37 | A praia da sua infância 🐋
Por que provavelmente você tenta revisitá-la sempre que está à beira-mar. E mais dicas de viagem a um arquipélago siciliano para brincar de verão.
“Se abrissem as pessoas encontrariam paisagens. A mim, se me abrissem, encontrariam praias”, Agnès Varda no seu filme autobiográfico Les Plages d'Agnès.
Setembro nunca chega só. Costuma trazer a tiracolo uma nostalgia bastante específica, especialmente para quem dança o ritmo bem marcado das estações. Neste ano, descobri que a deprê pelo fim do verão tem nome: September Scaries.
A minha estratégia para enfrentá-la é a mesma desde que passei a viver acima da linha do Equador: entregar-me de corpo e alma aos três meses mais soalheiros. Para que não haja qualquer sombra de dúvida sobre ter aproveitado ou não. Carregada de memórias estivais, permito que o outono chegue até mim aos bocadinhos até que sou toda inverno.
Ainda não acabou, mas já posso dizer que a estação que chega ao fim no domingo com o equinócio foi marcante. Pela primeira vez em muito tempo, senti o gosto das férias de verão no Brasil quando se é criança. Foi em julho, quando viajei até a Sicília, a pedra chutada pela bota italiana que faz as vezes de ilha maior do Mar Mediterrâneo.
Ignorei os pensamentos intrusivos — de rodá-la por completo e até de conhecer as partes mais disputadas graças à segunda temporada de The White Lotus — para concentrar-me apenas em um arquipélago pequenino situado próximo a sua porção ocidental. Saí do avião, peguei um arancino ainda no aeroporto de Trapani, um ônibus e um ferry para chegar à Favignana, a maior das Ilhas Egadi, cujo formato de borboleta rodeada de turquesa avistei ainda de cima.
Não foi a paisagem mediterrânea que me levou de lá para Bombinhas, a enseada catarinense que me viu crescer. Há muito contraste entre cactos e Mata Atlântica, afinal. Foram aspectos mais sutis que fizeram com que finalmente encontrasse a praia da minha infância em praias onde escolhi passar férias. Pude, então, brincar de verão.
Na Sicília, andei só de bicicleta, exatamente como pedalava entre a minha casa e a praia. Saí do mar sempre murcha de tanto nadar em um mar calmo e quente, igual quando minha mãe mostrava a minha pele irregular para justificar que já estava na hora de irmos embora. Até uma leve queimadura de água-viva eu tive, só para comprovar que vinagre ainda funciona para aliviá-la. Naveguei de uma ilha a outra, mas desta vez quem segurou o leme foram as minhas próprias mãos.
Me camuflei entre locais exatamente como fazia quando ia à praia com amigas que ficavam quando eu partia todo domingo à noite. Comi uma porção de lula frita muito parecida com aquela servida no Olímpio, onde toda refeição era arrematada com picolé de maracujá ou brigadeiro. Cannoli e granita foram boas substituições durante aqueles dias infantis, cuja doçura só era quebrada pelas ondas salgadas.
Fiz a siesta, só faltou ser na rede, para depois ir à praia de novo e acrescentá-la à cartografia do meu corpo feito de litoral. Terminava os dias com os olhos vermelhos de tanto mergulhar no mar, que de tão cristalino podia ser visto profundamente. Como a escritora espanhola Rosa Montero diante de uma baleia, tive momentos oceânicos1 mesmo sem estar em um. Isso que dá carregar o Atlântico onde quer que vá.
Disso, veio a certeza: toda ida à praia envolve um tipo de resgate de algo que ficou para trás em uma praia da infância. Como se a intenção fosse a de prolongar aquele período que, de fato, nunca acaba. Um mecanismo parecido como quando se gosta de uma comida porque faz lembrar do tempero da avó.
Talvez você esteja se perguntando se eu já havia experimentado algo semelhante em outras praias, inclusive mais próximas de mim. Eu mesma me perguntei. A resposta é não, porque esta é a magia das viagens: estão bem longe de proporcionar transporte apenas geográfico. Afetivamente, conjugam as paisagens de dentro e de fora.
FLÂNEUSERIE 💃🏻
[Recomendações de lugares por onde andei, testei e aprovei]
— Cala Rossa, Bue Marino, Cala Azzurra, Scivolo, Marasolo, Cala Rotonda e Cala Faraglioni estão entre as melhores praias de Favignana, enquanto Cala Fredda, Cala Minnola e Cala Tramontana são as mais incríveis de Levanzo;
— Alberti Rent para alugar bicicletas ou scooters, Brezza Marina para reservar o seu próprio barquinho sem licença náutica ou embarcar em uma excursão;
— Pasticceria FC para comer o melhor e maior cannolo siciliano, Stravecchio para conhecer queijos, charcutaria e vinhos naturais da região, Trattoria La Bettola para experimentar as melhores pastas locais, Cala Cala para maravilhar-se com o poke siciliano (peça o de atum!) ou com panino de polvo, Trattoria La Pinnata para nunca mais se esquecer do couscous de peixe, Cibo Chiacchiere e Vino para um tagliere ao pôr do sol com vista para as outras ilhas e Camarò Beach Club para um almoço leve com piscina natural;
— Miramare Residence caso esteja com o orçamento apertado, Dimora Cala del Pozzo se tiver a possibilidade de hospedar-se num lugar mais sofisticado;
— No continente que não é continente, o Parque Arqueológico de Segesta, Érice, com parada obrigatória na Pasticceria Maria Grammatico, e Trapani, nem que seja só para comer na Cantina Siciliana, são passeios complementares ao arquipélago.
