39 | O olhar precisa viajar 🧳
A potência da mirada estrangeira, fotografia de viagem e o primeiro aniversário desta newsletter.
«O olho nunca vê a si mesmo, e sim um espelho», Joseph Brodsky, poeta russo ganhador do Nobel de Literatura em 1987, no livro Marca d’água, um ensaio sobre Veneza.

De tempos em tempos, ajusto o olhar. Faço isso no ir e vir das viagens. Mudar a localização também altera a perspectiva. Para regular a minha própria lente, o destino pouco importa.
Basta ter olhos de viajante, que se perdem ao flanar para depois encontrarem-se, buscam o contraste sem deixar de adaptarem-se às mudanças que encontram pelo caminho. O segredo parece simples, mas não é: insistir em viver com presença, curiosidade e, sobretudo, encantamento.
Quando se é imigrante, parece-me que tal ajuste de foco é melhor conseguido ao visitar a própria terra natal. Como se o corpo, esse que carrega os olhos, precisasse olhar para o que antes era antes corriqueiro, mas que agora deixou de ser. E só então enxergar. Como um reset do diafragma humano, renovar o ato de maravilhar-se a partir do que é familiar.
Foi o que fiz nas últimas semanas. Depois de quase dois anos existindo fisicamente apenas deste lado do Atlântico, o verde da sua própria mata apresentou-se ainda mais verde aos meus olhos. Primaveril, a floresta vestiu-se para ser vista, e para que eu me visse nela. Ao cruzar o mesmo oceano para voltar à casa — o que quer que isso seja —, tive o mesmo assombro, só que outro: o azul dos azulejos é mesmo azul, ainda mais sob a luz deitada de outono.
«A viagem mais para fora é a viagem mais para dentro.»
Paulo Leminski, poeta brasileiro, em legenda escrita para um desenho do também poeta Matsuo Bashō.
Se viajar é olhar, o olhar precisa viajar1. Encontrar-se em tantas cores forem precisas. Aumentar o repertório até onde a vista alcança, para que alcance cada vez mais. Enxergar só o que a gente pode enxergar. Apreender primeiro. Depois, com sorte, mostrar ao outro o que se viu.
Nesta sanha de olhar, surge a fotografia, essa tentativa de materializar o deslumbramento a partir do que é contemplado, tornando-o ainda mais real. Para mim, é não só construção de memória, mas produção de sentidos a partir das experiências em um mundo cada vez mais acelerado. Ao mesmo tempo, os registros fazem as vezes de pontes para o passado e para o futuro a partir do que se sente ao fitá-los. Fotos são entre-mundos.
Periodicamente, fascinam-me as “memórias” que chegam na forma de notificação de alguns aplicativos, tal qual garrafas lançadas ao mar que vêm dar à beira em dias quaisquer. Veja onde você estava há cinco anos. Com outro olhar, quase sempre penso coisas diferentes daquelas que pensava à altura. Tempo rei.
A potência do olhar estrangeiro, esse tão desacostumado ao objeto em foco, é o que alimenta uma de suas vertentes, a fotografia de viagem. Capa da National Geographic em 1985, a menina afegã, aquela dos olhos verdes assombrados fotografados por Steve McCurry, é o mais clássico exemplo. Uma das últimas notícias sobre ela, que se tornou símbolo dos refugiados, é de que finalmente tem uma casa.
A produção dos fotógrafos de viagem continua prolífica anos depois, inclusive com premiações específicas, a despeito da influência das redes sociais na forma com que se olha e fotografa o mundo: mais ensimesmada e instantânea do que nunca. Chegam a ser contraponto e, por isso mesmo, inspiram a olhar bem cada instante. Ver fotografias será sempre um mistério.
💃🏻 FLÂNEUSERIE
Recomendações de lugares por onde andei, testei e aprovei
— Centro Português de Fotografia, no Porto, em um prédio que já foi um presídio;
— Victoria and Albert Museum, em Londres, que mantém pelo menos uma exposição dedicada à fotografia;
— Maison de la Photographie de Marrakech, no Marrocos, praticamente a história de um país documentada;
— Museum für Fotografie, em Berlim, que exibe um acervo desde o século 19;
— Museu da Imagem e do Som, em São Paulo, sempre com exposições impecáveis que também abarcam frames em movimento.
