Portal do Mundo: Volta aos Açores em quinze dias, de José Pedro Castanheira
#9 — Inicialmente enviado por e-mail, diário de bordo das aventuras e desventuras de um pequeno veleiro por mares muito navegados é transformado em livro que inspira viagem ao arquipélago ⚓
Nunca estive nos Açores, mas os Açores já estiveram em mim. Quase sempre estão. Sinto a presença das nove ilhas vulcânicas agora, enquanto escrevo estas linhas.
Explico: tenho o corpo gelado por passar a tarde à beira do rio Douro, na altura da sua foz que dá no mar, sob o efeito de uma neblina que coloca em xeque o verão. A bruma com ar de mistério chega ao continente devido ao Anticiclone dos Açores, um grande centro de altas pressões atmosféricas que influencia o clima aquém e além-mar: na Europa e até nos Estados Unidos.
Bem antes de aportar deste lado, vivi na “décima ilha” deste arquipélago. Perdida no Atlântico Sul está Desterro, chamada mais comum e injustamente de Florianópolis, o pedaço de terra colonizado por açorianos.
Por isso, tenho medo de viajar aos Açores. A razão reside na expectativa alta, altíssima. Com receio de me frustrar, penso que talvez seja melhor conservar a imagem das ilhas no meu imaginário. Mas a verdade é que morro de curiosidade e sinto que o embarque está próximo.
No fim do ano passado, enquanto passeava por Lisboa, comecei a viagem ao arquipélago: comprei na livraria Palavra de Viajante a Volta aos Açores em quinze dias: Diário de bordo de uma viagem para (não) esquecer, do jornalista português José Pedro Castanheira. Para além do azul-anil, a edição da Tinta da China me chamou a atenção por indicar que se tratava de um livro premiado em um concurso nacional de literatura de viagens com nome de mulher, Maria Ondina Braga — assunto para outra edição.
Com 192 páginas, mapas, ilustrações e fotografias em preto e branco, a Volta aos Açores em quinze dias: Diário de bordo de uma viagem para (não) esquecer é um livro que materializa uma viagem também muito desejada por seus tripulantes. A empreitada, planejada à exaustão por cinco amigos, alguns deles familiares, teve de ser adiada mais de uma vez por conta da pandemia.
Aliviada a emergência global, as velas foram içadas em maio de 2022 para a primeira de sete etapas a serem cumpridas ao longo de uma quinzena. As ilhas das Flores e do Corvo foram postas de lado em razão da distância face ao tempo curto que os marinheiros dispunham para permanecer a bordo do pequeno veleiro Avanti, palavra italiana que indica ir adiante.
Com pouco mais de 2,3 mil quilômetros quadrados, os Açores espalham-se pelo Oceano Atlântico à esquerda de Portugal no mapa, mas bem longe da costa. Fazem parte da história do país desde que foram escala para as Grandes Navegações que, dentre as várias expedições, resultaram na chegada ao que hoje se conhece como Brasil. Não se tratou de qualquer circum-navegação, mas de uma em mares muito navegados.
Regiões autônomas, as nove ilhas também possuem peculiaridades administrativas políticas e históricas, o que o autor pincela em alguns trechos do seu diário, recordando-se dos tempos de repórter. Castanheira repete mais vezes do que era necessário a sua dificuldade em abandonar os cacoetes jornalísticos, o que somado à formalidade do português escrito em Portugal por vezes torna cansativa a leitura. Por outro lado, o acaso compensa ao proporcionar entretenimento para quem lê a Volta aos Açores em quinze dias: Diário de bordo de uma viagem para (não) esquecer, talvez pânico para quem a vivia: ondas de quatro metros e ventos de 40 nós.
A travessia marítima de ontem, entre São Miguel e a Terceira, prometia ser auspiciosa, com os ventos a soprarem de feição e a levarem o Avanti a navegar, feliz e lampeiro, apenas com as duas velas. Mas o cenário cedo se complicou — e de que maneira! Os deuses tomaram‑se de fúria e começaram a soprar mais do que era necessário e suposto, e o mar revoltou‑se sobremaneira. O mal de mer voltou a atacar parte da tripulação, entre os quais este escriba, que até então havia escapado incólume.
Mesmo com o enjoo marítimo que por vezes abate até os marinheiros mais experientes, a tripulação teve que recalcular a rota inúmeras vezes. Acontece que a previsão meteorológica nos Açores é quase acessória, uma vez que céu & mar agem à sua própria maneira e instabilidade. Uma lição de humildade diante da força da natureza.
Nas paradas em terra firme, o escritor recobrava o fôlego para caprichar nas descrições sobre a paisagem açoriana. Lá também é comum haver nevoeiro marítimo, além de muito verde, hortênsias, vacas (há mais animais que pessoas), piscinas naturais, lagos e, claro, vulcões — nos mais inativos, é possível conhecê-lo até mesmo por dentro. Castanheira ainda mistura o relato de viagem às suas memórias e, como já visitou algumas das ilhas várias vezes e conhece bem suas particularidades, arriscou-se a indicar uma e outra coisinha.
A grande surpresa veio quando o vírus da covid-19 novamente atrapalhou os planos do cronista, que teve de abandonar a tripulação antes da hora em uma época que ainda se fazia isolamento profilático. Ficou em um quarto de hotel no Faial enquanto queria estar no mar, calmo ou agitado, como fosse. Frustraram-se todos, mas divertiram-se ainda assim. Souberam apreciar o que surgiu e o que não. É em mares agitados que se colhem viagens dignas de serem contadas, afinal.
Engana-se quem pensa que as agruras afastaram Castanheira da água salgada ou que tenha decidido investir em um veleiro maior e, portanto, mais propício ao oceano. Em 2023, a sua aventura aconteceu a bordo de um barco ainda menor, de nome açoriano São Jorge. O destino foram as ilhotas que pertencem à Madeira, mas que estão mais próximas das Canárias, saindo de Portugal continental.
O novo relato de navegação à vela já pode ser apreciado no À descoberta das ilhas selvagens (Tinta da China, 2024, 168 páginas). Além de tempestades, a tripulação aguerrida também foge de orcas desta vez. Caixinha de surpresas, o mar é mesmo uma cachaça das boas.
🌊 VIAGENS OUTRAS
[Para onde este portal me levou e também pode te levar]
— Largados e pelados nas férias, há cada vez mais pessoas pagando para ativar o modo sobrevivência em ilhas tropicais isoladas [link];
— Nas Canárias, voluntários ajudam imigrantes a enfrentar o trauma do mar [link];
— O perigo e a beleza da costa do Taiti, onde surfistas buscaram medalhas olímpicas e a sobrevivência [link];
— Rabo de peixe, série Netflix que se passa na comunidade de mesmo nome mais pobre da Europa, nos Açores [link];
— A imortalidade da medusa explicada por um biólogo [link];
— Sono felice solo in mare, fala do filme Caro diario, do Nani Moretti [link];
— Rota das algas, um passeio para conhecer (e comer) as algas da costa portuguesa [link];
— Vocabulário náutico, edição deliciosa da
, por [link].
texto delicioso! sou muito fã <3
Que engraçado né, também tenho esse medo de ir para os Açores e me frustrar. Mas já vou dar jeito de mudar isso, porque depois desse teu texto fiquei com vontade de apenas ir. Adorei a dica de leitura!