Portal do Mundo: Direito à vagabundagem: As viagens de Isabelle Eberhardt
#7 — Organizado pela jornalista e historiadora Paula Carvalho, livro é um mergulho na mente da viajante que desafiou as limitações impostas por gênero e nacionalidade em nome do ir e vir 🏜️
Países, gênero, etnia e religião: Isabelle Eberhardt cruzou todas essas fronteiras sem pedir licença. Dividido em duas partes, Direito à vagabundagem (Fósforo, 2022) é um livro que conta a história desta viajante que sempre sonhou ser escritora a partir do seu próprio movimento. Quem faz as apresentações é
, que publica mensalmente a newsletter , enquanto Mariana Delfini traduz do francês uma coletânea dos seus textos.Especializada no estudo de viajantes disfarçados ao longo da história, Paula fornece uma perspectiva abrangente a respeito da vida e da obra de Isabelle, uma viagem por si só. Nasceu em 1877 em uma família de origem russa em Genebra, aprendeu várias línguas, emigrou primeiro para a Tunísia, depois para a Argélia, converteu-se ao sufismo, viveu um período nômade, sobreviveu a um atentado contra a sua vida, foi expulsa pelos franceses então colonos, casou-se com um soldado argelino, trabalhou como correspondente da guerra colonial e morreu afogada no deserto aos 27 anos, tentando salvar os seus manuscritos, após a neve das montanhas próximas inundar o vale onde vivia. Pergunto-me o que mais teria vivido não fosse a tragédia que interrompeu a sua vida precocemente.
Em todos esses episódios, estava vestida com roupas de homem, mais especificamente com os trajes argelinos que lhe deram fama. Não foi a única viajante a apropriar-se da indumentária masculina para ter liberdade de circulação, mas talvez tenha sido pioneira em viver as identidades de gênero em simultâneo. Isabelle Eberhardt também foi Si Mahmoud Saadi.
“Com trajes corretos de mocinha europeia eu jamais teria visto coisa alguma, o mundo teria se fechado para mim, pois a vida exterior parece ter sido feita para o homem, e não para a mulher.”
Além de introduzi-la, a historiadora prepara o terreno para um mergulho em busca de compreender as andanças de Eberhardt. Sem deixar de problematizar o que deve ser problematizado: que a viajante só pôde fazer o que fez porque era uma mulher branca europeia em países colonizados por essa mesma Europa. Contudo, o que mais parece impressioná-la é justamente a concepção de vagabundagem mantida pela exploradora: uma sedutora narrativa de experimentação da liberdade.
“Um direito que apenas poucos intelectuais se empenha em reivindicar é o direito à errância, à vagabundagem. E, no entanto, a vagabundagem é a alforria. E a vida na estrada, a liberdade. Romper corajosamente com todos os entraves com os quais a vida moderna e a debilidade do nosso coração carregaram nossa ação sob o pretexto da liberdade. Armar-se de um cajado e de uma bolsa carteiro simbólicos e ir embora.”
Com a expectativa criada, a leitura avança para os próprios escritos de Isabelle. Há textos de todos os tipos, ficção e não-ficção, sendo esses últimos aqueles que mais me fisgam. Sou tragada pela sua capacidade de descrever o que vê, o que sente e o que sonha a partir das suas viagens, que constituíam o seu modo de estar no mundo. A paisagem desértica, os costumes árabes e o islamismo não só a encantavam, também inspiravam a sua criação literária.
Mesmo com tanto talento, ou talvez exatamente por conta disso, depois de morrer teve o seu trabalho desfigurado por Victor Barrucand. O jornalista francês, que era amigo de Isabelle e passou a controlar o seu espólio, insistia em alterá-lo, além de apropriar-se da obra de uma mulher em uma história que se repete. A partir de um trabalho engenhoso de pesquisa e tradução, oferecem os textos da viajante sem a desfiguração masculina. Defendem que merece ser lida por si própria.
Fazem escolhas que não idealizam Isabelle, pelo contrário, mostram-na por completo. Em algumas passagens, é possível acessar até mesmo as suas contradições que, com a lente de dois séculos depois, chegam a tocar o racismo e a misoginia. Fiquei inconformada ao ler algumas partes, devo confessar. Mas também livrei-a de ser heroína, a versão feminina de Lawrence da Arábia, para que fosse ela mesma. Errante por excelência.
“Foi sempre com admiração, sem inveja, que ouvi os relatos de pessoas corajosas que viveram durante vinte, trinta anos no mesmo bairro, quiçá na mesma casa, que nunca saíram de sua cidade natal.
Não experimentar a necessidade torturante de saber e ver o que existe ali em frente, para além da misteriosa muralha azul do horizonte… Não sentir a opressão deprimente da monotonia dos cenários… Olhar para a estrada toda branca que corre em direção ao longínquo desconhecido, sem sentir a necessidade imperiosa de se entregar a ela, de segui-la docilmente através de montanhas e vales — essa necessidade medrosa de imobilidade parece a resignação inconsciente do bicho, a quem a servidão embrutece e que prende seu pescoço às rédeas.”
🌊 VIAGENS OUTRAS
[Para onde este portal me levou e também pode te levar]
— Isabelle Eberhardt, filme de 1991 [link];
— Viajo porque preciso, conversa entre
e para o podcast da 451 [link];— Great Journeys: The oblivion seeker, a atriz inglesa Julia Stevenson refaz os caminhos de Isabelle Eberhardt neste documentário da BBC [link];
— Outros diários de viagem de Isabelle publicados em português [link];
— Mulheres que pedalam: Dervla Murphy, a escritora de viagem que viajou da Inglaterra até a Índia de bicicleta [link] e Ruth Orkin pelos Estados Unidos, neste fotolivro destacado pela Fondation Henri Cartier-Bresson [link];
—
, um projeto incrível que celebra mulheres e cidades [link];— Alice nas cidades, filme de estrada de Wim Wenders (a que assisti depois do magnífico Perfect days), gênero sobre o qual ainda vou escrever mais [link].
→ Já que falamos do mundo árabe, também pode te interessar:
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Muito obrigada pela leitura e até a próxima,
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