21 | Conheça antes que desapareça 🌀
A contradição que é correr para visitar lugares ameaçados de extinção.
“The worls is made up of many words, some are connected”, do personagem Hirayama no filme Perfect days, de Wim Wenders.
O título desta edição faz parte do meu léxico familiar. É uma piada comumente dita em tom jocoso pela minha mãe sobre a sua cidade natal. De tão pequena dos pontos de vista geográfico e populacional, acreditava que poderia desaparecer. Minha avó, dona de outra máxima, reprovava o comentário da filha: “ama com fé e orgulho a terra em que nasceste”, dizia em um misto de sotaque gaúcho com alemão.
Venâncio Aires não sumiu do mapa, ainda está lá no coração do Rio Grande do Sul, mas há uma lista de lugares pelo mundo onde esse risco é real. Em maior medida pelas mudanças climáticas, mas também pelo excesso de turismo, como aconteceu em Maya Bay, na Tailândia. Do outro lado do balcão, estão posicionados os last chance tourists, que compõem o que descobri ser a última tendência da indústria.
É isso mesmo: há uma corrida para visitar florestas, geleiras e recifes de coral antes que seja tarde demais. Trata-se do turismo de massa apropriando-se do senso de urgência do marketing não para reverter, mas potencialmente para intensificar o quadro. Capitalismo em sua melhor forma. Se por muito tempo o homem quis pisar pela primeira vez em determinados territórios, o fetiche agora é pisar pela última.
Não é um bocado óbvio que esse comportamento pode acelerar o ciclo de destruição dos ecossistemas? Os especialistas alertam ao estilo Don't Look Up. Importante lembrar que as viagens e o turismo são responsáveis por até 11% da emissão de gases de efeito estufa1. Por mais tentador que seja, pergunto-me se deixar de viajar para locais fragilizados não seria a solução mais adequada. Há quem reflita sobre deixar de viajar como um todo.
Mas então vejo a Tamara Klink navegando em solitário pelo Círculo Polar Ártico, onde as mudanças são ainda mais visíveis, e me lembro do potencial de sensibilizar, educar e até mudar que envolve viajar. O problema é que a maioria das pessoas não se desloca como a velejadora, bem longe disso, e não só por falta de barco ou de recursos. Em nome de uma decisão informada, penso ser importante escolher conscientemente os destinos, a forma de conhecê-los e, principalmente, impactá-los.
É sobre dançar conforme a música torcendo para não serem os mesmos acordes dos violinistas do Titanic. Perdoem-me a tentativa de tornar mais leve um assunto tão sério. Os sinais já estão todos aí.
Antes mesmo do inverno acabar na Europa, pipocavam notícias sobre inúmeras estações de ski que não abriram por falta de neve, mesmo nos Alpes, onde se dizia eterna. Em Marrakech no mês passado, soube que os hammam estavam funcionando apenas aos fins de semana porque não nevou o suficiente no Atlas, de onde escorre a água que abastece os banhos públicos.
Fica cada vez mais difícil negar que as mudanças climáticas já afetam a forma de viajar. Quer ver outra tendência, desta vez menos nefasta, que comprova isso? O Mediterrâneo está sendo trocado pelo Ártico como destino preferido no verão europeu no que a Condé Nast Traveler chama afetadamente de coolcationing. É que ninguém aguenta mais as ondas de calor, não raro acompanhadas por incêndios, então é melhor visitar a Grécia no inverno e a Noruega no verão. Correndo o risco de ser repetitiva, acrescento que as queimadas de 2023 impactaram até os Alpes.
No contra-fluxo do turismo, é possível aproveitar os lugares sem que estejam apinhados de gente, pelo menos por enquanto. E, indo além, exercer menos pressão, o que me parece fundamental em se tratando de locais ameaçados. Se calhar, diferente do que fizeram em uma geleira francesa, onde construíram uma estrutura para que as pessoas pudessem ver de perto o seu derretimento acelerado, como expõe esta reportagem da The Week enviada pelo amigo, leitor e fotógrafo Giovanni Bello.
A atração pela morbidez não é novidade. Aquela história de não conseguir desviar o olhar ao passar por um acidente de trânsito, sabe? As notícias mais lidas também estão aí para provar o fascínio pela tragédia que mantemos enquanto sociedade, enquanto humanos. Isso não seria diferente com as viagens, onde pode ser acrescentado o fator conscientização.
Não vou negar que tenho vontade de conhecer vários destinos “de última oportunidade”. Não em uma corrida, mas no meu ritmo, sem espetacularização e com a intenção de que sobrevivam, para que sobrevivamos todos. Tentando seguir nos deslocamentos o que escrevi em Ser viajante para recordar, principalmente em relação ao turismo de base comunitária, porque reconheço a renda e os empregos gerados pela atividade.
