34 | Quando a viagem é feita para ser postada 🤳🏼
Não importa se é boa. E é aí que mora o problema.
“Esteticamente, a abundância atrai as pessoas. A comida pode até ser ruim, mas não importa porque a foto ficou boa, agregando um valor diferente a ela. É uma farsa na qual todo mundo finge acreditar junto”, Valter Palmieri citado pela reportagem Quando a comida é feita para ser postada, importa se ela é boa?, publicada pela jornalista Marie Declercq em O joio e o trigo.
Acredito que cada pessoa viaja por diferentes motivos, quase sempre baseados em seus repertórios de vida, circunstâncias e possibilidades. Há quem busque conhecer outras realidades, conectar-se com a natureza ou simplesmente descansar. Todas as justificativas são válidas e tendem a enriquecer culturalmente quem tem o privilégio de deslocar-se. O que acontece é que o resultado nem sempre é positivo para o local.
Mais recentemente, outro motivador surgiu para desequilibrar ainda mais a equação: viajar para postar. Comecei a pensar mais sobre o assunto quando vi o que uma turista escreveu ao publicar uma foto no clássico relógio do Musée d’Orsay, em Paris: “antes mesmo de planejar a viagem, eu já sabia que queria fazer essa foto”.
Em outra postagem, desta vez na Fontana di Trevi, em Roma, a viajante explicava aos seus seguidores que só havia conseguido aquele clique sem mais ninguém no enquadramento porque acordara antes das cinco da madrugada. Fiquei com vontade de lembrá-la sobre a existência de aplicativos que retiram outras pessoas em uma fotografia. Assim, em uma próxima oportunidade, ela poderia dormir até mais tarde — e abrir mão do fetiche de exclusividade do turista que não quer ver outros turistas, nem mesmo ser visto como um.
Pergunto-me se a pessoa em questão terá aproveitado o museu e a fonte de alguma forma ou se terá apenas procurado o melhor ângulo para a fotografia, sorrido e ido em direção ao próximo lugar instagramável. Arrisco dizer que a lista era grande e o tempo, curto. Então, se a viagem é feita para ser postada, tanto faz se é boa ou não: o que importa é gerar boas imagens, não necessariamente a partir de experiências marcantes, mas que resultem em likes capazes de massagear o ego. Nessa lógica do turismo moderno, sequer é criada uma relação com o lugar, o seu entorno e as pessoas que ali estão, passando tudo a ser banalizado em nome dos cliques — até a própria vida, já que cresce o número de mortes em tentativas arriscadas de selfies.
Sei que o desejo por esses registros não nasce à toa. Tampouco estou imune, já que não só consumo conteúdos relacionados, mas também gosto de compartilhar o meu olhar enquanto viajo. Mas sinto cada vez mais incômodo nisso, às vezes postergando até desistir. Isso porque, ao passo em que as câmeras de smartphones tornam-se cada vez mais poderosas, os algoritmos entregam um ruído ensurdecedor sobre viagens. O feed infinito também contribui com a pasteurização dos destinos escolhidos por quem utiliza as redes sociais como fonte única de inspiração. São a cereja do bolo da nocividade do turismo de massa na medida em que fazem com que nos interessemos pelas mesmas coisas, mas que contraditoriamente busquemos cada vez mais diferenciação.
Talvez você já tenha visto que as autoridades locais japonesas decidiram colocar tapumes em uma vista emblemática do Monte Fuji para afugentar hordas de turistas com mau comportamento1. Na Itália, há tantas medidas sendo tomadas recentemente — desde a proibição de selfies em Portofino, passando pela impossibilidade de sentar na escadaria da Piazza di Spagna até multas de 2,5 mil euros para quem encarar as trilhas de Cinque Terre em sandálias de dedo — que há quem diga que o país esteja terminando o “relacionamento” de tantos anos com quem decide visitá-lo2. Sem esquecer do protesto em Barcelona, onde moradores atiraram água para cima de viajantes em vez do governo, que deveria atuar de forma menos permissiva3.
Todo esse movimento parte de uma insatisfação com o excesso, que é propiciado pelo alcance das redes sociais. E não somente a partir da ação de perfis com audiências estratosféricas. Eu já me deixei levar pelas fotos das férias de um primo de segundo grau ou de um colega do ensino médio. Aposto que você também.
