49 | Conhecer os lugares com os pés 🚶♀️
Cidades caminháveis para quem? O lugar ideal para a flâneuse não existe. É preciso reivindicá-lo.
So why is it so difficult for half of the human race simply to walk? Why can’t a woman ramble around, unaccompanied and unburdened, exploring the world she was born into, while turning her own thoughts in her mind? Such a harmless occupation! It doesn’t seem too much to ask, to be able to walk outdoors, even in daylight, without fear. Of course we know why not. But of course we walk anyway, despite fear and derision, and always have.
Rebecca Solnit em Wanderers: A History of Women Walking.
Nos últimos dias, tive a oportunidade de refletir sobre caminhar em uma entrevista para o Mulheres e a Cidade. Para quem não conhece, e aconselho vivamente que o faça, é uma plataforma dedicada às histórias femininas que se fundem aos centros urbanos.
Por trás do que as jornalistas Larissa Saram e Graziela Salomão investigam, está o incentivo para ocuparmos os espaços públicos, apesar dos pesares que conhecemos bem. Para sermos flâneuses, que só é o feminino de flâneur no dicionário e olhe lá. Não fosse trágica, seria cômica a sugestão de correção dos editores onde escrevo. Na prática, sabemos que envolve muito mais que reconhecimento semântico do termo.
Não por acaso a primeira entrevistada do Mulheres e a Cidade foi a escritora Lauren Elkin, conhecida pelo livro sobre andarilhas em Paris, Nova York, Tóquio, Veneza e Londres. Todas cidades mais ou menos amigáveis ao perambular feminino.
Comparações à parte, não há lugar perfeito para vagarmos, simplesmente porque vivemos em um mundo pensado por e para os homens. E, historicamente, eles sempre nos quiseram limitadas ao espaço da casa, que é o epicentro do cuidado, sobretudo deles próprios. Quase toda vez que saio, penso em Virginia Woolf, a flâneuse londrina que insistia que expurgássemos o “anjo doméstico” e fôssemos porta afora.
O meu maior movimento de vida partiu justamente desta limitação: eu morava a poucos metros da praia, mas não me sentia segura para ir sozinha até a areia. Muito menos para relaxar em frente ao mar depois de uma caminhada. Onde já se viu ter direito à contemplação, esse luxo inútil, ainda mais uma mulher sozinha, que ousa experimentar a cidade sem a companhia de um homem?
Até existiam grupos nas redes sociais para combinar idas em grupo junto de outras mulheres — o que me fazia lembrar do tempo que vivi em Sevilha, onde há uma espécie de onipresença coletiva feminina —, mas o que eu queria mesmo era poder flanar apenas na minha companhia.
Sinto um prazer difícil de colocar em palavras quando dou um passo após o outro. Percebo gradativamente os meus pensamentos ordenarem-se no ritmo em que caminho. Intencionalmente, levo o meu olhar para passear, enriquecendo-o sempre. Tomo notas do que observo com curiosidade fora de casa, sabendo que também sou observada. É como se o meu corpo se expandisse em uma espécie de alongamento, que também é mental, toda vez que tenho essa possibilidade. Não deveria ser um privilégio.
Já em Portugal, tenho tatuada na memória a noite que saí com uma amiga e voltei bem tarde para casa. Sozinha. Sem sentir medo. Alguns anos depois, também já quase dou isso por garantido onde vivo, não fosse uma mulher proveniente do Sul Global com sentido de alerta impresso no DNA. Quando sinto medo, lembro-me de um trecho do livro O perfume das flores à noite, da autora franco-marroquina Leïla Slimani:
Não tenho nada de uma flâneuse que vaga com o coração leve, sem se preocupar em alcançar um objetivo ou com as pessoas com quem vai cruzar. Tenho medo dos homens que poderiam me seguir. Os corredores me assustam. Muitas vezes eu me viro quando ouço passos atrás de mim. Não me aventuro por ruas que não conheço. (…) Por muito tempo, sonhei em ser invisível. Imaginava estratagemas e tinha inveja dos garotos que não sentiam esse tipo de medo. Se continuo a me fechar, se evito o exterior, é talvez menos para escrever e mais devido ao meu horror. Várias vezes me perguntei como teria sido minha vida se eu não tivesse tido medo. Se eu tivesse sido intrépida, corajosa, uma aventureira capaz de enfrentar os perigos. ‘Nós somos o sexo do medo’, escreve Virginie Despentes em Teoria King Kong.
Por maior que seja a identificação, batalho contra o pavor. Recuso a dar-me por vencida. Por ser o que querem, mas também por uma questão de sobrevivência: preciso da inspiração que está lá fora. Não podendo ser invisível, camuflo-me de imigrante, turista ou viajante, a depender da filosofia de movimento de cada pessoa. O que quer que seja para ocupar as ruas. Caminhando, sou estrangeira. Em todos os sítios, até mesmo no lugar de onde vim. Aceito a condição.