SALVO EM ONDE QUERO IR 💾
[Onde ainda não fui, mas salvei na lista para ir]
— Marettimo: a terceira, mais afastada e selvagem ilha do arquipélago Egadi, palco no verão de um festival de cinema italiano e para onde quase fui passear com Pippo, mas me deixei levar pelo dolce far niente;
— Kasbah Mazara del Vallo: a materialização da herança árabe na Sicília, em uma cidade famosa pelos seus camarões gigantes e avermelhados;
— San Vito lo Capo: o que parece ser uma das praias mais bonitas da parte ocidental da Sicília, a qual tive um gostinho com a Baia di Cornino ali perto;
— Riserva Naturale Orientata dello Zingaro: um parque natural a ser descoberto por meio de trilhas, na primavera ou no outono em função das altíssimas temperaturas, ou passeios de barco;
— Tonnara di Scopello: praia, hotel e museu que comprovam a tradição da pesca de atum na costa siciliana. Como é muito procurado, é melhor visitar na baixa temporada.
→ Tem alguma recomendação? Deixa pelos comentários!
UMA ÚLTIMA VISTA D'OLHOS 👀
[Inspiração para espreitar antes de ir embora]
— Busiate al gambero rosso, um vídeo hipnotizante de uma nona siciliana fazendo uma receita clássica da ilha, cremosíssima sem usar nada de creme de leite e aproveitando o máximo do máximo dos ingredientes;
— Livros que têm a praia como pano de fundo, uma ótima seleção da livraria Megafauna;
— EDP Art Reef, a última obra do artista português Vhils, desta vez de baixo d’água no Algarve e eleita pela revista Time um dos melhores lugares de 2024;
— Praias para o veroño no Mediterrâneo espanhol, o verão no outono que promete ser ainda melhor, já que está livre de aglomerações;
— La guitarra flamenca, o primeiro filme dirigido por C Tangana, que estará em cartaz no festival de cinema de San Sebastián e nas telonas do mundo todo até o fim do ano.
Obrigada pela leitura até aqui!
Enquanto esta cartinha era revisada e agendada para viajar até você, caíam gotas grossas de chuva ao meu redor. São as águas de março setembro fechando o verão — e apagando os focos de incêndio que arrasam Norte e Centro de Portugal.
Bom proveito e até a próxima edição!
Com carinho,
“A poesia adora andar descalça nas areias do Verão”, Eugénio de Andrade, poeta português homenageado na última Feira do Livro do Porto, um evento que marca o início de temporadas de viagens pelos livros.
“Instantes de aguda e transcendente intensidade, quando seu eu se apaga e a pele, fronteira do seu ser, se dissipa, de modo que você parece sentir as células do seu corpo se expandirem e se fundirem com as outras partículas do universo”, segundo o criador do termo sentimento oceânico, Romain Rolland. Sigmund Freud, com quem o escritor francês correspondeu-se, considera um vestígio fragmentário de um tipo de consciência possuída por uma criança que ainda não se diferenciou de outras pessoas e coisas.
1. Estive na Sicília em finais de Maio e início de Junho. Fui, confesso, mais pela herança Mediterrânica do que pelas praias. Vim com a certeza de que voltarei, tal a paixão que despertou a ilha, cruzamento de gentes de todas as paragens do Mare Nostrum.
2. A praia da minha infância foi a Costa Nova, em tempos que a ria beijava as casas coloridas de madeira, que os pescadores alugavam aos forasteiros naqueles meses de verão. Era já a do meu pai, que ali passava temporadas num barraco de madeira de pescadores. Todos os anos descia a Serra do Caramulo em direcção a Águeda, e daí até Aveiro e à velha ponte de madeira que fazia a travessia para a Barra, com uma excitação infantil difícil de conter. Não consegui reproduzir a experiência com os meus folhos. Nunca nos detivémos num praia só, diria que o mais próximo que estivémos, foram os anos passados em Manta Rota, no Algarve ou, mais tarde no INATEL de Albufeira.
Fiquei, no entanto, curioso com Favingana, disposto a incluí-la no meu regresso à Sicília, algures num futuro próximo;
3. Admiro profundamente C. Tangana com seu sentido estético muito próprio e autenticamente Espanhol. O Flamenco, esse é paixão ardente que cresce com a idade. Não deixarei de ver o documentário, que consta já na minha wish list. Retribuo a sugestão, com a faceta menos conhecida de Rosalia, presença essencial na minha playlist.
https://youtu.be/XxKzdNt8kIc?si=NcJ_03EEcO3ka2cE
4. Cofesso que me deixei levar pelo seu post, não cuidando de deixar um breve comentário apenas. Sinal de que de facto gostei muito de seu relato, como gosto do seu substack. Qua assim continue.
Que lindo esse texto! Foi esse filme da Agnès Varda que me fez me apaixonar por ela.