“A visit to a museum should be like enjoying a garden of ideas and stories”, de Kulapat Yantrasast, arquiteto tailandês radicado em Los Angeles.
Conheci a obra de Yayoi Kusama há dez anos em uma exposição no Instituto Tomie Ohtake, quando ainda morava no Brasil. Lembro-me de que me encantaram o uso das cores, a imersão possível por meio de suas instalações e, evidentemente, a repetição das polka dots. Mais do que marca registrada, as bolinhas são uma de suas obsessões infinitas, exatamente como sugeria o título da mostra.
Pouco tempo depois, ganhei o livro Aventuras de Alice no País das Maravilhas, o clássico de Lewis Carrol traduzido por
e ilustrado pela artista japonesa. Um primor que consolidou o trabalho de Kusama no meu imaginário. Mas só fui capaz de dimensionar a sua envergadura alguns anos mais tarde em visita ao Inhotim, o maior museu a céu aberto do mundo, em Minas Gerais.Fiquei algum tempo a observar o movimento de um conjunto de esferas de aço inoxidável que flutuava em um espelho d’água misturado à vegetação. Era Narcissus garden, uma espécie de “tapete cinético” nas palavras da artista, que integra um de seus trabalhos mais conhecidos mundo afora. Ainda que hoje em dia boa parte do público fotografe a si mesmo no reflexo das bolas, a obra foi apresentada pela primeira vez na Bienal de Veneza de 1966 como uma crítica ao narcisismo (e à comercialização da arte).
No último domingo, pude contemplar novamente o Jardim de Narciso. Desta vez em outro hemisfério, na Fundação Serralves, o primo português e em menor escala do Inhotim, que também mescla arte à natureza. Junto das gigantes abóboras amarelas que endossavam a Festa de Outono que acontecia no complexo museológico durante o fim de semana, as obras fazem parte da última e mais abrangente retrospectiva da carreira de Yayoi Kusama, que segue criando aos 92 anos.
Sentei-me para observar as esferas dispostas no lago envolto em uma vegetação cujas folhas lentamente começam a mudar de cor e a cair. Foi quando pude ouvir os comentários de quem passava. Fiquei surpresa ao reparar que alguns grupos acharam graça ao ler a placa que pedia para não tocar a obra de arte. “Que obra de arte?”, perguntavam-se sem parecer conseguir apreciar a instalação.
Penso que a arte não precisa estar emoldurada em rococó e encerrada em salas vigiadas de museu para só então ser validada. Obras podem ganhar ainda mais contorno quando dispostas ao ar livre, ou seja, quando são alcançadas por meio de uma caminhada, contempladas e até interagidas em um jardim, parque ou espaço ao ar livre. Não são poucos os artistas que se inspiram justamente na natureza e podem, portanto, fazerem de seus trabalhos uma continuação da paisagem.
Com Kusama não é diferente: o conceito de auto-obliteração guia a artista a partir de seu desejo em negar a existência individual e unir-se ao infinito, fundindo o individual ao todo e alterando a forma como o espaço é percebido. De 2008, Gleaming Lights of the Souls talvez seja um de seus trabalhos mais evidentes ao redor dessa ideia. A artista cobriu de espelhos as paredes e o teto de uma pequena sala, cujo chão é um espelho d’água acessível aos visitantes por meio de uma plataforma. Também dispôs no pequeno espaço centenas de lâmpadas em formato de bolas de pingue-pongue, que mudam de cor e ritmo em uma toada própria.
Tenho pensado nos museus a céu aberto desde que visitei o Louisiana Museum of Modern Art, que abriga essa instalação nos arredores de Copenhague e tornou-se o meu museu preferido de sempre. A sala de quatro metros quadrados no subsolo contrasta com o andar de cima, um espaço panorâmico com vista para o mar e até para a Suécia em dias limpos como o que fez no início de junho. Lá, os artistas nórdicos Elmgreen & Dragset colocaram um de seus trabalhos da série Powerless Structures: um trampolim que poderia ser usado, não fossem a separação de vidro e a distância para a água.
Ver o mar, o lago ou a vegetação do parque entre as galerias e as esculturas tornam a experiência não só leve, mas também contemplativa, na qual há um intercâmbio entre os trabalhos artísticos, o entorno e as pessoas. De tão integrado à natureza, o percurso pode terminar com um mergulho, já que há um píer criado pelo arquiteto francês Jean Nouvel e aberto para uso do público. Para além de uma interação mais distinta e talvez original com a arte, não consigo pensar em maneira melhor de assimilar tantos estímulos.
FLÂNEUSERIE 💃🏻
[Recomendações de lugares por onde andei, testei e aprovei]
— Fundação Claude Monet, na França: a casa e os jardins que inspiraram o trabalho do pintor impressionista conhecido por retratar incansavelmente ninféias;
— Museu Guggenheim Bilbao, na Espanha: coleção irretocável de arte moderna e contemporânea que extrapola as paredes de aço do arquiteto Frank Gehry e mantêm obras em seu entorno;
— Fundação Calouste Gulbekian, em Lisboa: o acervo surpreendente de um armênio que emigrou para Portugal também conjuga arte à paisagem. No mesmo espaço, acaba de ser reinaugurado o Centro de Arte Moderna com edifício redesenhado para integrar na perfeição arquitetura e natureza;
— NMAC Foundation, na Espanha: espaço com museu dedicado à arte contemporânea que convida artistas a criarem obras para fundirem-se à localização ao ar livre;
— Fundación Pablo Atchagurry, no Uruguai: criada pelo escultor homônimo, possui 25 hectares com trabalhos artísticos em meio à natureza.
SALVO EM ONDE QUERO IR 💾
[Onde ainda não fui, mas salvei na lista para ir]
— Oficina Brennand e Museu Felícia Leirner, ambos no Brasil;
— Jupiter Artland, na Escócia;
— Il Giardino dei Tairocchi, na Itália;
— Château Lacoste, na França;
— Heide Museum of Modern Art, na Austrália.
→ Tem alguma recomendação? Deixa pelos comentários!
UMA ÚLTIMA VISTA D'OLHOS 👀
[Inspiração para espreitar antes de ir embora]
— A minha curadoria do Folio 2024:
— Os governos do Japão e de Cabo Verde estão incentivando o turismo em partes menos conhecidas de seus países por meio de passagens aéreas gratuitas ou com desconto;
— Emily in Paris: ainda faz sentido assistir? Uma reflexão interessante da The New Yorker, que dialoga com esta edição da newsletter ;
— Camões na China e como Os Lusíadas quase se perdeu no oceano, um achado da ótima
;— A décima resenha focada em literatura de viagem sobre um livro pequeno só em tamanho:
Agradeço a leitura até o fim!
O outono vem chegando a passos largos por aqui, o que significa que as caminhadas ao ar livre vão ficando cada vez mais escassas, portanto escrever esta edição já teve um gostinho de nostalgia. Espero que goste e, se puder, me escreva de volta.
Bom proveito e até a próxima! Um abraço afetuoso,
“Since my childhood, I have always made works with polka dots. Earth, moon, sun and human beings all represent dots; a single particle among billions”, Yayoi Kusama.
Super obrigada pela menção da Andanças nos links, Gabriele! <3
eu visitei Inhotim ano passada e saí extasiada de lá, querendo voltar imediatamente porque não consegui ver nem metade do que tem lá.
quando fui, também tinha duas instalações da Yayoi Kusama: I’m Here, But Nothing e Aftermath of Obliteration of Eternity. um espetáculo que amei lembrar lendo seu texto! 💛