43 | Cozinha de paisagem 🍲
Quilometragem zero, territórios gastronômicos e restaurantes que são destinos de viagem.
What people do with food is an act that reveals how they construe the world — Marcella Hazan, cozinheira e escritora italiana. Autora do melhor molho de tomate.

Só penso em comer. Nesta época do ano, o que falta de variedade nas prateleiras de frutas, sobra em cogumelos, trufas, castanhas, abóboras, panettone e por aí a lista vai. Não tenho dúvidas de que o outono é a estação da comida de conforto para enfrentar o decréscimo gradual das temperaturas.
Mas foi na primavera que tive a melhor refeição de 2024, já que estamos em tempos de retrospectivas. E não só isso, que conheci o conceito da cozinha de paisagem. Foi n’O Loxe Mareiro, uma taberna atlântica na Galícia, a região noroeste da Espanha sobre a qual já dediquei toda uma edição.
O nome em galego, raiz do nosso português, vem de lota, lugar que se vende peixe fresco, como era a casa que abriga o restaurante situado na ria de Arousa com vistas para a ilha de Cortegada. Mareiro é o vento que vem do mar. Logo no início do serviço, que começa e termina bem junto às ondas quase sempre suaves, ofereceram uma kombucha de louro, já que estávamos em frente à maior reserva europeia dessa folha aromática.
Depois, entregaram um cartão a anunciar o conceito: cociña de paisaxe. No verso, constavam os horários das marés baixa e alta, que ditam o horário de trabalho dos pescadores e marisqueiros da região, os fornecedores do banquete que seria servido a seguir. Ao embarcar na viagem marítima proposta pelo menu degustação, deixei-me levar pelo vento mareiro pensado pelo chef Iago Pazos. “Como taberneiros temos a responsabilidade de ser os transmisores do legado do territorio”, sustenta o criativo em uma avaliação sobre a última temporada.
Começamos com um prato de ostras in natura, que incluía a variedade ancestral “ribeiro”. Tentam resgatar o seu consumo que, mais recentemente, era destinado apenas à fertilização do solo. Foi destacado com uma gotinha de vinagre de maçã.
Enquanto experimentava uma casta rara de vinhos própria da Galicia, a ratiño, chegaram mais dois pratos: navajas de captura, enormes e gordinhas, e berbigão com raspinhas de limão siciliano que, apesar do nome, dá aos montes em toda a península ibérica. Segui, então, para uma mesa interior, ao lado da cozinha. Com um olho na finalização dos pratos e outro na janela para o oceano, recebemos um mezze do mar: seis pratinhos acompanhados de pão, manteiga e azeite. Uma das receitas foi tirada de um livro da região que data do século 15, provando o tanto que a tradição importa. Salada de pulpiño, um polvo pequenino, empanada aberta de peixe, escabeche de marisco com jamón e pescado defumado como o presunto.
Tudo era produzido na casa ou advindo dos arredores, até onde a vista alcançava, dentro da diretriz quilometraxe cero. O azeite foi a única exceção em todo o almoço: vinha da Castilla e fora trazido por um cliente que se tornou amigo. Cozinha de proximidade em todos os sentidos.
Já estávamos quase satisfeitos, quando começaram a vir os lances de pesca do dia. O primeiro foi servido cru, no que consideram a forma mais nobre, junto com um caldo suave. O segundo me transportou para a minha infância em Bombinhas: frito com alface, mas aqui mais refinado em um tempurá levíssimo, redução de pêra nas folhas e molho chimichurri para unir tudo. O arremate final ficou por conta de um peixe assado no forno com batatas banhado com um molho brilhoso reduzido por horas a partir da cabeça e dos espinhos. Amêijoas em um caldo das algas consumidas pelos percebes, outro clássico da região, fizeram as vezes de guarnição.
Conversa vai, conversa vem, nos conduziram mais para perto do mar para encerrar o almoço que já durava quase três horas. Era o momento de abocanhar uma seleção de sobremesas e provar que há sempre espaço para doce, sobretudo depois de tanto sabor a mar. Pavlova de kiwi e sorbet de limão no próprio abriram os trabalhos, que foram finalizados com trufa de chocolate negro com flor de sal, financier de amêndoas e cañitas com creme de confeiteiro.
