48 | Fim de semana em Bordeaux 🍇
A lista bordelaise que também inclui Saint-Émilion, mas que flana longe e vai bem além de vinhos.
Nada me ensina tanto quanto me lançar ao desconhecido com a bagagem do que sou, a espera do que o mundo possa ser.
Martha Gellhorn, viajante, escritora e correspondente de guerra.
Uma hora e meia de avião. É o tempo de viagem entre o Porto e Bordeaux, cidade no sudoeste da França famosa pelos vinhos, o que a torna perfeita para uma escapada de fim de semana. Também é um detour destination, uma das tendências em viagem para 2025 que comprova a fatiga sentida em torno de destinos excessivamente turísticos.
Bordeaux era uma dívida que eu e meu companheiro tínhamos. Era para termos ido em setembro do ano passado, mas acabou não dando certo. Saldamos o encargo imaginário na sexta-feira passada, quando pegamos um voo low cost e chegamos para jantar. Em uma brasserie, a aclimatação aconteceu com boeuf bourguignon para mim, cordon bleu para ele e vinho tinto para ambos, que dispensaram o foie gras servido junto com os pães.
Pensava que dizer “un verre de Bordeaux, s'il vous plaît” seria suficiente para indicar o mais escuro dos vinhos, mas vi que me enganei quando o garçom preferiu confirmar. É que a cidade também produz excelentes brancos e rosés, como vim a descobrir nos dias que se seguiram.
De barriga cheia e mochila nas costas, rumamos a pé para o hotel. Caía uma chuva fina que, nem de longe, afastou os transeuntes da movida em plena noite fria e úmida de inverno. Bordeaux é uma cidade vívida, sobretudo em função dos estudantes universitários. Como a nossa fase de agito já passou há algum tempo, pegamos no sono enquanto assistíamos a um filme francês na televisão.
No dia seguinte, partimos em direção à Place Saint-Michel para ver a vida acontecer em uma das várias feiras e mercados de rua da cidade. Comemos um chocolatine, como o pain au chocolat é chamado em Bordeaux, sob o sol do inverno enquanto ouvíamos duas portuguesas conversarem. Estávamos em um bairro de imigrantes, afinal, não só pelo vários idiomas ouvidos, mas pelo cheiro de especiarias.
Ao continuar a caminhada em direção à parte mais central da cidade, passamos por acaso em uma rua cheia de brocantes, como as lojas de antiguidades são chamadas. Nunca deixa de me surpreender a variedade, a beleza e a preservação dos objetos mantidos ao longo dos anos pelos franceses. Se morasse lá, teria levado comigo um quadro imenso de uma fotografia de montanhas nevadas que aposto que eram dos Pirineus — a cordilheira a sul na divisa com a Espanha presente no imaginário de viagens dos locais, segundo os títulos à venda nas livrarias.
Quando avistamos um grupo de pessoas a olhar para cima, soubemos que havíamos chegado a um ponto turístico de Bordeaux: o grosse cloche, um dos campanários mais antigos do país. O sino grandioso só é tocado em ocasiões especiais e já indicou toque de recolher. Quem desrespeitasse era mantido em prisões existentes ali mesmo. Pergunto-me se os turistas que estavam ali sabiam disso ao posarem sorridentes em frente ao monumento que segredava masmorras. Eu não sabia.
E então precisamos de cafeína, já era hora. Em função do sotaque francês no inglês da garçonete, tive dificuldade de entender que o grão do batch brew que fumegava na minha frente era de Honduras. Senti-me envergonhada por não saber a língua local além do básico, mas logo passou ao lembrar-me de turistas franceses em Portugal que ignoram a língua portuguesa por completo.
Com os olhos mais abertos, adentrei uma livraria na mesma rua. La Nuit des Rois, a noite dos Reis, chamava-se, ao que achei belíssimo. O alfarrabista lia e escutava uma música em um volume tão alto que foi difícil concentrar-me em algum livro, embora uma edição antiga de Marguerite Duras tenha me saltado aos olhos. Acabei focando mais no espaço: exíguo, mas ainda assim cheio de luz natural e de plantas entre as pilhas.
