50 | A viagem do cinema 🎬
No clima do Oscar, uma seleção de filmes de estrada para viajar pelo mundo com a sétima arte.
Meus personagens são andarilhos, pessoas em busca de algo. A viagem é um estado de espírito para eles. Do mesmo modo, a viagem do cinema é uma forma de trabalhar que nos permite viver o que é o filme, a aventura que ele deve representar para o público.
Wim Wenders, cineasta e um dos principais representantes do Novo Cinema Alemão. Recentemente, conhecido pelo filme Perfect Days, que ficou em cartaz no cinema de rua que frequento por mais de um ano.
Vivo uma fase cinéfila. Apesar de ter crescido em uma casa quase sem livros, adquiri o hábito da leitura na adolescência, vindo a consolidá-lo durante a faculdade. A viagem do cinema, por sua vez, é ainda mais recente na minha vida. É claro que assisto filmes há um bom tempo. Refiro-me à experiência de sair de casa, entrar em uma sala, e escapar da realidade por algumas horas, cada vez mais longas, por meio das imagens em movimento.
Para que haja cinema, é preciso que haja cinemas. Venho de um lugar onde as salas transformam-se em igrejas evangélicas. Em contraste, habito outra cidade que tem por hábito reabilitar antigos cinemas de rua, enchendo-os de vida. Nos últimos anos, passei a frequentá-los com regularidade.
A leva de filmes do Oscar 2024 me empolgou e lembro-me de que fui assistir a quase todos os indicados. Agora, o conjunto das películas que concorrem à estatueta mais almejada da indústria não me fisgou tanto. A exceção, é claro, fica por conta de Ainda estou aqui.
Hoje, participo de um clube de leitura em um cinema de rua, tenho cartão fidelidade em outro e assinei aquele streaming voltado aos admiradores da sétima arte. Escrevo esta edição enquanto espreito as estreias da semana e faço planos para assistir a Parthenope, a mais recente declaração de amor a Nápoles de Paolo Sorrentino. Só me falta criar uma conta no Letterboxd, mas aparentemente isso é coisa da geração Z.
Nesta incursão pessoal pelo o que a tela grande projeta, vim a descobrir um gênero que traz as viagens em seu cerne: road movie, os filmes de estrada. Foi com Hit the Road (2021), do diretor iraniano Panah Panahis, a que assisti em uma sessão ao ar livre, à beira do rio Douro, em uma noite de verão, enquanto bebericava um vinho verde. A cena em que o menino coloca metade do corpo para fora do teto solar, com o carro a singrar o deserto, e dança ao som da música, a despeito de toda a tensão familiar que escala ao longo da viagem, tornou-se uma das minhas prediletas de sempre.
Depois, veio o fenômeno Perfect Days (2023). Não, não se trata de um road movie, mas o seu diretor é um expoente no estilo. Soube porque fiquei obcecada com o filme e quis conhecer mais de Wim Wenders. Para minha surpresa, Alice nas Cidades (1974), este sim um filme de estrada, é a sua produção preferida. “Eu não sabia que era possível fazer filmes enquanto se viajava. Não sabia que podia entrar em um carro, começar uma história e o itinerário e a história acabariam por se tornar um só. Descobri isso enquanto fazíamos Alice nas Cidades. Senti que estava no meu lugar. É o tipo de cinema que nasci para fazer”, disse em entrevista.
Neste filme de 1974, um escritor perde o trabalho em função de um bloqueio criativo. Não consegue entregar um artigo sobre o interior dos Estados Unidos, mas registra aquela atmosfera em polaroids. No caminho de volta para Munique, uma mulher desconhecida confia a ele a sua filha e desaparece. A dupla passa, então, a procurar a avó da menina em diferentes cidades europeias guiada apenas pelas suas memórias. Dizem que Alice in den Städten é o prenúncio de outro road movie que viria a filmar uma década depois: Paris, Texas (1984). Mais recente, Buena Vista Social Club (1999) é um documentário que acompanha a ascensão do grupo musical cubano pelas ruas de Havana. Em todos, Wim Wenders consegue transmitir aquela presença incontornável dos personagens com as cidades onde estão.
O que me fascina nos filmes de estrada é precisamente o que também reside nas viagens, ou seja, a mudança de perspectiva que só o movimento, a troca de cenário e a fuga temporária da rotina são capazes de proporcionar. E também a busca por algo, uma paisagem ou a si mesmo, além dos contrastes entre metrópoles e interior, o que está fora e o que está dentro. As suas raízes estão em jornadas épicas como a Odisseia, que inclusive está sendo adaptada para o cinema por Christopher Nolan e grande elenco. Com previsão de lançamento para 2026, The Odyssey será filmado nos próximos meses no Reino Unido, no Marrocos e na Sicília — precisamente no arquipélago onde passei férias no ano passado.
