagem planejada: o passeio de Bernina Express, um trajeto de trem pitoresco pelas montanhas nevadas da Suíça.
Foi uma tortura hospedar-me na cidade de onde os vagões partem sem poder embarcar em um deles por questões burocráticas que limitaram de última hora o trânsito entre os países. Pelo menos a neve caiu e, mesmo assim, dancei.
No ano passado, então, era um sonho: uma viagem de motorhome pelo Parque Natural do Sudoeste Alentejano e da Costa Vicentina com amigos que mais parecem família e que cruzaram o Atlântico para fazermos o percurso dessa forma tão empolgante. Não só no auge do verão, mas na semana do meu aniversário.
As primeiras horas foram imensas: bolo, espumante, parabéns, pôr do sol no mar, noite estrelada e silenciosa, jantar e pequeno almoço na mini-cozinha. Outros amigos chegaram para fazer praia por todo o dia seguinte. Quando sairíamos em direção à próxima parada, descobrimos que o veículo havia quebrado. Em menos de 24 horas de viagem, no meio do nada, o que deu todo um contorno dramático ao resgate.
Não fosse a decisão recente de adotar um cachorro, semana que vem eu estaria embarcando para a Noruega para acompanhar o outro tutor dele em uma viagem a trabalho. No entanto, ainda é cedo para deixar Bitoque com outras pessoas. Ficaremos juntinhos em casa, torcendo para receber fotos de fiordes bem bonitas pelo WhatsApp.
As viagens fazem as pessoas ao passo em que as pessoas também são feitas das viagens que ainda não fizeram. O que não acontece, o que empaca ou o que sai do planejado nos compõem igualmente, principalmente como reagimos a isso, que também diz sobre como viajamos. Sobre como vivemos.
Eu sou tanto os lugares onde já estive, quanto aqueles onde ainda desejo ir. A minha paisagem interior é formada por essa conjugação. Quem fui, quem sou e quem ainda posso vir a ser por meio das mais distintas paisagens, experiências, sensações.
Se existe a anti-biblioteca1, também há de existir a lista anti-destinos, ou anti-viagens, com todos os lugares onde ainda não fomos por qualquer que seja a razão — lado a lado com os livros não lidos.
Apesar de tudo, comi e ainda como muito pad thai, remarquei a viagem com meus pais — não para o Algarve, mas para Mallorca depois de dois anos de espera —, aluguei uma casa para me hospedar com meus amigos e esquecer do motorhome quebrado e planejo assistir à aurora boreal na Lapônia norueguesa quando for possível.
Para viajar, é preciso lidar com o inesperado, encarar inevitáveis frustrações, recalcular a rota. Insistir em desejar. Estar aberta ao que vem, para também ir e vir a ser.
UMA ÚLTIMA VISTA D'OLHOS 👀
[Inspiração para espreitar antes de ir embora]
— Os pontos de ônibus mais bonitos do mundo, e também inusitados;
— Os viajantes estão destruindo as viagens?, uma reflexão urgente da AFAR;
— Unagi, a fascinante e controversa tradição culinária da enguia japonesa;
— Fundão dos imigrantes, a terra da cereja em Portugal também é fértil para quem vem de fora, e pode inspirar outras localidades envelhecidas na Europa;
— Hora de comprar livros de José Saramago, e de quebra ajudar a população do Rio Grande do Sul atingida pela enchente.
Obrigada por ter lido até o fim! Essa foi uma edição mais curta, porque sinceramente não há muito clima para ir além.
A tragédia climática no Rio Grande do Sul segue ocupando os meus pensamentos, intenções e doações. A notícia de que o aeroporto de Porto Alegre deverá permanecer fechado pelo menos até setembro revela a magnitude dos estragos, além de indicar que a reconstrução vai levar bastante tempo. Solidariedade com cada pessoa atingida.
Bom proveito e até a próxima edição – toda sexta-feira na tua caixa de entrada ou no aplicativo do Substack!
Com carinho,
“Se não formos capazes de viver inteiramente como pessoas, ao menos façamos tudo para não viver inteiramente como animais”, José Saramago em O ensaio sobre a cegueira.
Conceito do escritor libanês Nassim Nicholas Taleb em A lógica do cisne negro (2007), um estudo sobre como estamos constantemente à mercê do inesperado.
A história da motorhome quebrada, no primeiro dia de viagem, me lembrou um percalço ocorrido comigo, em terra longínqua de Angola. Trabalhei e vivi em Angola por dois anos enquanto minha família ficou em Portugal. Para as férias de 2015, optámos por uma road trip por Angola, de Luanda ao deserto do Namibe, até onde fosse possível. Logo no primeiro dia de viagem, ao fim da tarde e pouco depois de passar pelo rio Kicombo, passei por um buraco na estrada, danificando duas das jantes do Duster em que seguíamos. Com o por-do-sol a aproximar-se perigosamente, tive tempo para, com a ajuda do carro do meu companheiro de viagem, uma outra familia de Portugueses, procurar alguma alma caridosa queme ajudasse. Encontrei um providencial Angolano que, vivia numa barraca à beira da estrada e que, com grande mestria, conseguiu desamolgar as duas jantes em m3ia hora, apenas com um martelo e uma chave de fendas. Seguimos viagem, pernoitando já noite dentro no Lobito. Nos dias seguintes chegámos a Porto Alexandre ou Tômbwa, o ponto mais a sul que conseguimos, já em pleno Deserto do Namibe, ao Lubango regressando a Luanda, uma semana depois, sãos e salvos. Uma aventura que guardamos na nossa memória como uma das mais belas viagens qhe fizémos, os quatro...
Em 2018 parti rumo ao Alaska, saindo de Florianópolis, de carro (uma Kombi, na verdade). Fiz o plano de completar o trajeto em 1 ano, plano que se revelou um anti-plano ao descobrir que viagens, no fim, não tem meta, que a viagem já começa antes de partir e nunca termina. Entre imprevistos, o maior deles, a pandemia, ao destino físico nunca cheguei. Mas ele vive em mim apenas por eu ter pensado em partir e, principalmente, por ter partido e ter vivido 2 anos de outras aventuras a bordo da Kombi que eu não poderia ter imaginado antes. Com certeza, essa viagem fez parte de quem sou. Adorei o post e estou curioso sobre a referência que você escolheu no início com a pintura da Clarice.