40 | O caminho do chá 🫖
O dia em que participei da colheita em uma plantação de Camellia sinensis. E lugares para viagens tea-rrifics em torno desta bebida milenar, filosófica e hospitaleira.
“Cada xícara de chá representa uma viagem imaginária”, Catherine Douzel.
O caractere chinês que designa o chá é o 茶, que por sua vez é pronunciado de duas formas completamente diferentes. Uma é “te”, termo de origem malaio que remete diretamente à bebida. A outra é “cha”, cujo significado no cantonês e no mandarim é colher, apanhar. Na semana passada, as minhas mãos unificaram o significado do símbolo Han, ainda que momentaneamente, a milhares de quilômetros da sua origem.
Foi mais ou menos assim: acordei, tomei um banho, vesti roupa e calçados confortáveis, tomei um café da manhã reforçado e dirigi por cerca de trinta minutos até chegar à única plantação de chá na Europa continental. Por quase três horas, dediquei-me voluntariamente à colheita das flores da Camellia sinensis, a planta cuja infusão de suas folhas proporciona os chás verde, branco, amarelo, preto e oolong.
É que, quando um avião pousa em um continente diferente daquele de onde partiu, nem sempre é possível aterrissar junto. Fisicamente sim, mas a cabeça por vezes atrasa a chegada completa. Trabalhar com as mãos, na terra, pareceu-me estratégico na tentativa de também juntar corpo e mente, e ainda aguçar a minha curiosidade em torno da cultura de uma bebida marcada pela viagem.
Fui recebida na Chá Camélia com simpatia pela Maria João que, de um terraço com vista para um hectare de plantação de chá, contou-me sobre a ideia que Nina Gruntkowski e Dirk Niepoort tiveram em 2011. Depois de tentarem sem sucesso plantar a Camellia sinensis na região do Douro, onde dedicam-se à produção de outra bebida tradicional, decidiram arriscar no quintal da própria casa, no Porto, a cidade das camélias.
Assim como as plantas ornamentais que florescem nos meses mais frios em quase todo quintal portuense, os 200 pés da planta do chá vingaram. Tanto que, volvidos três anos, tiveram de transpô-los para o que antes era a casa de campo da família, hoje sede da empresa. Foi lá que, com os dedos polegar e indicador, pincei as pequenas flores brancas de miolo amarelado, apenas aquelas que ainda não estavam totalmente abertas, pouco a pouco até avolumar a cesta que levava à tiracolo para serem posteriormente desidratadas, embaladas e infusionadas.
Aterradas no novo espaço, as plantas precisaram de meia década para proporcionar à Chá Camélia a sua primeira produção de chá verde, como também me contaram a Rita e o André, outros trabalhadores que me acompanharam na colheita. Sessenta quilos de folhas frescas apanhadas manualmente resultaram em doze quilos de chá seco, um produto único, marcado pelo seu terroir. Prova da exigência da cultura da planta, que foi vencida: atualmente, há doze mil pés dispostos em filas e podados para que folhas e flores possam ser colhidos por pessoas, não por máquinas. À dificuldade natural do processo, fizeram questão de acrescentar princípios biológicos e espírito biodinâmico à produção artesanal.
É a diferença da outra plantação de chá existente na Europa, também em Portugal, mas no Arquipélago dos Açores, onde a escala é industrial. Os portugueses, aliás, foram os primeiros europeus a entrar em contato com o chá, mais especificamente quando chegaram à Ásia. Por lá, a história é ainda mais antiga: originário da China, foi introduzido no Japão no século VI por monges budistas motivados pela concentração para meditar.
Embora tenham levado a cultura para outro continente, hoje os portugueses não bebem muito chá, que é visto como uma bebida elitizada. As infusões, conhecidas por tisanas, como de camomila ou hortelã, são mais comuns — chá é só da Camellia sinensis. Mas nem sempre foi assim, até porque foi uma mulher portuguesa a responsável por instigar o consumo do chá na Inglaterra. Catarina de Bragança, princesa que casou com Carlos II da Inglaterra, patrocinava tea parties, ocasião em que o chá passou a ser apreciado, inicialmente por mulheres. Depois, caiu no gosto geral da nação até tornar-se a tradição do chá da tarde, instituída pela Duquesa de Bedford, em Londres.
