45 | Literatura de viagem 🔖
Dez livros pelos quais viajei em 2024 e outros dez por onde quero ir em 2025.
“Ler mudou, muda e continuará a mudar o mundo”, Virginia Woolf.
A minha concepção de literatura de viagem tem o tamanho do globo terrestre. Se você já leu alguma edição de Portal do Mundo, onde resenho livros do gênero, já deve ter reparado que encaro a classificação de forma mais ampla.
Tudo começou com M Train, de Patti Smith, passou por Escute as feras, de Nastassja Martin, e chegou até Kramp, de María José Ferrada. Oficialmente, apenas o primeiro encaixa-se no que estudiosos chamam de travel literature. O segundo é visto como dificílimo de classificar, ficando algures entre a escrita de viagem e a autobiografia, enquanto o terceiro é pura ficção.
Acontece que, para mim, é possível viajar a partir da leitura de qualquer livro. Fica mais fácil quando se presta atenção às descrições das paisagens, à forma com que quem narra se sente em determinado lugar e como retorna à casa, às contextualizações possíveis de serem feitas e por aí vai. Basta que os deslocamentos sejam o fio condutor da leitura e das reflexões advindas daí.
Oficial ou não, a literatura de viagem é um estilo que permeia as minhas leituras. Tanto para alimentar as minhas viagens, quanto a minha escrita, além de aquietar-me quando não posso fisicamente sair por aí.
Por isso, decidi listar dez livros relacionados que li em 2024. E, como uma leitura nunca se encerra em si mesma, em cada um deles acrescentei outro título que me despertou a curiosidade e que pretendo ler no ano que se avizinha. Vale dizer que não há ordem de preferência, apenas cronológica.
Eis os livros de viagem cuja leitura recomendo:
1. Sevilha andando, de João Cabral de Melo Neto
Enquanto diplomata, o poeta brasileiro viveu e se apaixonou pela capital da Andaluzia, na Espanha, entre as décadas de 1950 e 1960. Nesta coletânea, é possível conhecer a cidade a partir dos seus pés de flâneur, dos seus olhos atentos aos contrastes e do seu coração sensível ao que Sevilha tem de mais bonito. Assim como gosto de começar o dia lendo poesia, iniciar as leituras do ano com versos também foi inspirador.
→ O que vem ao caso, de Inez Cabral: é a perspectiva da filha do poeta a partir das viagens motivadas pelo trabalho do pai ao longo de toda a vida. Anotei a dica a partir da newsletter da
.2. Lenços pretos, chapéus de palha e brincos de ouro, de Susana Moreira Marques
O segundo livro que li desta que veio a tornar-se uma das minhas autoras portuguesas favoritas é um relato de viagem motivado por outra viagem documentada. Susana percorre o rastro de Maria Lamas para traçar um perfil das mulheres portuguesas de antigamente, mas também de hoje. Foi uma leitura surpreendente que culminou com a ida à exposição fotográfica das duas obras em Lisboa.
→ A história de Roma, de Joana Bértholo: outra autora portuguesa em ascensão, desta vez com um romance entre uma lisboeta e um estrangeiro que se reencontram dez anos após a separação. A capital é o cenário, mas também Buenos Aires, Berlim, Marselha e Beirute são panos de fundo para a história. Quem leu e aprovou foi a
3. Direito à vagabundagem: as viagens de Isabelle Eberhardt, de
Fruto de extensa pesquisa da jornalista e historiadora brasileira, este livro é uma oportunidade de mergulhar na mente e nos contextos vividos pela viajante, que se disfarçava para poder viajar com mais liberdade. E também nos escritos, já que Isabelle escreveu consideravelmente para o pouco tempo vivido: morreu precocemente afogada no deserto. A sua concepção de vagabundagem, que já foi crime, é fascinante.
→ Mujeres en ruta, de Lucie Azema: a jornalista francesa conhecida por questionar a perspectiva masculina na literatura escreve sobre outras mulheres que buscaram emancipação por meio das viagens.
4. O perfume das flores à noite, de Leïla Slimani, com tradução de Francesca Angiolillo
Apesar de trancafiada por uma noite no museu Punta della Dogana, a escritora franco-marroquina enxerga Veneza por completo. O resultado está neste livro curto, mas poderoso, que mescla observações da cidade com a sua memória. Lembro-me de que fiquei fascinada com a sua perspectiva em relação ao flanar quando se é mulher. O livro também tem o selo de aprovação da
, uma especialista veneziana.→ Marca d’água, de Joseph Brodsky: relato acumulado de dezessete viagens a Veneza feitas por este vencedor do Nobel de Literatura, recentemente reeditado com fotos e textos complementares pela Âyiné, no Brasil.
5. Frio o bastante para nevar, de Jéssica Au, com tradução de Fabiane Secches
Um livro contemplativo, característico da cultura oriental, que amei tanto quanto o filme Past Lives, de Celine Song. Há paralelos entre as duas histórias, mas nestas páginas o enfoque maior é dado a uma viagem entre mãe e filha ao Japão. A arte preenche o silêncio que existe entre as duas, cujas vidas foram marcadas pela imigração.
→ A polícia da memória, de Yoko Ogawa: a história se passa em uma ilha japonesa onde objetos, casas e pessoas começam a desaparecer sem deixar vestígio, o que suscita uma reflexão sobre aquilo que conseguimos e que gostaríamos de sempre lembrar.
