47 | Cidades migrantes 🛄
Como imigrantes tornam os lugares mais interessantes e por que conhecer as cidades a partir de contra-narrativas.
Talvez todas as viagens sejam feitas para termos a certeza de onde vimos.
Susana Moreira Marques, escritora portuguesa, em Lenços pretos, chapéus de palha e brincos de ouro.
Há seis anos sou migrante: emigrante no Brasil, imigrante em Portugal. Há quase uma década, comecei a sentir os ventos da política no meu país mudarem. Como a direção não me agradava nem um pouco, comecei a me organizar para viver uma temporada fora. Minha bússola interna apontou para a península onde havia experimentado a liberdade pela primeira vez alguns anos antes.
A verdade é que também saí do meu país para poder viajar mais facilmente. Como se a imigração não fosse por si só uma viagem, com a diferença de que infinita. Não que seja preciso justificar-se, embora perguntem sempre: migrar é um direito humano, então refiro-me às motivações.
Uma vez na Europa, a circulação é menos dispendiosa, além de ser possível viver de outros modos. Não tão voltados à produtividade, mais próximos da contemplação, ainda que os Estados de bem-estar social que permitem isso tenham sido fundados graças à exploração de outros povos. Às vezes pergunto-me se estaria saldando uma dívida.
Acontece que o continente velho anda às voltas com a imigração. Talvez sempre esteve, mas agora com o discurso mais inflamado por algoritmos que contribuem com a eleição de líderes da extrema-direita, tão desfeita à prática milenar de mudar-se de lugar. O outro é visto como a razão de todos os problemas contemporâneos, mais ainda se vier do Sul global. Os do Norte são expatriados, não imigrantes, em mais uma comprovação de que importa usar as palavras certas.
Não à toa, há poucos dias foi possível assistir à nova-velha posse de um líder mundial cuja primeira medida foi a deportação em massa de “imigrantes ilegais”, como se viver dependesse de alguma legalidade. Em uma terra forjada pela imigração em busca do sonho americano tão insistentemente vendido, brasileiros indocumentados foram levados de volta algemados. Não é preciso ir muito longe para citar outra hipocrisia relacionada à imigração.
Da terra lusitana de onde escrevo, sempre emigrou-se. São inúmeros os portugueses que saíram em busca de uma vida melhor em países como França, Suíça, Inglaterra e Canadá. Quando os ventos mudaram, porque eles sempre mudam, e Portugal passou a receber imigrantes em uma abertura que também incluiu o turismo, era de se esperar acolhimento, ao menos compreensão, mas isso nem sempre acontece. Entre quem está de passagem e quem decide estabelecer-se, a hospitalidade é diferenciada. Talvez também por isso eu goste de ser turista na cidade que escolhi viver.
Há quem não consiga disfarçar o incômodo em dividir espaço com forasteiros, provando que, apesar dos efeitos incontornáveis da globalização, ainda são provincianos. Até quando as notícias relacionadas são positivas, fazem questão de parecer o contrário. Entretanto é visível a transformação das cidades com a chegada de pessoas de fora. Tornaram-se mais plurais, por óbvio, porque acrescentam algo à cultura local, sem abrir mão do respeito às tradições, fazendo nascer algo novo. Evidentemente há desafios, sendo políticas públicas eficazes a contrapartida, especialmente quando há necessidade em funções demográficas, como é o caso de Portugal.
Lembro-me de que precisava viajar às capitais europeias para comer comidas de outras partes do mundo, feitas por mãos imigrantes, o que definitivamente não é mais necessário. Ouço cada vez mais idiomas diferentes, e não apenas em frente a pontos turísticos. Visito exposições e mostras de cinema feita por gente de todas as partes do globo. Constato a presença de pessoas refugiadas de guerras. Desterradas, trazem as suas terras nos seus corpos, que se fundem aos novos espaços. Habito uma cidade menos monótona culturalmente, e celebro isso, porque também venho de uma mescla. Não viemos todos?
Em tempos de xenofobia acirrada, penso ser importante fortalecer as comunidades de imigrantes. Ao viajar, pode-se tentar olhar com olhos não só estrangeiros, mas de quem está à margem. Conhecer histórias não oficiais, geralmente abafadas, mas que por isso mesmo merecem ser ouvidas. Daqui, o African Lisbon Tour e o Bairro Árabe ilustram o meu ponto ao dedicarem-se a contar as histórias africanas, árabes, muçulmanas e amazigues que entrecruzam a capital portuguesa.