💾 SALVO EM ONDE QUERO IR
Onde ainda não fui, mas salvei na lista para ir
— Fotografiska Museum, em Estocolmo;
— Tokyo Photographic Art Museum, no Japão;
— Fotomuseum Winterthur, na Suíca;
— Aperture Foundation, em Nova Iorque;
— Paris Photo Fair, na França.
→ Tem alguma recomendação? Deixa pelos comentários!
👀 UMA ÚLTIMA VISTA D'OLHOS
Inspiração para espreitar antes de ir embora
— Yutori, a palavra japonesa que dá conta do hábito de chegar antes a um lugar para ter tempo de olhar ao redor;
— Gisele Bündchen ou Mônica Vitti? A nossa top model foi fotografada por Steven Meisel para uma coleção da Zara com o estilista italiano Stefano Pilati;
— O sonho americano, reportagem feita ao longo de 3,8 mil quilômetros percorridos em motorhome nos Estados Unidos no contexto amargo das últimas eleições. Fez lembrar do filme Nomadland, com a incrível Frances McDormand;
— Sussurro, a hospedagem em Moçambique que está redesenhando de forma consciente e visualmente belíssima em torno do que significa viajar à África;
— Chef's Table Macarrão e mulheres que cozinham e escrevem, dica três em um de série, receita e livro.
Ei, obrigada pela leitura! A pausa durante o mês de outubro não foi planejada, mas teve de acontecer. Às vezes, quase sempre, a vida se impõe, você deve saber.
E, por falar em vida, no último dia 20 esta newsletter completou um ano! A comemoração aconteceu com um banho no meu mar. Daí veio inspiração para planejar as novidades que, em breve, vocês terão acesso em primeira mão!
Por enquanto, fica o meu enorme agradecimento pela sua presença aí do outro lado, que dá contorno a tudo. Mal posso acreditar que já somos cinco vezes mais pessoas do que há um ano.
Por hoje, é tudo. Vou retomando o ritmo aos poucos. Bom proveito e até a próxima edição.
Um abraço cheio de saudades,
«Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado», Antonio Cícero, poeta brasileiro que se despediu fazendo poesia.
Frase atribuída à francesa Diana Vreeland, que dedicou a carreira à moda nos Estados Unidos.
Tou numa tentativa de ficar em dia com as newsletters antes do ano acabar, então passadinha rápida para lhe parabenizar pelo primeiro aniversário da Bom Proveito!
De viagem até Lindar, que será a minha casa por esta semana, tento por em dia as minhas leituras de Substack. Chegando ao "Bom Proveito" não resisto, mais uma vez, a responder-lhe.
I
Ultimado a minha mochila de viagem, ao escolher o livro que me havia de acompanhar nesta jornada, peguei no "Regressos", de Manuel Teixeira Gomes, sobre saudades e exílio. O meu olhar cruzou-se, no entanto, com "The High Mountains of Portugal", oferecido por uma amiga muito querida - a mais querida de todas as minhas amigas - que hoje faz anos. Não resisti a tão poética coincidência e o "Regressos" voltou ao monte dos livros a ler por mais algumas semanas. E, foi ao pegar no livro de Yann Martel, que caiu do seu interior uma foto de um dia muito feliz, o do casamento de S. a minha amiga, com M. Bastou essa fotografia pra que uma sucessão de imagens luminosas me tomassem de assalto, começando pelo dia em que a conheci, em meados dos anos 80, até aquela manhã em que, na sua cozinha em Edimburgo, me ensinou a fazer porridge enquanto o sol frio de Janeiro nos emprestava, aos dois, um brilho feliz.
Sim, é esse o poder de uma fotografia, o de evocar quase uma vida inteira em poucos
minutos. E de nos colocar um largo sorriso no rosto…
II
Registei a Maison de la Photographie de Marrakeche para visitar no fim do ano, e constateii o meu falhanço por não ter visitado o Fotografiska de Estocolmo, de onde regressei há uma semana.
Sugiro o espaço "Narrativa” em Lisboa, que tenciono visitar em breve…