Café foi imprescindível para manter os olhos abertos nas duas horas de carro até em casa. Quando os fecho, ainda sonho com essa refeição, que foi verdadeiramente um passeio pelas Rias Baixas. Depois, pesquisando sobre a cozinha de paisagem, descubro que também é a forma com que a gastronomia asturiana é promovida enquanto destino. E, de forma mais ampla, é algo que está junto à Denominação de Origem Protegida, Indicação Geográfica Protegida e Especialidade Tradicional Garantida, todos selos criados na União Europeia para proteger cozinhas regionais.
Não foi a primeira vez e, espero, nem a última que fiz uma viagem motivada pelas refeições, que conheci um lugar a partir do que o seu território oferece em termos de comida, bebida e, claro, cultura alimentar. Também guardo na memória um festim no Cavallino, o restaurante da Ferrari comandado por Massimo Bottura, quem guiou a degustação da Emilia-Romagna. É uma das minhas formas preferidas de desbravar um território. Mas também assumo que se não gosto muito da comida local, parto para a cozinha internacional, como aconteceu de comer tacos em Copenhague uma vez.
Observo que há cada vez mais restaurantes atentos àqueles que também viajam para comer bem. No Porto, este laboratório turístico onde vivo, não param de abrir espaços atentos à demanda foodie. Até demais, para falar a verdade. Uma decepção recente foi um restaurante situado dentro de um palácio que, hoje, é um hotel do grupo Pestana. Já uma surpresa foi a cafeteria do Cozinha das Flores, a parte gastronômica do The Largo. Restaurantes de hotéis são mesmo a hit ou a miss, por isso talvez seja melhor optar por aqueles reconhecidos como destinos de viagem.
Seja tasca ou fine dining, o ponto é que viajar amplia o repertório, neste caso o do paladar. Sinto que passei a cozinhar melhor desde que meus olhos voltaram-se com curiosidade aos menus regionais. Um aprendizado recente é o de comprar massa trafilata al bronzo, um método antigo que dá mais aderência ao molho. Sabe bem.
Também comecei a valorizar mais cada ingrediente em sua sazonalidade, a base de pratos saborosos. Pesquisando opções de queijos para servir no Natal, encontrei uma joia: ové japonais, um tipo mole francês sob o qual descansa uma folha de sakura, a cerejeira do Japão, que acrescenta notas de canela ao queijo. Duas culturas em um só alimento, que inclusive é de temporada.
Nisso tudo, a comida também veio a ser souvenir, assim como os livros. Na viagem à Bienal de Arte de Veneza, voltei para casa com o catálogo da mostra, mas também com um caderno de receitas de verão, que dividiram espaço na mochila com gorgonzola e pecorino. Pelo estômago, é um jeito guloso de conhecer, lembrar-se e revisitar lugares.

UMA ÚLTIMA VISTA D'OLHOS 👀
[Inspiração para espreitar antes de ir embora]
— Preços diferentes para turistas, é o que restaurantes do mundo todo estão praticando e talvez estejam certos;
— Gabrielle Münter, expressionista alemã que usava as suas fotografias como base para as suas pinturas, está com uma exposição em cartaz na capital espanhola até o início de 2025;
— Osteria, trattoria e ristorante, para quem quer perceber de uma vez por todas as diferenças italianas;
— Bagagem de porão ou de cabine, eis a questão discutida neste ótimo vídeo;
— “O maravilhamento é a nova espiritualidade”, é o que diz o futurista Jason Silva em entrevista.
→ Leia também:
Obrigada pela leitura! A edição de hoje parte de uma legenda de Instagram que provavelmente pouca gente leu em função do tamanho e da concorrência com vídeos curtos.
Espero que você tenha desfrutado da viagem gastronômica e, se puder, me escreva de volta dizendo coisas. Bom proveito e até a próxima edição!
Um abraço quentinho,
“I depicted the world the way it essentially appeared to me, how it took hold of me”, Gabrielle Münter, pintora expressionista alemã.
que delícia esse tour gastronômico!
Como as estações são menos definidas no Brasil e também depois da tecnologia permitir que certas comidas estejam presentes o ano todo, é muito raro aqui ver gente fazendo uma culinária mais sazonal. Talvez no Sul. Quando eu era criança no NE a gente tinha as comidas de milho apenas no meio do ano. Não existia pamonha em outras épocas. Mas é a única coisa que me recordo de ser assim. E hoje já não o é, tem pamonha o ano todo à venda.