6. A longa estrada de areia, de Pier Paolo Pasolini, com tradução de João Coles
É o relato de uma viagem por todo o litoral italiano feita em um Fiat Millecento pelo cineasta e um fotógrafo em uma época anterior ao turismo de massas e em meio a profundas mudanças sociais. Quem ama a Itália, vai amar conhecê-la a partir de olhares tão atentos quanto os de Pasolini e Paolo di Paolo. E morrer de vontade de marcar uma viagem para o Sul.
→ Bambino a Roma, de Chico Buarque: um relato ficcional da época que o cantor vencedor do Camões viveu com a família na Itália em função da ditadura brasileira. Chico também escreveu Budapeste, um dos livros de viagem citados frequentemente por Tamara Klink, apesar de oficialmente tampouco ser considerado um.
7. Silêncio: Na era do ruído, de Erling Kagge, com tradução de Guilherme Braga
Uma meditação em torno do silêncio feita pelo viajante norueguês, conhecido por suas explorações na neve, que também se vale de filósofos para refletir sobre a temática. A grande lição, para mim, é que não é necessariamente ausência de ruído. Ótima recomendação da
, que frequentemente aborda o tema na sua .→ Walkscapes — O caminhar como prática estética, de Francesco Careri, com tradução de Frederico Bonaldo: uma reflexão sobre como se percebe – e se transforma – as paisagens ao caminhar.
8. Uma mulher singular, Vivian Gornick, com tradução de Heloisa Jahn
Nesta leitura, senti-me caminhando e vivendo em Nova Iorque, transformando-me junto desta cidade enorme e frenética. E sonhando um dia escrever tão bem como a autora, que reflete sobre tudo de maneira interessantíssima a partir das próprias vivências. Estão presentes temas como amizade, feminismo, família e o flanar na literatura moderna.
→ Scaffolding, de Lauren Elkin: o primeiro romance da escritora estadunidense radicada em Paris que me apresentou o termo – e o livro – Flâneuse.
9. Exploração, Gabriela Wiener, com tradução de Sérgio Molina
Um soco no estômago doeria menos que o livro desta escritora peruana emigrada em Madri. Tem muito corpo, indígena, aliás, nesta narrativa visceral. Gabriela parte do luto pela perda do pai para investigar o passado da própria família, de origem austríaca, além dos próprios desejos e afetos engendrados na ferida colonial. Entre-mundos, é um assombro atualíssimo.
→ The Whole Picture: The Colonial Story of the Art in Our Museums & Why We Need to Talk about It, de Alice Procter: a autora que ficou conhecida por proporcionar tours lado B em museus londrinos lançou este livro com título auto-explicativo.
10. Minha casa é onde estou, de Igiaba Scego, com tradução de Francesca Cricelli
A partir deste título belíssimo, a autora italiana de origem somali dá a chance de conhecermos a sua Roma, que também carrega muito de Mogadíscio. Também oferece uma nova perspectiva sobre a condição humana de imigrante. Um livro que provoca deslocamentos profundos, sobretudo no olhar para as outras pessoas.
→ Breviário Mediterrânico, de Predrag Matvejevitch: um tratado difícil de classificar sobre o mar que carrega tanta história e, mais recentemente, tantas dores de imigração.
UMA ÚLTIMA VISTA D'OLHOS 👀
[Inspiração para espreitar antes de ir embora]
— Os melhores concertos do Tiny Desk, segundo a própria NPR Music;
— Dicas para dormir verdadeiramente em um voo de longa duração, caso você também sofra com isso;
— Acervo de lugares inexistentes, um site que salva a memória de espaços no Brasil;
— O que os livros dizem sobre mulheres que viajam, reportagem d’Az Mina.
— Edições de newsletters relacionadas:
Cinco livros e por onde viajei em 2024, por
;o que ouvi, vi e li em 2024, por por tudo bom e nada presta;
Juro, não é loucura, talvez superstição, por A leitora que escreve,
Como arrumar malas e carregar livros? O guia essencial para quem ama ler 📚, por Anacronista.
Muito, muito obrigada pela leitura até aqui! Não só ao final desta edição, mas ao longo de todo este ano. Escrever é solitário, mas me sinto menos sozinha sabendo que sou lida aí do outro lado.
Por aqui, pretendo encerrar 2024 bem devagarinho. Ao lado, além do meu companheiro e do meu cão, está O turista aprendiz, um dos maiores clássicos de viagem brasileiro, escrito pelo modernista Mário de Andrade. Será, possivelmente, o retorno periódico de Portal do Mundo.
Bom proveito, ótimo 2025 e até a próxima edição!
Um grande abraço,
“Procura em ti
O que não encontrares
Em lado nenhum”
Haiku da Paz, de Mariano Alejandro Ribeiro em “Antes da iluminação”.
Não conhecia o gênero literatura de viagem, mas já estou apaixonada! Adorei as recomendações.
Muito bons o teu texto e os teus investimentos nas leituras. Vou te acompanhar sempre. Li alguns de teus indicados. Tenho lido a Isa do Clube Ferrante e em minha estada na Islândia, em 2023, conheci o trabalho de tradução da Francesca e marido. Grata, Gabi. Feliz 2025 cheio de viagens e surpresas! Bjs. Rô, de Porto Alegre🌀🎈🎉🎊💞