Continuamos flanando por Bordeaux, mas agora tendo de desviar de um montão de gente que aproveitava as promoções de inverno. Na rua de Sainte-Catherine, há várias cadeias internacionais, mas ainda parece existir um equilíbrio com as marcas locais e independentes. Nada de shopping centers, mas pequenas galerias, inclusive a famosa Lafayette. Como não sou muito afeita a compras em viagens, escolhi entrar apenas em duas lojas: na japonesa Uniqlo e na francesa Sézane, que deu uma aula de experiência do cliente ao servir chá e madeleines para quem esperava para entrar.
De mãos abanando, mas não por muito tempo, fomos até um bar de vinhos para o apéritif. Para acompanhar queijos franceses e bascos, pedi um clarete biodinâmico do Château Lestrille, podem anotar este nome, para honrar a tradição dos vinhos de Bordeaux. Na Idade Média, os vinhos da cidade eram designados assim ao serem exportados para o Reino Unido, porque tinham uma cor mais clara em função da fermentação de uvas de película mais escura com uvas de película mais clara. O nome ficou, apesar dos vinhos bordelaises terem se tornado tão escuros e profundos, donos de uma coloração que nomeia muitas outras coisas.
Na sequência, a ideia era comer um entrecôte em um restaurante famoso ali perto, mas a fila era imensa tal qual a nossa fome. A galette em uma banquinha simples de rua não decepcionou, diferentemente do canelé de sobremesa. Eu já havia experimentado o doce típico de Bordeaux em Copenhagen, em uma versão mais suave, então o contraste com o original me causou estranhamento. Fiquei pensativa sobre a questão da expectativa em viagens.
A digestão foi feita em outra livraria, desta vez uma de novidades. Na fachada antiga, um cartaz anunciava a presença da escritora franco-marroquina Leïla Slimani dali a poucos dias, o que me fez lamentar o desencontro. Pude ouvi-la no fim do ano, em Braga, e me deu ainda mais vontade de ler todos os seus livros. Para comprovar o hábito de leitura dos franceses, que são até meme por serem vistos lendo em todo lado e a qualquer momento, passamos por uma feirinha de rua só de livros em frente à catedral, que é imensa em estilo neo-gótico, fazendo lembrar a de Colônia, na Alemanha.
Na sequência, faríamos um walking tour, não fosse o cancelamento por falta de quórum. Típico de viajar em baixa temporada. Confesso que não achei ruim, assim pude voltar para o hotel sem culpa, após um pequeno detour em uma galeria de arte junto de uma boulangerie gentilmente apresentadas por uma argentina. Depois, descobri que a siesta é comum naquela região francesa, talvez apenas no verão, mas é sempre verão para quem está a passeio. Em Bordeaux, como os bordelaises. Mais tarde, um Lillet no bar do cinema de rua, que exibia Ainda estou aqui em vez de Emilia Pérez, seguido de uma massa com trufas negras e cogumelos encerraram a noite.
O domingo começou como tem de começar: por entre as bancas de um mercado público. Como estávamos naquele mesmo quartier de imigrantes, aproveitamos para matar as saudades do Marrocos com um café da manhã meio árabe, meio francês. A partir de agora, passarei a usar cominho na minha omelete tal qual mãe e filha serviram a nossa acompanhada de baguette, manteiga, geleia, capuccino e suco de laranja. Ao redor, as barracas mais disputadas eram as de pães e croissants, chamuças e, acredite se quiser, ostras e camarões consumidos ali mesmo, antes das 10 horas da manhã. Muita gente também aproveitou para levar um ramo de tulipas frescas para casa.
Dali, seguimos novamente para a praça Saint-Michel, mas agora para perambular pela feira de velharias. Caminhamos mais um pouco até chegar à beira do rio Garonne, que divide as regiões vinícolas do sudoeste francês em um emaranhado de difícil compreensão. Seguimos pela margem ao passo que a neblina da manhã ia se desvanecendo até o céu ficar completamente azul na altura da belíssima Pont de Pierre, encomendada por Napoleão. Ali, Bordeaux revelou-se para mim parecida com Paris e, portanto, entendi por que parisienses trocam cada vez mais a capital pelo aconchego da cidade menor, mas tão sofisticada quanto.