Na tentativa de quebrar a maldição de Ulisses, ganha importância lembrar de road movies protagonizados por mulheres que se lançam ao desconhecido, ainda uma minoria. De imediato, surgem-me à memória dois filmes a que assisti quando nem sabia da existência do estilo. O adorável Little Miss Sunshine (2006), que retrata uma viagem de família em uma Kombi amarela para levar uma menina a um concurso de beleza, e o impactante Nomadland (2020), com uma atuação fenomenal de Frances McDormand no papel de uma mulher que perde tudo e passa a viver como nômade em um trailer também no interior dos Estados Unidos. Mas talvez o grande clássico seja Thelma & Louise (1991), uma dívida que ainda preciso quitar.
Já para representar a lusofonia, destaco Bye Bye Brasil (1980), de Cacá Diegues, que desapareceu há poucos dias, não sem antes levar arte para o interior de um país continental onde a televisão ainda não havia chegado. Veredas (1978), de João Cesar Monteiro, e Comboio de Sal e Açúcar (2016), de Moçambique, completam a minha pequena lista de filmes de estrada falados em português.
Mesmo que o carro seja o meio de transporte mais comumente retratado nos road movies, talvez pela estrada simbolizar um caminho de liberdade, também gosto de pensar em outros modais. E la nave va (1983), de Federico Fellini, acontece em alto mar em um luxuoso navio transatlântico. Apesar de ser um filme com mais de quarenta anos, consegue explorar a tensão de classe existente no viajar, inclusive com temáticas atualíssimas como a questão da imigração e dos refugiados. Algo que The White Lotus e a sua grande sátira social também têm buscado fazer ao longo de três temporadas. E, por falar em série, a minha menção honrosa vai para Ripley, um achado recente que me impactou pela fotografia em preto e branco de lugares tão explorados turisticamente não só em cores, mas em saturação.
Já o documentário Visages, Villages (2017), de Agnès Varda e JR, exprime o que de melhor existe nas viagens: o encontro com outras pessoas. A dupla de artistas pega a estrada para retratar a vida rural francesa em um veículo que é uma espécie de cabine fotográfica. É comovente como as histórias mais simples são as que mais emocionam, fazendo refletir sobre a passagem do tempo, a importância de registrar o que se vive e, claro, a memória. No fim, é tudo o que temos.
Incrível pensar que é esta mesma temática, a da lembrança, que leva o Brasil à cerimônia do Oscar no próximo domingo. De volta, mais de 30 anos depois. Primeiro com a mãe, que protagonizou talvez o mais belo dos nossos filmes de estrada, Central do Brasil (1998), agora com mãe e filha, que carregam tanto no olhar. É precisamente uma fotografia de Rubens Paiva na televisão que parece ancorar novamente no presente Eunice ao final de Ainda estou aqui, mesmo que momentaneamente em função do Alzheimer. Justo ela, que nunca se esqueceu.

UMA ÚLTIMA VISTA D'OLHOS 👀
[Inspiração para espreitar antes de ir embora]
— Allégorie Citadine, curta-metragem da cineasta italiana Alice Rohrwacher, irmã da atriz que fez a Lenù em My Brilliant Friend, que tenho adorado descobrir em um clube de leitura no cinema;
— Desperate Literature, uma das livrarias mais interessantes de Madrid, que acaba de ser salva da gentrificação;
— O último Azul, filme de Gabriel Mascaro que levou o Urso de Prata na Berlinale, comprovando a boa fase do cinema brasileiro;
— O gosto de Turin, como o vermouth, de um elixir médico a um aperitivo estrelado, marca a história da cidade italiana;
— O problema de Emília Pérez, crítica de Paula Jacob, alguém que vale a pena ficar de olho, sobretudo neste fim de semana.
Obrigada por ler até o fim! Estou muito feliz por enviar a edição de número 50. É um marco, não é? Por muitas mais :-)
Bom proveito, bom Carnaval para quem é de Carnaval, bom filminho para quem é de filminho! E, claro, boa viagem para quem pegar a estrada, né?
Até a próxima!
“Uma das coisas que eu mais amo nesta vida é que não há despedida final. Conheci centenas de pessoas aqui e nunca dei um adeus definitivo. Eu sempre só digo: ‘Vejo você na estrada’. E vejo. Seja em um mês, seja em um ano, ou daqui a muitos anos, sempre os revejo”, diálogo presente no filme Nomadland, que ganhou o Oscar em 2020.
Adorei o texto! Sou uma grande fã de filmes de estrada. Esse mês revi "Central no Brasil" no cinema e chorei tanto vendo a dupla atravessando esse Brasil profundo.
Parabéns pelo texto cinquentenário! Ótima leitura, como sempre agradável e com muitas referências de qualidade. Já vi alguns filmes que você citou e outros anotei para ver. Lembrei de um road movie dirigido por Walter Salles: Diários de Motocicleta.