Pelo horário que aconteceu, não foi um five o’clock tea, mas a colheita a que participei foi finalizada com uma pequena degustação do Flower Power, uma bebida delicada como as folhas e as flores da Camellia sinensis cultivadas ali mesmo. As primeiras apanhadas entre a primavera e o verão, e as segundas no outono, solidificando o aprendizado de que cada coisa tem o seu tempo. Nesse dia em específico, juntaram-se pessoas, significados, Oriente e Ocidente, corpo, mente e mãos em agradecimento.
FLÂNEUSERIE 💃🏻
[Recomendações de lugares por onde andei, testei e aprovei]
— Portugal: além da Chá Camélia no Norte do país, a Gorreana produz chá desde 1883 com sementes levadas do Rio de Janeiro à Ilha de São Miguel, nos Açores;
— Marrocos: a infusão de folhas de hortelã com chá verde em pó que verte de bules prateados altamente posicionados é um sinal de hospitalidade, sendo o Bacha Coffee e a Terrasse des Epices dois bons lugares para experimentá-lo em Marrakech;
— Inglaterra: a Fortnum & Mason é uma loja que merece ser visitada, já que é um dos fornecedores de chá da família real, assim como o afternoon tea do Swan, ambos em Londres;
— Alemanha: região costeira e insular, a Frísia Oriental é o lugar onde mais se bebe chá no mundo e há até museus focados na bebida, o Bünting Tea Museum e o East Frisian Tea Museum;
— Argentina: a Mateame, em Buenos Aires, dá a chance de conhecer mais sobre a cultura portenha do mate.
SALVO EM ONDE QUERO IR 💾
[Onde ainda não fui, mas salvei na lista para ir]
— China: onde tudo começou, a cerimônia Gongfu Cha parece bastante atrativa, especialmente para quem gosta de oolong e cerâmica, já que há uma preocupação com o tea set;
— Japão: Kyoto é considerada a região que cultiva o melhor chá verde do país, onde deve ser um sonho participar de uma cerimônia do chá, “caminho do chá” em tradução literal;
— Índia: feito com um mix de especiarias, leite e açúcar, o chai é o símbolo máximo do país, que possui regiões produtoras conhecidas mundialmente, como Assam e Darjeeling;
— Turquia: semelhante à cultura do chá marroquino, mas com chá preto, servido com água e doces locais;
— Taiwan: a febre do chá com leite e pérolas de tapioca conhecidas por “boba” vem deste país.
→ Tem alguma recomendação? Deixa pelos comentários!
UMA ÚLTIMA VISTA D'OLHOS 👀
[Inspiração para espreitar antes de ir embora]
— Viajar pode ser o antídoto contra o envelhecimento precoce, é o que garante um novo estudo;
— Tem que ter lata para vender ar fresco, então foi o que fez uma empresa italiana com a atmosfera do Lago de Como;
— A vista deste trem alpino no outono, de cortar a respiração;
— Das cinco melhores vinícolas do mundo, duas estão uma do ladinho da outra e são mesmo incríveis;
— Entrevista com Laura Bispuri, a cineasta que dirigiu a última temporada da série My Brilliant Friend, baseada na tetralogia de Elena Ferrante.
Obrigada pela leitura de mais uma edição, esta em especial escrita à base de Earl Grey!
Já faz algum tempo que tenho o hábito de aquecer as mãos e o corpo com uma boa xícara de chá, cujo consumo aumenta exponencialmente nesta época. É um momento de calma e contemplação para mim, que costuma ser seguido de foco.
Inclusive, estou de olho em Christmas Tea para comprar, que nada mais é do que chá preto, canela, cardamomo, gengibre e cascas de laranja desidratadas.
Gostei em especial desta opção da Companhia Portugueza do Chá, uma loja tradicionalíssima em Lisboa que já mencionei em outra edição. Se você tiver alguma recomendação, vou adorar saber.
Bom proveito e até a próxima edição!
“Mais do que uma bebida, o chá é uma filosofia de vida”, Nina Gruntkowski, idealizadora do Chá Camélia.
Que delícia de passeio, Gabi. Indo ainda mais além: um passeio necessário para a época em que vivemos. Só de ler o seu relato já senti a ansiedade desacelerar.
não tenho o hábito do chá. prefiro um cafezinho…