Se estivermos mais atentos a isso, podemos evitar a criação ou o reforço de novos estereótipos, inclusive coloniais: “o exótico tropical” (por exemplo, um turista sozinho numa ruína cambojana); “o olhar do promontório” (Justin Bieber ponderando a paisagem islandesa à beira de um penhasco em um videoclipe que viralizou e fez com que o cânion fosse fechado); e, por fim, “assimilação fantasiada” (uma turista veste um sári e posa com um grupo de mulheres indianas para ter uma foto e exibi-la aos amigos), conforme os achados de Sean Smith no Departamento de Estudos Culturais da Universidade de Tilburg4.
“Podemos começar por questionar o valor daquilo que vemos nas redes sociais e por sermos sensíveis aos significados e implicações que estão abaixo da superfície das imagens. E quando criamos uma postagem, podemos colocar algo ou alguém que não seja nós mesmos no centro. Podemos compartilhar algo que represente o tipo de perspectiva ou história que esperamos que alguém compartilhe sobre nós ou sobre nossa cidade natal.”
Há mais motivos para viajar do que procurar paisagens e pessoas que possam ser exploradas para nosso próprio ganho pessoal, sobretudo em espaços tão rasos quanto o Instagram ou o TikTok. Nunca é demais dizer que gente e lugares não existem para serem consumidos. Ao observar e sermos observados a partir do que se publica nas redes sociais, moldamos nossa forma de ver o mundo e, consequentemente, de retratá-lo e viajá-lo. Resta torcer para que de forma menos antiquada.
UMA ÚLTIMA VISTA D'OLHOS 👀
[Inspiração para espreitar antes de ir embora]
— Vídeo promocional de Oslo, um dos meus preferidos de sempre por trabalhar exatamente com o fato de não ser um destino hypado;
— Que tipo de turista é você, especial da revista Gama que aborda motivações de viagens, TikTok como guia e mais;
— O local onde Mona Lisa supostamente teria sido pintada, resultado da pesquisa de uma geóloga que pode causar overtourism em uma região belíssima;
— Como viajar em segurança durante uma onda de calor, dicas do New York Times para tempos apocalípticos, sendo a siesta a recomendação de que mais gosto;
— Uma desintoxicação digital reuniu 250 pessoas em Amsterdam, e este registro mostra como foi.
Obrigada pela leitura até o fim! Considero um verdadeiro milagre a existência desta edição tendo em vista minha atenção atualmente estar quase toda voltada às Olimpíadas. Mais alguém por aí assim também?
Ainda no clima do assunto de hoje, estou pensando em compartilhar de forma diferente uma pequena viagem de aniversário que farei na semana que vem: por e-mail, na forma de um breve relato e com poucas fotos. O que acham? Se receberem algo fora de horas, portanto, não se assustem.
Bom proveito e até a próxima edição!
Um abraço afetuoso,
“I love borders. August is the border between summer and autumn; it is the most beautiful month I know. Twilight is the border between day and night, and the shore is the border between sea and land. The border is longing: when both have fallen in love but still haven’t said anything. The border is to be on the way. It is the way that is the most important thing.”
Tove Jannson, nascida neste dia há 110 anos.
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c97zxw018v4o
https://www.bbc.com/travel/article/20240529-is-italy-breaking-up-with-you
https://pt.euronews.com/my-europe/2024/07/07/milhares-de-pessoas-protestam-em-barcelona-contra-o-excesso-de-turismo
https://time.com/6989471/travel-influencers-climate-essay/
Adorei seu texto e reflexões Gabi! Tenho pensado muito nisso, porque nas últimas viagens que fiz em algumas praias aqui da Itália, notei pouca gente fazendo registros. Quase ninguém mirando em direção a um selfie. Talvez a maioria dos que estavam próximos a mim eram italianos já acostumados com os locais daqui. Vi muita gente lendo livros físicos, preenchendo palavra-cruzada ou só deitada mesmo estirada ao sol. Senti até um certo constrangimento em pegar o celular para registrar os meus momentos ali. Não vejo as pessoas fazendo fotos dos pratos assim que chegam nas mesas. E tenho vontade de estar mais desconectada ultimamente, embora meu trabalho não permita (tanto assim).
Concordo muito com o que você escreveu. Fui a Machu Picchu há um mês e vi gente realmente arriscando a vida por um clique - fiquei em choque. No ano passado, no Rio de Janeiro, vi pessoas em filas para selfie por 40 minutos. É doido. E agora, na minha viagem pela América do Sul, fico constantemente em crise com a questão de não querer ser turista, mas saber que sou uma 😅🤪