“O fim do mundo é um lugar”, Paul Theroux em O Velho Expresso da Patagónia, livro escrito por um autor fanático por trens que reinventou a literatura de viagem.
Talvez você tenha visto, mas dia desses a terra tremeu aqui em Portugal. No último dia 26 de agosto, foi registrado próximo a Lisboa um sismo de 5,3 na escala Richter. Intensidade moderada, mas bem longe daquele arrasador de 1755, que provavelmente você viu um dos efeitos, se já esteve na capital portuguesa e visitou as ruínas do Carmo.
Pois bem, daqui do Norte do país, nada senti. Já posso dizer que não acordo nem mesmo com um terremoto — terramoto no português de Camões, que duela com a versão de Chico Buarque na minha cabeça. No dia seguinte, perguntei se a minha vizinha havia sentido algo. Me disse que nada muito diferente de quando passa o comboio na frente da sua casa.
Não moro tão perto do trem, mas também ouço os vagões passarem vez ou outra. Especialmente quando a cidade ainda não acordou ou já foi dormir e há alguma das quatro linhas levando pessoas para lá e para cá. É um barulho ritmado, que cresce e diminui aos poucos. Faz lembrar que posso sair de casa, caminhar menos de dez minutos até a estação e embarcar em uma carruagem que vai percorrer um caminho de ferro para me levar até um novo lugar. Dos triviais aos cinematográficos, como o Alto Douro Vinhateiro, uma das linhas férreas mais bonitas do mundo.
Penso que o encantamento acontece em razão da diferença, tendo em vista que o trem é um modal posto de lado no Brasil desde a era JK e as suas políticas automobilistas. Em contraste, sempre sonhei com o Eurail Pass, o bilhete que permite viajar por 33 países, pelo menos em tese. A primeira vez que me senti verdadeiramente viajando pela Europa foi uma década atrás quando usei o trem nas férias do intercâmbio em Sevilha para ir até Cádiz e, depois, pelo Norte da Itália. Ambos os trajetos encontraram ressonância na trilogia previamente e posteriormente assistida: Before Sunrise, Before Sunset e Before Midnight.
No filme, Jesse (Ethan Hawke) e Celine (Julie Delpy) se conhecem no trem para Paris e começam uma conversa que os leva a fazer uma escala em Viena. O resto é história. Literalmente, já que eles estavam à bordo do mítico Expresso do Oriente. Inaugurado em 1883, no seu auge chegou a ligar Paris a Istambul.
Teve a sua rota alterada inúmeras vezes por questões logísticas e políticas até ligar apenas Strasbourg e Viena. Em 2025, voltará aos trilhos de forma mais ampla após ser restaurado pelo arquiteto Maxime d’Angeac, que manteve o desenho original dos loucos anos 20, sem deixar de acrescentar bastante luxo contemporâneo. As fotos são de babar.
Experiências semelhantes crescem a olhos vistos no mundo das viagens, que tem no turismo ferroviário um expoente. O The Presidential, em Portugal, segue a mesma linha: um trem histórico que interrompeu o serviço e que, agora, é retomado com uma pegada gourmet. Há um rodízio de chefs com estrelas Michelin que servem refeições enquanto os passageiros deliciam-se duplamente, com a comida e as vistas. A carruagem segue transportando apenas a elite, é preciso dizer.
Na Suíça, os deslocamentos são mais pé no chão. Cheguei a comprar os bilhetes para embarcar no Bernina Express, mas a pandemia e o seu poder de fechar fronteiras estragaram os meus planos. Outro que calcorreia os Alpes é o Glacier Express, uma das rotas mais lentas do mundo: oito horas, 91 túneis e pelo menos 290 pontes. O trem-bala japonês que me desculpe, mas há itinerários que merecem ser vistos com calma. Os suíços sabem disso, tanto que apostam em vagões panorâmicos.
Caro ou barato, lento ou devagar, o fato e é que viajar de trem é muito cômodo. Não é preciso chegar com antecedência como em um voo e não há tanto controle de segurança, o que torna o deslocamento mais espontâneo — maleável também, apesar do caminho de ferro. Para além da sustentabilidade, ainda é possível admirar a paisagem em movimento. O trem como destino é uma oportunidade para finalmente aproveitarmos o caminho.