Recentemente, incorporei uma tática para tornar as minhas divagações mais seguras e menos cansativas. Estudados pela sociologia, os chamados third places passaram a entrar nos meus roteiros. É o cinema ou a biblioteca que visito quando me lanço à cidade, o terceiro lugar entre a casa e o trabalho. Nesses espaços, recobro o fôlego de mais de uma forma.
Algo que está alinhado ao que o pesquisador italiano Francesco Careri defende em Caminhar e parar, um dos desdobramentos do seu livro mais conhecido: Walkscapes: o caminhar como prática estética, que narra uma história da percepção da paisagem a partir da caminhada. O arquiteto italiano divulga os seus achados desde os anos 1990, sobretudo a partir de incursões a pé em várias cidades do mundo com o laboratório de arte urbana Stalker/Osservatorio Nomade. Mais recentemente, tem defendido o poder da pausa durante uma passeggiata. “Perder tempo para ganhar espaço”, em suas palavras.
É precisamente assim que percorro os lugares que visito. Ainda que hábito adquirido, andar é a minha forma natural de conhecer as cidades, que se abrem aos meus pés de maneira singular. Também é a da humanidade, que aos poucos retoma o hábito. Leio cada vez mais notícias sobre centros históricos livres de carro ou mulheres que planejam as cidades do futuro e permito-me ser otimista.
É nosso direito ocupar, desbravar e se perder. Não podemos esperar condições ideais de caminhabilidade, muito menos autorização.
FLÂNEUSERIE 💃🏻
[Recomendações de lugares por onde andei, testei e aprovei]
— Barcelona, Espanha: a cidade que tem as ruas pensadas em grade por meio do Plano Cerdá é perfeita para callejear e não para de transformar ruas movimentadas em parque;
— Veneza, Itália: a cidade car free por excelência, onde o passeio por entre os canais tende a ser silencioso;
— Bordeaux, França: muito se fala sobre flanar em Paris, mas a cidade do vinho não fica nada atrás na arte inicialmente descrita por Baudelaire;
— Montevidéu, Uruguai: a cidade onde os paseos nunca acabam e que é possível dar 50 mil passos em uma mesma orla;
— Copenhagen, Dinamarca: com tantos parques, ciclovias e calçadas largas, estranho seria se fosse um lugar ruim de caminhar.
SALVO EM ONDE QUERO IR 💾
[Onde ainda não fui, mas salvei na lista para ir]
— Riga, Letônia: que parece dispor de um tamanho ideal para flanar sem compromisso;
— Oslo, Noruega: a segurança que advém da igualdade de gênero me atrai, assim como a cultura da sauna e o cultivo de uma relação saudável com o corpo, na qual a nudez não é um tabu;
— Quioto, Japão: com uma curiosidade imensa de observar respeitosamente as gueixas e também quem as observa nesta que parece ser das cidades japonesas mais tranquilas;
— Nova York, Estados Unidos: como alguém que acabou de maratonar Sex and the City pela primeira vez, também ando de forma inédita a fim de visitar esta cidade;
— Hamburg, Alemanha: pouco falada, esta cidade portuária parece ter uma arquitetura moderna interessantíssima.
→ Tem alguma recomendação? Deixa pelos comentários!
UMA ÚLTIMA VISTA D'OLHOS 👀
[Inspiração para espreitar antes de ir embora]
— Caminar entre los otros, livro de Monica Naranjo Uribe inspirado em um passeio a pé em Bogotá;
— Appel à la sieste, um carrossel de imagens para inspirar o próximo cochilo depois do almoço;
— O que lia Amy Winehouse, agora será possível saber em exposição na Livraria Lello, que comprou o espólio de 200 livros que eram da cantora;
— Havaí, Sicília e Tailândia, os lugares impactados turisticamente depois da série The White Lotus, cuja terceira temporada está em exibição;
— Você está vivendo ou só fazendo scroll?
Obrigada pela leitura até o fim!
As boas-vindas se você chegou recentemente, seja pela entrevista para o Mulheres e a Cidade ou de outra forma! Sinta-se em casa e dê um alô sempre que puder, viu?
Bom proveito e até a próxima edição!
Um abraço carinhoso,
“O impulso de viajar é um dos sinais mais esperançosos de vida”, Agnes Repplier, ensaísta estadunidense.
Eu adoro conhecer as cidades a pé. Quando fui a NY com meu marido andamos 17km em um dia! Obrigada pelas sugestões de cidades caminháveis, com certeza vou levar em consideraçao quando planejar uma próxima viagem.
é uma pena que muitas cidades não ofereçam condições mínimas para que os cidadãos (e, mais ainda, as cidadãs) possam caminhar. uma das maiores delícias de uma viagem é caminhar para descobrir novos lugares.