Admirados com a elegância neoclássica dos monumentos à nossa esquerda, seguimos até o Miroir d’eau, um imenso espelho d’água que duplica a vista para a praça que surge por detrás. Isso para quem visita Bordeaux fora do inverno, quando o equipamento está seco devido à manutenção. Embrenhamo-nos novamente pela cidade atrás de um docinho feito em homenagem às dunas que existem junto ao Oceano Atlântico ali perto. Um sonho, ou melhor, uma choux.
Recarregados de açúcar, caminhamos até as ruínas de um anfiteatro romano. E, já que estávamos por ali, entramos no jardim público de Bordeaux. Para minha surpresa, a grama estava bem verdinha para a estação em questão. Franceses sabem mesmo de jardinagem. À saída, avistamos uma estação de bicicletas mantida pela rede de transportes da região metropolitana da cidade.
Não sabíamos até chegar, mas além de caminhável, Bordeaux é uma cidade perfeita para pedalar. E, então, fomos de vélo até a margem do rio novamente, mas em outra direção: La Cité du Vin, um complexo museológico, interativo e imenso sobre os vinhos do mundo todo. Preferimos admirar só do lado de fora: os dias estavam muito bonitos para não estar na rua.
Não à toa, a esplanade do Les Halles Bacalan, um mercado de comidas ali ao lado, estava completamente lotada ao almoço. Longe de ficarmos intimidados, demos um giro para fazer boas escolhas gastronômicas e matar a fome. Dividimos mesa com um casal de peruanos com quem trocamos pitacos sobre a comida e contatos. Começamos com ostras, servidas com pão, manteiga e limão siciliano, junto de um vinho branco de Bordeaux magnífico do Château Landereau. Depois, experimentamos o pâte-en-croute de pato com pistache, que não me fisgou. Ainda bem, porque sobrou espaço para o que veio a seguir: um queijo Mont D’Or assado com mel e cebola, praticamente um fondue. Sobrou, mas passeamos o resto do dia com a caixinha de madeira em mãos, porque seria um crime deixá-lo para trás. Acumulamos experiência em carregar comida nos passeios desde 2021, quando andamos quilômetros com uma caixa da pizzaria napolitana Da Michele. Após esses momentos, a chegada ao hotel é ainda mais gloriosa.
À saída do mercado, preferimos alugar uma scooter em vez da bicicleta a fim de dar um giro maior antes do pôr do sol, que nesta época do ano é cedo. Por entre construções navais incríveis, inclusive residenciais, fomos até uma antiga base de submarinos da Segunda Guerra Mundial, que hoje recebe exposições imersivas de arte.
Mais adiante, cruzamos o rio para conhecer uma Bordeaux mais moderna, com prédios residenciais influenciados pela arquitetura nórdica. Um contraste bonito com o skyline antigo do outro lado. O coração desta área, que se chama Bastide, é o Darwin Écosystème, um centro cultural que abriga restaurantes, lojas, coworking depois de ser um quartel. Atrai de skatistas a ambientalistas, como comprova a livraria lá dentro. Algo próximo da LX Factory, para quem já esteve em Lisboa. Tomamos um café, vimos as crianças brincarem, entramos em uma cabine antiga de fotos automáticas e comemos um crepe de manteiga e caramelo salgado.
Com o sol se pondo na outra margem do Garonne, caminhamos novamente até a Pont de Pierre, passando por uma biblioteca ao ar livre e não sem antes observar cachorrinhos brincando para morrer de saudade do nosso. Paramos por um momento para admirar uma revoada de andorinhas em um céu completamente alaranjado. Cansados, voltamos ao outro lado da cidade para jantar em um bistrô e fomos de clássicos: sopa de cebola servida com uma massa folhada levada ao forno e magret de Canard. O pastis de Bordeaux ajudou na digestão, sem a menor dúvida.

O último dia de viagem começou cedinho com um café da manhã no próprio hotel, o que quase nunca faço por preferir conhecer outros lugares, mas por vezes a praticidade vence. De mochilas nas costas prontas para serem deixadas em um bagageiro, caminhamos até a estação de trem de Bordeaux, belíssima, para ir até Saint-Émilion, uma comuna da Nova Aquitânia com dois mil anos de história.