Quem vem de fora e acaba por ficar, possivelmente experimenta a cidade de maneira diferente quando comparada aos nativos. Olham diferente para determinados monumentos — o Museu do Tesouro Real significa outra coisa para quem vem de uma ex-colônia. Quando são vistos, não raro também são diferenciados, porque de fato são, mas positivamente pela coragem de deixar tudo o que é familiar para trás em busca do desconhecido. Com sorte e esforço, passam a ser locais, ainda que de outras formas. É preciso passar a conhecê-las também, mais do que nunca.
Em tempo: feliz ano novo chinês! Este é o ano da serpente, símbolo de adaptabilidade, regeneração e transformação. É sobre trocar de pele. Em mandarim, não por acaso, uma “pessoa serpente” é uma gíria para migrante, soube pela Aigo, uma livraria em São Paulo especializada no assunto. Que o movimento, do tipo que for, seja a constante em 2025.
FLÂNEUSERIE 💃🏻
[Recomendações de lugares por onde andei, testei e aprovei]
— São Paulo, onde há até o Museu da Imigração, além de bairros de imigrantes, como o Bom Retiro;
— Londres, a cidade que reflete todo um mundo;
— Berlin, a capital alemã reconhecida por sua diversidade cultural, sobretudo em bairros como Kreuzberg, Wedding e NeuKölln;
— Paris, outra grande cidade nem sempre hospitaleira, mas onde é possível ter uma perspectiva do mundo árabe;
— Lisboa, que também já foi a capital de um império e gradualmente passa a mostrar a diversidade advinda daí.
SALVO EM ONDE QUERO IR 💾
[Onde ainda não fui, mas salvei na lista para ir]
— Nova Iorque: Lower East Side é o bairro fundado pelo primeiros imigrantes que chegaram à cidade, cuja experiência é celebrada no Tenement Museum;
— Liechtenstein: o principado no centro da Europa que é composto por mais de 60% de imigrantes, entre alemães, suíços, austríacos, italianos e portugueses;
— Emirados Árabes Unidos, Qatar e Kuwait: as três nações ricas em petróleo que atraem cada vez mais imigrantes, nem sempre nas melhores condições de trabalho;
— Canadá: sempre necessitou de imigrantes, atraiu-os, mas agora coloca um freio na imigração;
— Austrália: outro membro da Commonwealth que também prevê diminuir a presença estrangeira, que é bastante considerável.
→ Tem alguma recomendação? Deixa pelos comentários!
UMA ÚLTIMA VISTA D'OLHOS 👀
[Inspiração para espreitar antes de ir embora]
— Koyo Kouoh, a primeira mulher negra e africana que foi anunciada como a próxima curadora da Bienal de Arte de Veneza, em 2026;
— Terra estrangeira (1995), outro filme de Walter Salles com Fernanda Torres e Banzo, novo filme sobre a nostalgia das pessoas escravizadas;
— Os imigrantes do TikTok, uma reportagem sobre a glamourização da vida desterrada, uma armadilha;
— DeBÍ TiRAR MáS FOToS, o novo álbum de Bad Bunny que é uma celebração à cultura latina, esta parte da América que sempre foi grande;
— Sally Rooney, a principal atração do festival Louisiana Literature, que acontece em agosto no incrível museu ao ar livre de mesmo nome, nos arredores de Copenhague, na Dinamarca.
Obrigada pela leitura! Sobreviveram à blue monday sem comprar bilhetes para nenhum lugar? Eu confesso ter sucumbido às tentações.
Também sigo impactada pelos feitos históricos de Ainda estou aqui. Gostei um tanto das palavras da Renata Almeida Magalhães, que preside a Academia Brasileira de Cinema: “Ainda estou aqui” é o resultado dessa insistência, desse ciclo evolutivo, mas, sobretudo, porque é um filme que nos faz lembrar que o Brasil vale a pena. Continuamos únicos e interessantes, capazes de fazer com que uma história profundamente brasileira, contada por um cineasta brasileiro, se conecte com o mundo.”
Bom proveito e até a próxima edição!
Um abraço,
“Não faz mal não saberes quem és, viver no país dos outros, que é o país mais belo do mundo. Senta-te num canto, observa-os dançar. Não te transformes em pedra, porque a pedra não arde, e leva o fogo contigo, para onde fores.”
Leïla Slimani no texto “Perguntaste-me se escrevia para saber quem sou”, sobre viver com a identidade fragmentada por dois países.
Texto salvo para ler e reler, preciosas reflexões ♡
é sempre mais fácil culpar os outros por frustrações que são nossas. é triste que tenhamos cada vez mais possibilidade de nos conectar e estejamos tentando nos dividir.