FLÂNEUSERIE 💃🏻
[Recomendações de lugares por onde andei, testei e aprovei]
— Trem noturno entre Cracóvia e Praga: uma oportunidade de economizar uma diária de hospedagem e ainda experimentar dormir em uma caminha em movimento e acordar com café e croissant;
— Atravessando o Mar do Norte, entre Copenhagen e Malmo: deslocamento curto por uma ponte incrível que liga duas cidades mais incríveis ainda;
— MiraDouro: não pelo Comboio Presidencial, mas também em um vagão histórico restaurado entre as partes mais bonitas desta que é uma das regiões vitivinícolas mais antigas do mundo;
— Entre Barcelona e Alicante: apesar de atingir velocidades relativamente altas, é possível apreciar o trajeto, que vai quase sempre à beira do Mediterrâneo;
— Linha Celta, do Minho à Galicia: o nome homenageia o povo que uma vez habitou as regiões que dividem a mesma cultura sob vários aspectos, além de ser um passeio bastante agradável entre o Porto, em Portugal, e Vigo, na Espanha, que estimula a cooperação entre empresas férreas de dois países.
SALVO EM ONDE QUERO IR 💾
[Onde ainda não fui, mas salvei na lista para ir]
— The Diyarbakir Express, na Turquia: inaugurado recentemente, mas já foi listado como um dos melhores lugares em 2024, segundo a revista Time.
— El Tren Transcantábrico, na Espanha: liga San Sebastián a Santiago de Compostela em uma semana, com enfoque na gastronomia e possibilidade de explorar a noite nas paradas;
— Expresso Serra Verde, no Brasil: de Curitiba a Morretes passando por montanhas cobertas de Mata Atlântica, o passeio também oferece comida típica e atrações culturais, além do último vagão ser panorâmico;
— Belmond Trains, vários lugares: o portfólio do grupo é extenso e oferece trens panorâmicos em todo o mundo, do Sudeste Asiático ao Peru, prometendo a manutenção do padrão de luxo;
— The Rocky Mountaineer, no Canadá: um cartão-postal dos picos canadenses em uma linha férrea do século 19 e com a possibilidade de avistar ursos.
→ Tem alguma recomendação? Deixa pelos comentários!
UMA ÚLTIMA VISTA D'OLHOS 👀
[Inspiração para espreitar antes de ir embora]
— Notas de Paul Theroux sobre viagens de trem, cinquenta anos depois de ter embarcado em sua primeira viagem de longa duração neste modal;
All travel books are by their very nature dated. That’s their fault, that they’re old-fangled; and it’s their virtue, that they preserve something of the past that would otherwise be lost.
— Jornada pelos Trilhos, edição recente do Globo Repórter sobre trens de longa distância no país no Brasil;
— O pequeno livro do Grande Terremoto, obra sobre o sismo de 250 anos atrás que forjou Lisboa, escrito por Rui Tavares, um autor português que merece ser mais conhecido para além do ótimo podcast Agora, agora e mais agora, também disponível em livro;
— Djokovic é o novo consultor de bem-estar da Aman, o tenista multi-campeão que se recusou a tomar a vacina da covid-19, criticou a desistência da ginasta Simone Biles na Olimpíada de Tóquio e, na sequência, deu um chilique em quadra ao ser eliminado da mesma competição foi agora contratado pelo grupo de luxo para formular retiros, eventos e curadoria focada em wellness;
— Portal do Mundo, nova resenha da minha coluna mensal focada em literatura de viagem desta vez aborda um livro que começou com envio de e-mails durante um deslocamento à vela entre as ilhas vulcânicas que pertencem ao meu imaginário e à Portugal.
Obrigada pela leitura até o fim!
Conta para mim se você já fez uma viagem épica de trem ou se tem planos de embarcar em alguma?
Bom proveito e até a próxima edição,
“Trains are wonderful. To travel by train is to see nature and human being, towns and churches and rivers, in fact, to see life”, Agatha Christie, que escreveu Murder on the Orient Express.
seria tão maravilhoso ter trens aqui no brasil. acho uma viagem muito confortável, bem melhor do que carro.
Apesar de ser mineiro e conhecer tudo quanto é trem, só fui viajar de conhecer o trem-meio-de-transporte depois dos 30. Eu imaginava que a viagem não era confortável, porque via as rodas de ferro sobre os trilhos e pensava que aquilo só podia ser duro. Foi muito bom descobrir o quão macio, confortável e estável é o trem. É o melhor meio de transporte terrestre.