Era para ser uma viagem de pouco mais de meia hora, mas a saída da gare atrasou por problemas que até agora não entendi bem. Quase ninguém falava inglês, o que me deixou um bocado frustrada. Mas a irritação passou ao caminhar da estação da aldeia medieval até o seu centrinho, por entre vinhedos e castelos, os châteaus produtores de vinho. Saint-Émilion estava quase vazia, dava até para ouvir os passarinhos e, vez ou outra, o sino da igreja monolítica escavada na pedra.
É precisamente o calcário do promontório rochoso onde a cidade foi construída que dá a personalidade aos vinhos locais, geralmente feitos de Merlot combinada com Cabernet Franc e Cabernet Sauvignon, ou mesmo Malbec. Embora usem mais ou menos as mesmas castas, tendem a ser mais suaves que os de Bordeaux devido ao microclima. Quem comprovou a minha percepção foi um luso-francês que nos serviu uma tábua de queijos e presuntos ao som de pimba e ainda embalou uma sandes para comermos na viagem de volta ao Porto.
Antes do caminho de volta, ainda pudemos provar o macaron próprio da cidade, uma receita de Nadia Fermigier que data de 1526. Ficamos poucas horas em Saint-Émilion, mas o suficiente para comprovar a delícia que é desviar das rotas principais, ir no contra-fluxo e descobrir os nossos próprios caminhos. À bientôt!
FLÂNEUSERIE 💃🏻
[Recomendações de lugares por onde andei, testei e aprovei]
— Librairie Mollat: enorme, com múltiplas categorias e com uma fachada de 1896;
— Brasserie Bordelaise, Michel's e Osteria Palatino: são ótimas opções para comer, os dois primeiros franceses e o último italiano com uma pegada local;
— Cinéma Utopia: um cinema de rua independente onde já foi uma igreja, com vitrais, bancos de madeira e afrescos religiosos que dão ainda mais interessância à programação;
— Le Bar a Vin: bar de vinhos situado dentro de uma escola de enoturismo, lindíssimo e em conta;
— Dunes Blanches: a tal choux levíssima que homenageia dunas.
SALVO EM ONDE QUERO IR 💾
[Onde ainda não fui, mas salvei na lista para ir]
— Les Sources de Caudalie: a famosa marca de cosméticos francesa tem SPA, hotel e restaurante nos arredores de Bordeaux;
— Arcachon e Cap Ferret: duas localidades litorâneas muito próximas da cidade;
— Bassin des Lumières: um centro de arte imersivo em uma antiga base de submarinos da Segunda Guerra Mundial, que marcou a região da Aquitânia;
— Mondrian Bordeaux Les Carmes: novo hotel, SPA, restaurante e château;
— Château Franc Mayne, Château Canon e Château Pavie: duas das propriedades vinícolas mais interessantes na região de Saint-Émilion, a primeira dela com galerias subterrâneas que caracterizam a fundação da aldeia medieval.

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UMA ÚLTIMA VISTA D'OLHOS 👀
[Inspiração para espreitar antes de ir embora]
— Um botão de aurora boreal, disponível em um hotel na Islândia, que acorda os hóspedes que querem ver as luzes do Norte;
— O fenômeno tsundoko, e a normalização de acumular livros que talvez nunca sejam lidos;
— Han Youngsoo, o Henri Cartier-Bresson da Coréia do Sul;
— Pasta or chicken?, como a refeição de bordo já foi um dia, muito distante de macarrão cozido além da conta e frango esturricado;
— Fanny pack, uma pochetinha perfeita para viajantes que ando de olho, de uma marca que carrega a cultura de montanha da década de 70.
Muito obrigada por ler desta edição mais longa! Espero que você tenha gostado do passeio a Bordeaux e que as dicas sejam úteis em algum momento.
Da minha parte, estava com saudades de escrever relatos de viagem. Bom proveito e até a próxima edição!
Bisous,
“A nossa situação é, no meio das avalanches, tentarmos um paisagismo”, Vasco Gato, poeta português.
Que delícia de texto! Amei!
Gabi, que delícia conhecer Bordeaux sob o seu olhar. Amei fazer essa viagem.