24 | Azulejo é cultura estampada em material 🖌️
As histórias contadas pelo azzelij, estilo de mosaico oriundo do Norte da África levado para a Europa, onde forjou identidade nacional. E mais: destinos para quem não resiste aos murais em cerâmica.
“Casi nadie quiere viajar a un lugar donde lo entienda todo perfectamente”, Sabina Urraca, escritora espanhola.
É mais forte do que eu. Se um azulejo me chama a atenção durante um passeio, sou obrigada a fotografá-lo. Acumulei uma considerável coleção de estilos ao longo de uma década de recolha e, inclusive, penso ser capaz de afirmar que aqueles da década de 80 são os meus preferidos.
Sei que não estou sozinha. No Instagram, a hashtag #IHaveThisThingWithTiles reúne pessoas atentas à beleza dos revestimentos há anos. Lembro que uma das primeiras vezes que a usei ainda morava em Sevilha, onde no Real Alcázar visitei uma exposição sobre azulejos.
Mas foi em Portugal que o volume de fotos agigantou-se, da ordem dos gigas mesmo. De toda forma, a origem dos azulejos que compõem a identidade da Península Ibérica, sobretudo desta faixa estreita ocidental de onde escrevo, é a mesma: o azzelij. Usada para designar o mosaico bizantino do Oriente, a palavra árabe significa pequena pedra polida.
Ao contrário do que muita gente pensa em função da cor predominante dos painéis portugueses, azulejo não é uma derivação de azul. A utilização do azzelij data do Egito Antigo e da Mesopotâmia, tendo sido exportado para o Norte da África e a Europa durante a expansão islâmica. Foi quando os mouros fixaram-se entre Espanha e Portugal para formar o reino Al-Andaluz que artesãos muçulmanos desenvolveram a técnica mudéjar, marcada pelos padrões geométricos em branco, preto, azul, verde e terracota. A ideia era formar uma “tapeçaria cerâmica”.
Era o início de uma expressão própria desse tipo de arte, pela qual o então rei português D. Manuel I deslumbrou-se em visita à Espanha. Quis trazê-la para onde vivia, o Palácio Nacional de Sintra. Em Portugal, a produção de azulejos encontrou um terreno fértil, porque o país já acumulava experiência em produção de cerâmica. Ao longo dos séculos, recebeu influência da Índia, da África e do Brasil, tornando-se único no mundo.
Ainda que os azulejos tenham sido utilizados em outros países europeus, como Inglaterra, Itália e Países Baixos, em nenhum outro ocupou uma posição de destaque em relação à arte, abrangência e volume de produção quanto em Portugal. É um símbolo incontornável da cultura portuguesa, talvez no mesmo nível do pastel de nata ou do fado. Talvez sufocado pela Igreja Católica, defendo que seja mais associado ao legado árabe. As evidências estão aí: motivos geométricos, curvilíneos e florais, que são influências da arte islâmica.
Os azulejos portugueses também narram temas históricos que vão do religioso ao profano sem deixar de lado a mitologia. Gosto mesmo é de quando retratam o cotidiano de onde estão inseridos, como os murais da estação de comboios de Pinhão, que mostram a produção de vinhos do Douro. A paisagem lusitana é outro motivo recorrente que me agrada, mas a verdade é que a variedade é ilimitada, assim como a criatividade. De face lisa ou em relevo, quadrangular ou de contorno abstrato. No exterior dos espaços, mas também dentro deles, fazendo com que os painéis estejam completamente inseridos na vida urbana, refletindo a luz e dando mais cor ao dia a dia.
Também fizeram e ainda fazem as vezes de “tela” para artistas que se projetaram mundialmente, como os modernistas Rafael Bordalo Pinheiro e Maria Keil, além da contemporânea Joana Vasconcelos, essas últimas a honrar as mulheres que por algum tempo não podiam pintar cerâmica nas fabricas do país. Pelo valor agregado, os azulejos não deixam de ser vítimas de sua própria beleza acessível.
Por não estarem protegidos em museus, são bastante procurados por falsificadores e até comerciantes ilegais. Nas feiras de antiguidades, é comum vê-los à venda. Infelizmente, vários deles foram roubados, sendo importante checar a procedência antes de comprar. Do outro lado, estão empreiteiros que destroem-nos em remodelações mal sucedidas.