Ao refletir sobre tudo isso, fiquei na dúvida se faria a curadoria de lugares a seguir baseada no conceito, mas decidi que sim. Ao lado de cada um, há uma breve explicação do que se passa. Sabendo mais, talvez possamos contribuir com uma mudança positiva. Conhecer para que perdurem. E, se decidirmos por evitá-los, talvez seja o caso de escolher aqueles lugares longe dos holofotes e que estão em risco de desaparecer por motivos outros, menos reais.
FLÂNEUSERIE 💃🏻
[Recomendações de lugares por onde andei, testei e aprovei]
— Salar de Uyuni, na Bolívia: o deserto de sal está ameaçado por conta da extração de lítio, fomentada mais recentemente pela indústria de carros elétricos;
— Maciço Alpino, na Europa: as geleiras estão a derreter mais rapidamente em função dos recordes de temperatura registrados ano após ano;
— Recife, no Brasil: o avanço marítimo, a particularidade geográfica e até a desigualdade social ameaçam o afundamento da capital do Pernambuco;
— Veneza, na Itália: o aumento do nível do mar ameaça essa que é uma das cidades mais bonitas do mundo, sendo a época de Acqua Alta uma amostra grátis;
— Sul de Santa Catarina, no Brasil: o último berçário da baleia-franca austral em águas brasileiras corre risco devido ao turismo de observação embarcado.
SALVO EM ONDE QUERO IR 💾
[Onde ainda não fui, mas salvei na lista para ir]
— Floresta Amazônica, na América do Sul: a maior floresta tropical do mundo é ameaçada pelo desmatamento em função da expansão da agropecuária, da exploração da madeira e do garimpo;
— Great Barrier Reef, na Austrália: a acidificação do oceano, o aumento das tempestades tropicais e o branqueamento do coral colocam em risco este local de grande biodiversidade;
— Mar Morto, no Oriente Médio: em uma mistura de influência humana, geologia e ironia, este mar perde aproximadamente um metro de água por ano;
— Maldivas, na Ásia: é potencialmente o primeiro país do mundo a ser engolido pelo oceano, se o nível do mar continuar a subir no ritmo atual;
— Geleira do Kilimanjaro, na Tanzânia: há previsões que indicam que a neve desta montanha poderá desaparecer completamente em duas décadas.
UMA ÚLTIMA VISTA D'OLHOS 👀
[Inspiração para espreitar antes de ir embora]
— A vila que proibiu o scroll em público para barrar a “invasão dos smartphones”;
— A primeira mulher negra a ser dona de uma empresa de safari na África;
— Extérieurs — Annie Ernaux & la Photographie, exposição em Paris para quem gosta de fotografia e da escritora francesa Nobel de Literatura;
— O Festival Mundial de Cinema de Turismo do Japão, para espiar alguns filmes;
— “A tradução de um livro é sempre um trabalho autoral”, podcast da Gama com Bruna Dantas Lobato, imigrante brasileira nos Estados Unidos premiada pela tradução para o inglês de A palavra que resta, de Stênio Gardel.
Obrigada por ter lido até o fim! Escrevo esta edição em um cenário meio apocalíptico: o inverno mal terminou e as temperaturas devem chegar quase a 30 graus celsius nesta sexta-feira, também quando uma poeira do Deserto do Saara atinge a Península Ibérica.
Bom proveito e até a próxima edição – toda sexta-feira na tua caixa de entrada ou no aplicativo do Substack!
Com carinho e preocupação,
“Quem é belo é belo de ver, e basta; mas quem é bom subitamente será belo”, Safo, poeta grega da ilha de Lesbos.
Eu só fui à Europa uma vez, em 2013. E planejei a maior parte da viagem mais ou menos pensando em ver o essencial por medo dele não existir depois. E não fui a nenhum desses lugares no início da fila e sim aos realmente básicos, como Londres, Roma e Paris. Mas eu sentia como tão essenciais que não queria perder.
Não me arrependo do roteiro, foi todo muito bom. E era a minha ideia mesmo fazer uma primeira viagem mais generalista e depois ir voltando com calma, um país por vez. Mas acabei sendo atropelado pela vida e não voltei mais. Está nos planos pra em breve.
adorei suas ponderações! viajar é o que me dá mais prazer na vida, e com certeza pretendo seguir conhecendo lugares novos sempre que possível. mas me dá uma dor no coração (sem falar vergonha alheia) observar turistas absolutamente sem noção que deixam suas marcas em todo lugar que passam…. bom senso deveria ser presente em todo ser humano, mas infelizmente nao é…