Para chamar a atenção ao problema é que surgiu o projeto Preencher Vazios, que insere painéis com poesia onde antes existiu um azulejo que foi arrancado. Intenção semelhante têm o Azulejos Porto e o Banco de Materiais, que catalogam a diversidade de azulejos. No primeiro deles em uma parceria com a Gazete, há a chance de participar de uma oficina de pintura de azulejos. Já no segundo, é possível ver pessoalmente cada peça que já compôs a imagética da cidade. Placas toponímicas, diversos artefatos de madeira, ferro e cantaria, além de peças em estuque também compõem o acervo que conta a história urbana. Basta interesse para conhecê-la a partir de variadas formas.
FLÂNEUSERIE 💃🏻
[Recomendações de lugares por onde andei, testei e aprovei]
— Alhambra de Granada, Espanha: um complexo de palácios, fortalezas e museus com exemplares de azulejos bem característicos do tempo Al-Andaluz da península ibérica;
— Parque Arqueológico de Pompéia, Itália: onde está o famoso mosaico romano de Alexandre, na Casa do Fauno;
— Igreja Matriz de Válega, Portugal: completamente azulejada por dentro e por fora com tons multicoloridos, um espetáculo bem pouco conhecido no Centro do país;
— Park Güell e Casa Batlló, Barcelona: duas provas da prolífica genialidade do mestre Gaudí, também possuem revestimentos que saltam aos olhos atentos ao modernismo catalão;
— Madraça Ben-Youssef, Marrakech, Marrocos: escola islâmica ornamentada com azzelij aplicado nas mais variadas superfícies arquitetônicas.
SALVO EM ONDE QUERO IR 💾
[Onde ainda não fui, mas salvei na lista para ir]
— Sheikh Zayed Grand Mosque, Abu Dhabi: mesquita nos Emirados Árabes repleta de painéis floridos;
— Museu Nacional do Azulejo, Lisboa: criado para investigar e proteger a azulejaria portuguesa, com peças únicas;
— The Blue Mosque, Istanbul, Turquia: mesquita otomana construída nos anos 1600 com vários tipos de azulejos de tom cobalto;
— Palácio da Fronteira, Lisboa: há azulejos holandeses em seu interior, mas no jardim o destaque fica por conta de painéis representativos dos costumes campestres de cada estação do ano;
— Mosaicos bizantinos de Ravenna, Itália: esta cidade da Emilia-Romagna é conhecida pela riqueza dos padrões que estampam os azulejos em diversos edifícios tombados pela Unesco.
→ Tem alguma recomendação? Deixa pelos comentários!
UMA ÚLTIMA VISTA D'OLHOS 👀
[Inspiração para espreitar antes de ir embora]
— Bairro Árabe, iniciativa que visa à promoção do legado árabe em Portugal, com caminhadas temáticas toda semana em Lisboa;
— Azulejaria brasileira, registro e valorização das peças feitas no Brasil, onde o meu mural favorito está na Igreja da Pampulha, obra de Oscar Niemeyer com azulejos pintados por Cândido Portinari, em Belo Horizonte (MG);
— Protesto e flamenco, como este coletivo está mudando a forma espanhola de reivindicar mudanças;
— Ailton Krenak na Academia Brasileira de Letras promete “não ampliar a lusofonia, mas promover uma sinfonia a partir de 180 línguas indígenas em direção à língua brasileira”;
— Las meninas a San Marco, escultura de artista espanhol no coração de Veneza é alvo de críticas.
Ei, obrigada pela leitura até o fim!
Algumas pessoas me perguntaram sobre o eclipse total citado na última edição, mas em Portugal infelizmente foi visível parcialmente apenas no Arquipélago dos Açores — uma viagem que ainda preciso fazer e aceito dicas, hein?
Alguém aí pôde ver ou estava neste voo que vendeu bilhetes em uma rota pensada para assistir ao fenômeno astronômico? As imagens são estonteantes!
Bom proveito e até a próxima edição – toda sexta-feira na tua caixa de entrada ou no aplicativo do Substack!
Um abraço e até semana que vem,
“Não acredito que cada um tenha o seu lugar. Acredito que cada um é um lugar para os outros”, Daniel Faria, poeta português.
que news mais linda! e que referências maravilhosas, Gabi. saí clicando e me encantando em todas. azulejaria é uma arte tão linda <3 amei!
Gabi, também sou fascinada por azulejos. Quando fui à Índia trouxe alguns comigo, mas que meu ex levou quando nos separamos :(
Esses azulejos portugueses, mas nem tão portugueses assim, como você desenvolveu no texto, são de uma beleza monumental! Taí um lugar que eu visitaria, o museu de azulejos.
Bjss